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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.2 São Paulo June 2009

 

PRÊMIOS

 

Turbulência e crescimento: um encontro entre Ismália e Isaura1

 

Turbulencia y crescimiento: Ismalia y Isaura se encuentran

 

Turbulence and growth: Ismalia and Isaura meet

 

 

Gisèle de Mattos Brito2

Grupo de Estudos Psicanalíticos de Minas Gerais
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este é um trabalho clínico que fala de um encontro vivo entre a “loucura” e a “sanidade”, ou melhor, entre a parte psicótica e não psicótica de nossa personalidade (Bion, 1957). Entre a busca de conhecer (K) e do não conhecer (-K) como apresentadas por Bion (1962, 1963) e sua extensão para as transformações de K–>O (Bion, 1965). São apresentados vários fragmentos de diferentes momentos da análise, em que é possível verificarmos como paciente e analista vão tecendo um continente para conter o objeto analítico.
A loucura/Ismália, ou seja, as atuações decorrentes de uma tentativa de fuga da dor mental e sentimentos de responsabilidade, assim como a criação de um mundo alucinatório, ganham expressão verbal na relação analítica. Por outro lado, a sanidade/Isaura, entendido como o contato lúcido com self e objeto é também revelado e expresso.

Palavras-chave: Loucura; Sanidade; Parte psicótica e não psicótica; Crescimento; Turbulência; Transformações em alucinose; Conhecer e não conhecer.


RESUMEN

Este es un trabajo clínico, que habla de un encuentro vivo entre la “locura” y la “sanidad”, o mejor, entre la parte psicótica y no psicótica de nuestra personalidad (Bion, 1957). Entre la búsqueda en conocer (K) y en no conocer (-K) como presentadas por Bion (1962, 1963) y su extensión para las transformaciones de K–>O (Bion, 1965). Son presentados varios fragmentos de diferentes momentos del análisis, en que se puede verificar cómo paciente y psicoanalista van tejiendo un continente para contener el objeto analítico. La locura/Ismália, o sea, las actuaciones derivadas de una tentativa de huida del dolor mental y sentimientos de responsabilidad, así como, la creación de un mundo alucinatorio ganan expresión verbal en la relación psicoanalítica. Por otro lado, la sanidad/Isaura, entendido como el contacto lúcido con self y objeto también es revelado y expresado.

Palabras clave: Locura; Sanidad; Parte psicótica y no psicótica; Crecimiento; Turbulencia; Transformaciones en alucinación; Conocer y no conocer.


ABSTRACT

This article is a clinical text about an intense encounter between “madness” and “sanity” or, we might say, between the psychotic and the non-psychotic part of our personalities (Bion, 1967). Between the search to know (K) and not know (-K) as presented by Bion (1962, 1963) and extension to transformations K–>O (Bion, 1965). A variety of fragments of different moments of the analysis are presented making it possible to see how patient and analyst weave a continent to contain the analytical object. Madeness/Ismália, that is, the acting’s derived from an attempt to escape from mental pain and feelings of responsibility, as well as, the creation of a hallucinatory world gain verbal expression in the analytical relationship. On the other hand, sanity/Isaura, understood as the lucid contact with self and object is also revealed and expressed.

Keywords: Madeness; Sanity; Psychotic part and non-psychotic; Growth; Turbulence; Transformations in hallucinosis; To know and not know.


 

 

Este é um trabalho clínico, que fala de um encontro vivo entre a “loucura” e a “sanidade”, ou melhor, entre a parte psicótica e não psicótica de nossa personalidade (Bion, 1957). Entre a busca de conhecer (K) e do não conhecer (-K) como apresentadas por Bion (1962) e sua extensão para as transformações de k>O (Bion, 1965). São apresentados vários fragmentos de diferentes momentos da análise, em que é possível verificarmos como paciente e analista vão tecendo um continente para conter o objeto analítico.

Isaura, casada, mãe dedicada, profissional competente. Com uma história familiar muito triste, sentia que havia perdido muito tempo na vida. Presa a uma trama edípica não conseguia se organizar,3 ou seja, aplicar seus conhecimentos em seu trabalho e terminar o que começava. Culpa-se por ter traído o marido, por seu enlouquecimento. Seu sentimento era o de estar perdida, sem saber como utilizar seu tempo e sua criatividade.

Esse foi um sentimento pungente que a compeliu a investir em si mesma. A pergunta que não calava era: –“Por que me encontro paralisada? As pessoas se desenvolvem, e eu não.”

Começamos com três sessões semanais, com frequência quatro, às vezes cinco...

 

A moça tecelã

Quando abro a porta da sala de espera, a paciente já me aguardava. Olha para mim com olhar de satisfação e interesse. Diz:

– Hoje não está uma chuvarada.

Na sessão anterior eu havia comentado sobre a chuva que caía. Sinto-a olhando profundamente para mim e comento que sim. Ao deitar, faz um longo silêncio.

Fico também silenciosa e envolvida com os sentimentos que seu olhar e a maneira como me cumprimenta me mobilizaram.

Digo: – Eu sinto que fica muito atenta à forma como falo com você, à maneira como a recebo. E me dá a impressão de que essa espera, o encontro comigo, tem sido algo muito importante. E acrescento: – Acima de tudo por propiciar um encontro com você mesma.

Após longo silêncio, diz:

– Eu sinto que estou caminhando a passos largos para um autoconhecimento. É mais do que isso, sinto que estou caminhando para uma organização interna.

Comenta sobre a reforma de sua casa e do quanto sentia estar também reformando a casa interna. Fala sobre a importância do comentário que eu havia feito, na sessão anterior, quando mostrei que havia nela uma parte lúcida que a impediu de quebrar o “pote”4 todo, que teve lucidez, e que sua percepção a respeito disso, tinha feito muito bem a ela. Fala da esperança de conseguir se libertar do veneno do escorpião.5 E da importância que a análise está tendo para ela.

Lembra-se, nesse momento, de um conto de Marina Colassanti, “A moça tecelã”.

Diz que esse conto fala de uma moça que tecia, e o que tecia aparecia para ela. Então, se ela tinha fome e tecia o alimento, este aparecia. Quando tinha sono, tecia a lua, à noite, e esta chegava. Adormecia. Enfatiza que a moça era feliz e, no conto, a autora diz que tecer era tudo o que fazia, e isso era o que queria fazer. Sentindo-se sozinha, um dia teceu um homem, um companheiro e, quando terminou, o homem apareceu na sua casa. Entretanto, esse homem, ao descobrir que o que ela tecia, tomava vida, fez com que tecesse um castelo para morarem. Queria prata, cavalos, e ela não parava mais de trabalhar, o dia todo…

Aí tecer já não era mais o que queria, o que gostava de fazer. Foi ficando pesada e triste, até que um dia resolveu puxar um fio do que havia feito e foi puxando, puxando, até destecer tudo, inclusive o homem e tudo o que havia tecido para ele.

Sorrimos.

Ela diz que esse era o conto dela, de sua vida. Então, pergunto que ligações ela fazia.

Ela me diz que gostava desse conto porque era como a história dela com o amante. Diz que havia criado essa loucura, esse homem e tudo o que viveu com ele. Diz ainda que puxar esse fio era semelhante ao que estava fazendo na análise, no sentido de tomar conhecimento e se libertar. Tecer era o que ela queria e o que gostava de fazer. Repete essa frase chorando.

Enquanto falava, fui me sentindo tocada por suas associações. Pensei o quanto era sensível. Digo algo no sentido de que estava podendo entrar em contato não só com a loucura, mas, principalmente, com a possibilidade de contê-la ali comigo. Diferentemente da tecelã no conto, que ficava sozinha. Comento ainda que estava se dando conta de que havia criado em sua vida muitas histórias que não existiam e lembro-a da história da saia de ramagens.6 Tecendo ilusões que a desiludiam. Como Sinhá Vitória, estava podendo sentir que tinha a saia de ramagens, mas imaginava que não a tivesse e que teria de buscá-la na relação com outro homem.

Relembra algo que acontecera com a psicóloga que a atendeu no passado. Ela se envolveu com sua história com o Marcos, vendo-a como uma história de amor. Observa ter sido muito importante e a ajudou, quando eu lhe disse que não via dessa forma, como uma história de amor, mas como uma loucura.

Lembra-se de um sonho.

Conta-me que o sonho se passa em sua casa. Esclarece-me que continua tendo cachorros e que, ela e o marido, são muito ligados a eles. No sonho, a casa dos cachorros era um caixão. Ri e diz: – “Uma caixona vermelha, transparente, de acrílico.” Via-se, junto com o marido, deitados dentro da caixa. Fala que também parecia o divã. Diz que acordou com a sensação de que aquilo era um caixão, no formato de um caixão, mas depois pensou que não, que era uma caixona vermelha. Diz ter se sentido confusa. Fala da relação com o marido, que às vezes sente que ele deixa muitas coisas para ela fazer e resolver por ele. Cita exemplos da reforma da casa e diz:

– Haja sopro para aguentar.

E comenta que o marido tinha o fogo, mas que precisava assoprar.

Rimos juntas.

Falo que estava se dando conta de algo que a confundia, uma ambivalência quanto aos seus sentimentos na relação com o marido: se o casamento era um caixão ou uma caixona viva, vermelha, transparente, permeável, que permitisse a ela ver e viver junto dele. Mas para que possa haver fogo, calor, o vermelho das chamas, é preciso que ambos se envolvam.

Assim, aqui também na análise, ela me mostrava que estava atenta a mim, à minha fala, a como lido com ela, para – quem sabe – avaliar o que estamos tecendo: um caixão, mais uma ilusão louca, ou uma caixona, um continente vivo de encontro com ela mesma. Digo ainda que esse era um cuidado muito importante. Era preciso atenção, dedicação, para a construção de um conhecimento real e não apenas ilusório e que esta era uma tarefa que tecíamos a quatro mãos.

 

A Loucura

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…
E no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava perto do mar…
E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…

(Alphonsus de Guimaraens)

Entra para a sessão já chorando.7 Ao deitar-se, chora muito. Fala da dor, da vergonha frente aos filhos, de sua tristeza de ter provocado tamanho sofrimento neles.

Rememora a conversa com um deles em que conversaram sobre a correspondência anônima recebida.

Emociona-se com a humanidade do filho. – Mãe, isso pode acontecer com qualquer pessoa, mãe; ninguém está imune a isso. Chora e fala do sentimento de se sentir pega no colo pelo filho.

Lamenta-se por sua loucura. Fala do sonho que teve, muito discutido por nós meses atrás. Havia um casal tendo uma relação sexual enlouquecida de um lado de uma cortina. Do outro lado, ela se via deitada, observando o casal, fazendo gestos com os dedos eretos e dizendo que precisava de dois, que queria dois pênis. Então o homem vai até ela e faz um gesto obsceno, colocando o ânus próximo a seu rosto.

Ela diz: – Que desvario, Maria.

Nesse momento, lembra-se do poema de Ismália.

Quando acabou de declamar o poema, disse: – Maria, por que eu estou lembrando esse poema agora? Meu Deus…

Sinto-me profundamente tocada. Converso com ela sobre sua identificação com o desvario de Ismália,8 com a sua loucura. Que se sentia envolvida e misturada com o casal louco do sonho. Que ela também queria tudo, a lua do céu, a lua do mar. Seu marido, o marido de outra mulher. Queria ser rainha de todos os terreiros.

Ela diz: – Ficar na Santíssima Trindade?9

Digo que, provavelmente, sim. Possivelmente também querendo se misturar com seus pais. Lembro-me nesse momento de uma fala de Riobaldo em Grande sertão: veredas. Relaciono toda essa confusão do envio de correspondência para os filhos dela à confusão com os pais, a estar misturada no casamento deles e digo:

Como dizia Riobaldo: “A gente vive, eu acho, é mesmo para se des-iludir e desmisturar”.

Ela chora… E, soluçando, repete uma parte do poema:

E como um anjo pendeu…

– Ai, Maria, como eu vou conseguir, que dor, que dor…Como vou conseguir me desmisturar?

E me pergunta como seria poder viver inteira? Diz que por toda a vida tinha vivido essa loucura: queria a lua do céu, queria a lua do mar.

Digo para ela nesse momento: queria… queria…

Diz: – Aí, Maria, agora é você quem me pega no colo e repete: queria, queria… Comento que, em parte, ela sabia o que é viver inteira, que ela havia vivido a maternidade inteira e se dedicado muito aos filhos e que hoje estava podendo receber o colo deles e agora o meu.

Na sessão seguinte conta-me que teve um sonho e que sentia ter tudo a ver com a nossa conversa de ontem: via-se anã, com uma escada de madeira grande à sua frente. Pensou que isso tinha a ver com a análise, pois imaginava ir crescendo a cada degrau que subisse.

Comenta que isso também tinha a ver com o meu comentário de que ela sabia, em parte, o que era viver inteira, porque experienciava isso na relação com os filhos.

Diz que tinha tido um dia produtivo no trabalho. No momento em que conta o sonho, minha lembrança foi à torre de Ismália. Pensei que a escada também poderia levála à torre. Fico quieta. Não via como dizer isso; suas associações diferiam desse colorido.

Aguardo.

Começamos a conversar sobre suas associações ao sonho, sobre o sentimento de potência, uma potência que esperava que a análise a ajudasse a adquirir. Falamos sobre seu desejo de se desenvolver, de crescer profissionalmente e comento: – Esse é um caminho.

Ela diz:

– É um caminho. Pode ter outro, não é?

Eu digo que sim. Que Ismália subiu à torre e pôs-se a sonhar… Queria a lua do céu, queria a lua do mar.

Ela diz:

– É mesmo, eu não tinha pensado nisso: Ismália subiu à torre e pôs-se a sonhar… É mesmo… Pode ser também um sonho louco. Lembra-se da moça tecelã. Comenta que, como ela, também teceu um sonho louco e que estava doendo demais puxar esse fio na análise. Diz:

– Ai, Maria como dói…

Diz que ontem, quando chegou ao trabalho, comentou com a chefe, que é uma mulher muito sensível, que, na análise, tinha se lembrado da Ismália e ela disse:

– Ah! Ismália!

– A gente se abraçou. Foi um abraço fundo, não sei te explicar.

Digo: – Sim, é possível que, como você, ela, eu, todos nós, estejamos podendo abraçar a Ismália que há dentro de nós. Esse é um encontro profundo que a análise nos proporciona, o encontro com a nossa loucura.

Segundo Bion (1962), “A função alfa desempenha uma parte fundamental na transformação da experiência emocional em elementos alfa porque um sentido de realidade importa para o indivíduo… O malogro no uso da experiência emocional ocasiona um desastre comparável no desenvolvimento da personalidade” (p. 42). Mais adiante, na mesma página diz: “Não se pode conceber uma experiência emocional isolada de uma relação” (grifo meu).

Ainda sobre a experiência emocional ele diz, em Transformações (1965):

A experiência infantil do seio como fonte de experiências emocionais (representadas, em épocas posteriores, por meio de vários termos: amor, compreensão, significado) significa que perturbações no relacionamento com o seio envolvem perturbações abrangendo um amplo espectro de relacionamentos adultos. A função do seio, de prover significado, tem importância para o desenvolvimento de uma capacidade para aprender. (p. 81)

Em Bion, temos a possibilidade de compreender que, para que a mente possa desenvolver uma capacidade para pensar os pensamentos, ela precisa ser contida. Ele, por meio do conceito de continência, desenvolve a ideia de que a mãe, com sua função-alfa operante, vai metabolizar as experiências emocionais e sensoriais e transformá-las em elementosalfa. Ou seja, a mãe com rêverie digere, transforma antes de nomear, de oferecer significado. A criança precisa encontrar essa função de digestão e transformação das experiências emocionais na mãe e/ou mais tarde num analista, para que possa com ele se identificar e criar um continente interno para conter os conteúdos emocionais.

Segundo Bion (2004), as transformações em alucinose estão associadas a desastres primitivos, a catástrofes nessa relação com o seio e com os pais. São transformações na área psicótica da personalidade. Inveja e voracidade são elementos presentes nesse meio. Braga (2003) destaca a importante presença dos processos alucinatórios, dentro da visão de uma mente multidimensional, em que alucinação e alucinose coexistem com as dimensões do sensorial, do pensamento, do ser a realidade e dos pensamentos sem pensador.

Tendo as transformações em alucinose como meio para operar as experiências emocionais, a pessoa “acredita” que gera uma realidade que a ela convém. Ela pode tecer e destecer quando lhe aprouver e o que lhe aprouver. Ocorre que essa realidade criada é insustentável. Uma hora há de se haver com os fatos, com a realidade crua e nua, interna e externa.

A loucura/Ismália, ou seja, as atuações decorrentes de uma tentativa de fuga da dor mental e sentimentos de responsabilidade, assim como a criação de um mundo alucinatório, ganham expressão verbal na relação analítica. Por outro lado, a sanidade/Isaura, entendida como o contato lúcido com self e objeto é também revelado e expresso.

Isaura busca “sense of reality”, busca encarar sua parte psicótica, sua responsabilidade no enlouquecimento (K). Ao mesmo tempo em que resiste a acolher essa percepção, insiste em achar que tem o poder de tecer e destecer a realidade (-K). Reluta em lidar com as consequências de seus atos, em abrir mão da sensação de um poder ilimitado.

 

O inferno

Em uma sessão desse período, entrega-me um verso da música de Lupicínio Rodrigues, “Esses moços, pobres moços”. “… deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno à procura de luz”. Comenta:

– Olha só isso, Maria, foi o que eu fiz e não sabia. Ah! Esses jovens à procura do amor… acabam no inferno.

Conversamos sobre sua dor. Sobre a impossibilidade de encontrarmos sempre a luz, que é necessário tolerarmos a escuridão, o mau tempo, as turbulências e trabalharmos para encontrar a luz novamente.

Ela diz: – O céu é também escuro, né? Como no verso da música: “por ser escuro”. Ele também é escuro, não é só luz, têm trovões, raios…

Os trovões e raios chegaram a seu céu. A pessoa que mandara a correspondência volta a atacar. Mostra suas garras ao relatar seu endereço residencial, telefones e todos os dados de seu marido. Ela se vê forçada a contar tudo ao marido. Alguns filhos se rebelam contra ela. Acusam-na de falsidade.

Isaura se desespera. Não há como escapar das consequências. Sofre de forma dilacerante. Entra num período de intensa culpa. Envergonha-se de si mesma. O marido sofre… Ela tenta mostrar que o escolheu.

Quer que o marido a perdoe, sem sofrer toda a dor envolvida no processo de perdoar. Briga comigo, quando mostro os momentos em que busca destecer o que teceu magicamente. Diz: – Parece que você e o Rodolfo querem que eu fique nesse inferno. Eu já falei que estou saindo do inferno. Se ele quiser, que venha comigo.

Sua culpa aumenta a cada dia.

Acompanho-a e procuro ajudá-la a fazer discriminações importantes. Sofre ao se perceber identificada com o pai quanto ao seu desvio de caráter. Mostro-lhe que teve um desvio de conduta e não de caráter.

Deprime-se. Trabalhamos muito e, pouco a pouco, ela se restabelece. Apoia-se em seu trabalho, estuda, esforça-se bravamente para romper a depressão e os momentos de desespero e desesperança.

Riolo (2007) diz que a análise, em termos de Bion e neste momento, “é, por sua vez, concebida não apenas como um processo de decifração de símbolos de revelação da existência de significados inconscientes. Mas, também, como produtora de símbolos – num processo em que gera pensamentos e nomeia significados a experiências que nunca foram conscientes e, portanto, nunca foram reprimidas porque nunca foram pensadas” (p. 1376).

Assim caminhamos. Isaura relembra muitos momentos da vida e se surpreende com os atos cometidos. Assusta-se consigo mesma. Diz:

– Hoje eu tenho certeza que sou uma pessoa doente e que toda essa doença me prejudicou muito na vida.

Nosso trabalho entra em um momento em que ela começa a se sentir existindo. Sente que existe! Tem valor. Um dia chega à sessão e me entrega seu trabalho. Caminha para o divã e, chorando, diz:

– Esse trabalho é seu.

Respondo: – O trabalho é seu. Entendo que é grata por eu estar podendo te ajudar. Conversamos sobre o quanto era importante reconhecer seu mérito. Que era fundamental para que pudesse existir.

Sua produção aumenta dia a dia. Entusiasma-se com o trabalho. Mais que tudo, entusiasma-se consigo mesma.

Symington (2007) desenvolve várias ideias, como: “Uma mente deve ser criada. Nós não nascemos com uma mente, mas com um potencial para criá-la. Inveja, ciúme, voracidade, paranóia, dependência infantil e onipotência são produtos de uma mente não desenvolvida” (p. 1410).

Explicita a importância de o analista reconhecer as evidências de crescimento no paciente. Esse reconhecimento possibilita uma expansão, estabelecendo um novo crescimento, caminho para o desenvolvimento de uma mente própria, Caper (2002).

 

Isaura Re-nasceu…10

Quando abro a porta da sala de espera, ela me aguarda com um sorriso aberto e diz que havia conquistado algo muito importante para sua vida profissional, que omito por segurança. Dou-lhe os parabéns. Comenta sobre a conquista, sobre seu sentimento de confiança em si mesma. E eu digo:

– A hora e a vez de Isaura.11

Rimos juntas e ela repete: – A hora e a vez de Isaura.

Passa a falar de uma aula que havia dado, da receptividade que sentiu na audiência. Comenta que começou a falar sobre algo mencionado pelo colega anterior, que discorria sobre eleições e votos. Pegou esse gancho e falou que os votos eram, para a democracia, como o bloco de mármore fora para Michelangelo esculpir a Pietá. Assim, também, era preciso pessoas pensantes e engajadas para modificar as questões ligadas ao tema do trabalho.

Lembrei-me de uma metáfora do dr. Bion, citada por Junqueira Mattos (1998), quando ele, comparando o trabalho do analista ao trabalho do escultor, citou especialmente as estátuas inacabadas de Michelangelo em Florença, Os Escravos. “Eles aparecem incrustados na pedra, como se sempre lá dentro tivessemvivido… estavam à espera do trabalho do escultor que, manejando com mestria o cinzel, vida desse ao que antes pré-existia…”

Relata-me com entusiasmo a metáfora que também usara do navegador solitário e de uma canoa com vários outros remando. Que, ao navegador solitário, relacionou o município, sozinho, à espera de ajuda de muitas instituições, do Espírito Santo… E os que remam em conjunto, estes sim, têm um objetivo comum, juntam suas forças para atingi-lo.

Conta-me que, no final do trabalho que escreveu sobre uma determinada região do Estado, lembrou-se de que aquela é uma das regiões mais pobres e de grande marginalidade. No local em que esteve na cidade, o bairro tem o nome de uma flor, e ela se lembrou do poema de Drumond, “A flor e a náusea”. E diz: – A flor nasceu no asfalto, nas condições mais adversas, nasceu, enganou a todos, uma flor pálida rompe o asfalto…

Digo: – Sim, Isaura. Mas o que vejo é que você está podendo utilizar todos os seus recursos, as leituras de uma vida toda, as experiências profissionais. E cito as profissões. – Está unindo tudo isso dentro de você no mesmo barco, trabalhando junto. E o que está podendo nascer é uma flor vibrante e viva. Essa flor que aqui nasce, neste nosso trabalho, a quatro mãos, vem sendo semeada, cuidada há muito tempo. Não precisou se esconder para nascer. Nasceu, porque você ofereceu espaço e condições para que ela nascesse e florescesse. É a hora e a vez de Isaura…

Isaura chora e me agradece.

Entretanto, não nos esquecemos da náusea, do nojo, do ódio. Eles estão também presentes. Trabalhamos essa dualidade em muitas outras sessões. Isaura se lamenta de não conseguir sair do inferno e viver no paraíso. Sonha ter mandado uma foto para o pai, em que se via nua e na posição com os pés e braços no chão, de quatro. Assusta-se com o sonho. Associa-o à história da moça violentada pelo pai e mantida no porão por 24 anos. Ismália insiste em se fazer presente.

Conversamos sobre a necessidade de tolerarmos a flor e a náusea. O amor e o ódio, a loucura e a sanidade. Digo-lhe algo por mim ouvido de minha primeira supervisora:12 – Não há mar sem mangue. Pensando no mar e no mangue, recordo-me da passagem de Penélope na Odisséia:13 Ela tece o tapete durante o dia e destece à noite, à espera de seu amor… Isaura se emociona.

Eu tinha em mente algo que ela havia me contado anteriormente sobre não ter conseguido se separar do marido, o que associei ao amor de Penélope e à sua espera. Ela pede que eu conte essa passagem da Odisseia. Eu conto uma parte e ela acrescenta outras. Ela, então, lembra-se de quando pensou em se separar do marido e não conseguiu. Recorda-se do que disse para o amante: – Eu não consigo me separar do Rodolfo, por ele.

Relacionei o mangue à loucura de Ismália, à da moça tecelã e à sua própria loucura. Também relacionei o mar à vida que pôde construir com seu marido, com os filhos e comigo na análise.

– Essa construção, eu digo, é verdadeira e permanece viva, floresce e hoje você a re-conhece. Isaura concorda. Diz: – Eu esperei por ele… Ele também esperou por mim. O Rodolfo concorda que nós dois temos responsabilidades pelo que aconteceu, embora eu reconheça minha maior parcela nisso tudo.

Bion (1987) diz: “Breakdown (Colapso), neurose, psicose, podem, em suas turbulências, serem difíceis de discernir, mas podem ser um nascimento inseparável da repressão e morte” (p. 224).

Entretanto, apesar de toda violência e destrutividade contidas no ser humano, Bion (1987) assinala: “Até o presente momento o ser humano tem sobrevivido e preservado a capacidade para o crescimento” (p. 230). Isaura diz:

– Uma das coisas mais importantes que estou aprendendo na análise, e disse isso para o Rodolfo, é que quanto mais a gente quer sair do inferno, mais a gente fica dentro dele. Antes eu queria me livrar desse sofrimento, que vivi a vida toda. Achava que só assim chegaria ao céu. Hoje, eu sei que posso viver as duas coisas juntas. Volta e meia eu me vejo lá na torre da Ismália. E me pergunto: o que você está fazendo aí, Isaura?

Rimos juntas

Digo: – A flor e a náusea…

Nosso trabalho continua…

Obrigada, Ismália. Obrigada, Isaura.

 

Referências

Andrade, C. D. (2001). A flor e a náusea. 23. Rio de Janeiro: Record.        [ Links ]

Bion, W. R. (1962). Learning from experience. In: Seven Servants. New York: Jason Aronson. Cap. 14, p. 42.        [ Links ]

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_____ (1967). Differentiation of the psychotic from the non-psychotic personalities. In Second thoughts. London: Heinemann. (trabalho original publicado em 1957).        [ Links ]

_____ (1987). Four papers. Emocional Turbulence. Abingdon: Fleetwood.        [ Links ]

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Junqueira Mattos, J. (1998). Pré-concepção e transferência. Journal of Melanie Klein and Object Relations, v. 16, n. 4, p. 683-708; Revista Brasileira de Psicanálise, v. 29, n. 4, p. 799-824, 1995. Apresentado no Congresso Internacional de São Francisco.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Gisèle de Mattos Brito
Av. do Contorno, 4852, sala 501, Funcionários
30110-100 Belo Horizonte, MG
E-mail: giselebrito@sbpsp.org.br

Recebido em: 04.05.2009
Aceito em: 11.05.2009

 

 

1 Artigo “Tema Livre” do XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro, 2009. Prêmio Durval Marcondes para analista didatas.
2 Analista didata e docente do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Minas Gerais GEPMG, membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP).
3 Foi assediada sexualmente pelo pai. Relata-me lembranças de ter sua mão colocada sobre seu pênis. Abraços apertados, beijos melados. Fugas... Essas vivências ressoaram profundamente em sua vida afetiva e sexual.
4 Uma referência a ter conseguido manter sua família, seu casamento.
5 Na sessão anterior, conta um sonho em que havia sido picada por um escorpião venenoso. Associa o mesmo ao pai e diz como se envergonhava dele.
6 Referência à personagem do livro de Graciliano Ramos,Vidas Secas.
7 Uma pessoa enviou correspondência anônima para os filhos dela e relatou todo o relacionamento que tivera com o amante. Ela já havia encerrado essa relação.
8 Sua identificação com Ismália centra-se na questão da loucura. Em nenhum momento pensou em suicídio.
9 Uma referência à tríade edípica.
10 “Uma flor nasceu na rua! ... É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.” (Carlos Drumond de Andrade)
11 Numa referência à novela de Guimarães Rosa, que expressa a força e o espírito do sertão de Minas Gerais e conta a história da queda de um homem poderoso em busca de sua redenção: “A hora e a vez de Augusto Matraga”.
12 Judith Teixeira de Carvalho Andreucci, analista Didata da SBPSP. Um dos pilares na construção desta mesma Sociedade, já falecida.
13 Ulisses foi para a Guerra. Penélope deveria casar-se novamente, mas não consegue.

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