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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.2 São Paulo June 2009

 

DIÁLOGO

 

Comentário à entrevista de José Goldemberg

 

Comentario a la entrevista de José Goldemberg

 

Comment to the interview of José Goldemberg

 

 

Zelig Libermann1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na entrevista realizada, o professor José Goldemberg relata muitas de suas vivências e de sua participação em momentos importantes da história do país. Dentre esses relatos, o autor destaca depoimentos do professor Goldemberg sobre sua vida estudantil, com o objetivo de analisar, de forma sucinta, algumas características psíquicas presentes na relação professor-aluno na atualidade. Ao propor essa temática, busca-se ressaltar a importância da relação afetiva, do vínculo entre mestres e estudantes como facilitadores da introjeção de modelos de identificação.

Palavras-chave: Psicanálise; Desenvolvimento psíquico; Representação; Defesas narcisistas; Vínculo.


RESUMEN

En la entrevista realizada, el Profesor José Goldemberg relata muchas de sus vivencias y de su participación en momentos importantes de la historia del país. Entre esos relatos, el autor destaca declaraciones del profesor Goldemberg sobre su vida estudiantil, con el objetivo de analizar, de forma breve, algunas características psíquicas presentes en la relación profesor-alumno en la actualidad. Al proponer ese tema, se busca resaltar la importancia de la relación afectiva, del vínculo entre maestros y estudiantes como facilitadores de la introjección de modelos de identificación.

Palabras clave: Psicoanálisis; Desarrollo psíquico; Representación; Defensas narcisistas; Vínculo.


ABSTRACT

In the interview, Professor José Goldemberg reports many of his life experiences and his participation in important moments of the History of the country. Among such reports, the author points out professor Goldemberg’s stories about his life as a student, with the objective of shortly analyzing some psychic aspects present currently in student-mentor relations. On proposing such subject, we try to emphasize the importance of affective relation, of bonds between mentors and students as facilitators of the introjection of identification models.

Keywords: Psychoanalysis; Psychic development; Representation; Narcissistic defenses; Bonds.


 

 

A relação temporal de cada indivíduo com a história é variável. Inúmeros são os personagens que conhecemos apenas como referências de épocas muito ou pouco remotas. Outras vezes, somos contemporâneos de pessoas que exerceram papéis relevantes na sociedade, ao longo de uma determinada época, mas que, por uma série de razões, estão distantes ou ausentes de nossas vivências e lembranças. E, por isso mesmo, podem ser incluídas, por cada um de nós, na primeira categoria acima citada. Existe ainda a possibilidade de que conservemos vivas, na memória, pessoas que durante nossa vida chamaram a atenção por sua atuação no meio sociocultural.

Embora nunca tenha convivido com o professor José Goldemberg, ele é uma dessas pessoas das quais guardo lembranças. Apesar de estar no início da adolescência no período em que o professor Goldemberg começou a se manifestar publicamente, sempre fui muito atento aos acontecimentos no Brasil e no mundo. Assim, recordo vivamente o governo Geisel, o acordo nuclear Brasil-Alemanha, as negociações e as críticas para a construção de Itaipu, a grande votação obtida pelo partido de oposição ao regime militar na eleição de 1978, bem como outros tantos fatos posteriores que poderiam ser rememorados.

Nesse contexto tomei conhecimento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que se manifestava sobre questões importantes para o país. E entre os integrantes das ciências no Brasil, começou a despontar o nome do professor José Goldemberg. Recordo-me de sua atuação como cientista que emitia opiniões, como reitor da universidade e, mais tarde, ministro de Estado.

O currículo de José Goldemberg, listado no início da entrevista, permitiria que esse comentário se estendesse longamente sobre suas atividades ou opiniões a respeito da história e das questões importantes para nosso país e o mundo.

No entanto, a atenção do psicanalista concentrou-se em dois dos muitos relacionamentos descritos pelo entrevistado. Refiro-me aos professores, um no colégio e outro na faculdade, que se destacam como contraponto ao modo como acontecem, na atualidade, as interações entre os indivíduos e seus papéis sociais.

Para além de suas próprias capacidades, como, por exemplo, “eu tinha uma necessidade acentuada de entender as coisas em geral”, o depoimento de José Goldemberg a respeito de sua vida escolar no Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, e na Faculdade de Física, em São Paulo, ressalta dois professores considerados muito importantes para sua formação.

Essa referência aos dois mestres me parece um exemplo de valorização, frente ao modo como são vividas, no tempo atual, as relações entre as pessoas e, principalmente, aquelas entre professor e aluno. E é sobre a importância que Goldemberg dá a esses educadores que gostaria de refletir adiante.

Lá no Rio Grande do Sul, onde nasci, as escolas eram bastante boas e tive, no Colégio Estadual Julio de Castilho, um professor médico, que lecionava física. Ele era ótimo professor, chamava a atenção para o fato de que o que precisamos fazer é buscar explicação para as coisas e isto me conquistou inteiramente, me atraiu para a física.

Lá [na faculdade de física] encontrei, de novo, um professor maravilhoso, um estrangeiro, que foi o melhor professor que encontrei na vida. Comparando com vocês, ele era como Freud, tinha capacidade de explicar para as pessoas como são as coisas.

As considerações do professor Goldemberg sobre seus dois mestres mostram, além de sua capacidade de avaliação (que permite inclusive a comparação com outros docentes com quem teve contato), um aspecto extremamente importante nas relações interpessoais e, particularmente, no processo educacional: a ligação afetiva, o vínculo emocional e a identificação entre aluno e professor.

Na atualidade, assistimos a várias transformações dessas ligações. A partir da segunda metade do século XX, o intenso avanço científico e tecnológico e os costumes mais flexíveis propiciaram muitas comodidades e, principalmente, uma vida mais longa e com melhor qualidade.

No entanto, essa evolução propiciou ao sujeito encontrar maneiras de negar o poder do outro, uma vez que o desenvolvimento tecnológico acena com a possibilidade ilusória de satisfação imediata dos ideais narcisistas.

O reforço às defesas narcisistas e a dificuldade em manter laços afetivos acarretam uma insuficiência de representações na mente do indivíduo, gerando uma angústia intensa que pode levar à substituição da atividade simbólica, essencial à construção do psiquismo, por manifestações voltadas ao corpo ou ao ato. O pensamento perde lugar para a ação.

Além disso, o espaço para o questionamento necessário à evolução da sociedade está tomado, muitas vezes, por um relativismo extremado em que se perdem os limites, as responsabilidades e as funções atribuídas a determinados papéis sociais.

Esse tema foi objeto de um artigo (Libermann, 2006), no qual abordei essa perda de limites, usando como mote justamente a relação entre professores e alunos.

Nesse texto tomei como base duas reportagens, separadas por um período de sete anos, sobre o tema das relações educacionais, publicadas em um periódico de grande circulação nacional.

A primeira, veiculada em 1998, tinha como título “Melhores do que os pais” (Eliana & Valentini). Referindo-se a uma geração de crianças e adolescentes que, em função dos avanços educacionais e científicos, mostrava-se com grandes perspectivas futuras, o texto desperta a atenção para uma sutil tendência, calcada em aspectos racionais, de desvalorização da figura dos pais e professores. Segundo alguns entrevistados, “Eles [os jovens] são filhos da tecnologia da informação. Quem faz a cabeça deles, mais do que os pais, são os estímulos do mundo moderno” (p. 161). Ou então, “Os professores precisam estar preparados para receber na sala de aula alguém que sabe mais do que eles. Se não forem treinados para lidar com essas crianças, vão perder a vez”.

Longe de negar a importância da evolução científica ou de desvalorizar os jovens, e sem a intenção do discurso nostálgico em defesa dos velhos tempos, cabe levantar uma questão: por que o relato sobre os avanços da nova geração é acompanhado de uma desvalorização do contato com a geração precedente?

A ideia de que os jovens, por contarem com tecnologia e máquinas, poderiam prescindir das influências das figuras paternas e de seus representantes (no caso, os professores) relega a um segundo plano não só papéis sociais estruturantes do psiquismo, como também os laços afetivos que envolvem o ser humano.

A possibilidade de negar a dependência afeta também os regulamentos sociais básicos e suas representações sociais correspondentes. Segundo Milmaniene (2003), vivemos em “um mundo no qual a defecção estrutural da figura paterna” (p. 224) gerou, entre outros efeitos, a perda de valores e ideais, uma realidade em que se perdem limites, dignidades e hierarquias simbólicas, a desvalorização do pacto com a palavra e a emergência da violência irracional sem código, que busca a destruição gratuita do outro.

Em maio de 2005, a meu ver não por acaso, a mesma revista publicou a reportagem “Com medo dos alunos” (Barella), na qual mostra a falta de disciplina e o desrespeito total dos estudantes para com os professores, não em escolas de periferia violenta das grandes cidades, mas em colégios de classe média alta. Segundo o texto, trata-se de um “fenômeno de subversão do senso de hierarquia”, em que os pais, “sentindo-se culpados pela omissão, evitam dizer não aos filhos (…) É uma relação contraditória. Entregaram a educação dos filhos aos colégios, mas alguns acham exageradas as exigências escolares ou as punições impostas aos indisciplinados” (p. 64). Por fim, ao contrário do texto anterior, a reportagem reconhece que “a autoridade do professor é importante no processo de aprendizagem do aluno” (p. 65).2

Penso que as reportagens constituem dois momentos de um processo. Na primeira, aparece uma tendência a desfazer representações sociais importantes. Traçando-se uma linha de continuidade com os fenômenos psíquicos individuais, o obstáculo a estabelecer ligações com representações internas na mente do indivíduo gera, muitas vezes, uma angústia intensa que pode levar o sujeito a ocupar o espaço vazio com manifestações de agressão.

No mundo atual, vivemos uma ambiguidade intensa. Não a ambiguidade natural que se liga à própria essência do inconsciente em que uma representação pode ter mais de um significado. É a ambiguidade a serviço do narcisismo, que coloca sempre o outro na posição do errado, permitindo ao sujeito não pensar e não enfrentar os conteúdos que vêm do mundo interno com um potencial de angústias de desestruturação.

A dificuldade dos pais e professores no trato com os jovens, relatada na segunda reportagem, representa uma insuficiência de representações com a consequente confusão dos limites necessários à constituição do psiquismo, gerando a possibilidade da emergência de uma violência sem código.

Nesse contexto, a referência de José Goldemberg aos seus mestres e à marca deixada por eles em sua educação nos mostra a intensidade de representações. Seus exemplos foram introjetados como modelos de identificação, os quais, certamente, contribuíram, entre outros fatores, para o exercício de docência que, mais tarde, o aluno veio a exercer tão bem.

Em meio a inúmeros temas de grande relevância e a várias opiniões claras e objetivas, penso que os depoimentos do Professor Goldemberg a respeito de suas vivências de estudante (as boas e as más) constituem um belo exemplo de que a educação necessita mais do que tecnologia e máquinas. É preciso resgatar o valor da interação afetiva nos processos de aprendizagem.

Para finalizar, gostaria de manifestar meu agradecimento aos Editores da Revista Brasileira de Psicanálise pelo convite para comentar essa entrevista. Em primeiro lugar, pela possibilidade de colaborar com a Revista em seu trabalho de divulgação da psicanálise, aliado à busca pela interação de nossa disciplina com outras áreas do conhecimento. E, também, pela possibilidade de “dialogar”, através dos textos, com o professor José Goldemberg que, conforme relatei no início, é um dos personagens contemporâneos dos quais guardo vivas lembranças.

 

 

Referências

Barella, J. E. (2005). Com medo dos alunos. Revista Veja, ano 38, edição 1904, 62-5.        [ Links ]

Eliana, S. & Valentini, C. (1998). Melhores que os pais. Revista Veja, ano 31, edição 1577, 160-68.        [ Links ]

Libermann, Z. (2006). O poder: aspectos psicanalíticos. In Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (org.). Psicanálise e cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 337-48.        [ Links ]

Milmaniene, J. E. (2003). A propósito da família na atualidade. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, 10 (2): 223-34.        [ Links ]

Pereira, C. (2009). Quando ensinar é uma guerra. Revista Veja, ano 42, edição 2117, 160-68.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Zelig Libermann
Av. Taquara, 110/302
90460-210 Porto Alegre, RS
E-mail: zliber@terra.com.br

Recebido em: 10.06.2009
Aceito em: 25.06.2009

 

 

1 Membro associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA.
2 Durante a redação deste comentário, a mesma revista citada publicou outra reportagem (Pereira, C.), em 17 de junho de 2009, relatando a continuidade das dificuldades na relação professor-aluno nos dias atuais.

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