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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.2 São Paulo jun. 2009

 

CONGRESSO INTERNACIONAL

 

Apreender a prática dos psicanalistas em seus próprios méritos1

 

Aprehender la práctica de los psicoanalistas en sus propios méritos

 

Grasping psychoanalysts’ practice in its own merits

 

 

Juan Pablo Jiménez2

Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental Oriente - Universidade do Chile

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Não se pode estudar as convergências e divergências, na clínica psicanalítica, sem se saber o que os psicanalistas realmente fazem em sua prática. É esboçada uma fenomenologia da prática clínica e dos processos de validação das intervenções; são propostas metodologias para estudar a prática em seus próprios méritos.

Palavras-chave: Pluralismo; Validação clínica; Fenomenologia psicanalítica; Prática psicanalítica.


RESUMEN

No se pueden estudiar las convergencias y divergencias en la clínica psicoanalítica sin saber lo que los psicoanalistas realmente hacen en su práctica. Se esbozan una fenomenología de la práctica clínica y de los procesos de validación de las intervenciones; se proponen metodologías para estudiar la práctica en sus propios méritos.

Palabras clave: Pluralismo; Validación clínica; Psicoanalítica de la fenomenología; La práctica psicoanalítica.


ABSTRACT

The author considers that the study of convergences and divergences in psychoanalytic clinical practice requires knowledge of what psychoanalysts really do in their practice. He outlines a phenomenology of clinical practice and of processes of validation of the interventions. He also proposes methodologies for studying the practice in its own merits.

Keywords: Pluralism; Clinical validation; Psychoanalytic phenomenology; Psychoanalytic practice.


 

 

La théorie c’est bon, mais ça n’empêche pas d’exister.

Charcot

Psychoanalysis is what is practiced by psychoanalysts.

Sandler

1. Introdução

O panorama da psicanálise contemporânea é complexo. Como nunca antes, a controvérsia em torno de seu estatuto epistemológico alcançou precisamente o interior do movimento psicanalítico. O tema deste congresso fala por si mesmo. Já não apenas a unidade teórica da psicanálise está posta em dúvida, mas também a unidade de sua prática. Convoca-nos, então, a refletir sobre o que nos une e sobre o que nos separa. Nesta apresentação, espero mostrar que a tarefa proposta está infestada de obstáculos difíceis de superar; primeiro, pelas condições nas quais se desenvolve a construção da teoria em psicanálise e, segundo, pelas dificuldades de aderir, de maneira confiável, à prática dos psicanalistas, ou seja, aquilo que os psicanalistas realmente fazem na intimidade da relação terapêutica.

Certamente, este é um assunto que vai além da psicanálise e que também compromete a prática clínica na Saúde Mental. Quando eu era um jovem psiquiatra, que sonhava chegar a ser psicanalista, sentia-me incomodado frente à leviandade com que colegas generalizavam o conhecimento advindo do estudo clínico de um paciente em particular. Todavia, outra coisa causava-me ainda mais inquietação: a suspeita de que os clínicos, quando prestam conta de sua experiência com os pacientes, tendem a enviesar a realidade clínica, até fazê-la encaixar em categorias estabelecidas, dentro de teorias preferidas, ou dentro do pensamento do autor da moda. Assim, terminam falando não do que realmente acontece na prática clínica ou do que efetivamente fazem (ou dizem) no consultório, mas sim do que queriam ter feito (ou ter dito); isto é, apresentam um clínica idealizada, o que dificulta tremendamente o intercâmbio entre colegas (Jiménez, 2005, p. 608). Por certo, penso que aqui não se trata, em primeiro lugar, de um ocultamento mais ou menos intencional por parte daquele que apresenta material clínico, que é produto da filiação a escolas e ideologias psicanalíticas, ou do submetimento ao “superego técnico” que regula o intercâmbio público (Figuera, 1994), “politicamente correto”, entre psicanalistas, como também é produto do impacto das teorias implícitas (Canestri et al., 2006); ou seja, trata-se do efeito de razões não conscientes que guiam a ação prática com os pacientes. Com isto, quero destacar o difícil que parece ser, nas discussões psicanalíticas, manter o contato com o paciente, sem rapidamente desviar a discussão para variados níveis de teorias sobre a prática ou, inclusive, para as ideias de autores psicanalíticos que, por sua vez, constróem teorias sobre a prática. Talvez isto tenha a ver com a tendência predominante, em todas as culturas psicanalíticas, de confiar demais nas definições teóricas que deixam um amplo espectro de imprecisão, junto a uma grande desconfiança nos estudos fundados empiricamente (Tuckett, 2006). Isto converte-se em problema, se é que queremos continuar sendo fiéis à afirmação freudiana de que, não importando quão longe tenhamos chegado, a psicanálise “nunca abandonou sua pátria de origem, e quanto ao seu aprofundamento e posterior desenvolvimento, vai continuar dependendo do trato com enfermos” (1933, p. 151).

Ter-se-á notado que parto da base de que é possível separar, ao menos em parte, a teoria da prática em psicanálise e, ainda mais, que vale a pena tentar apreender a prática dos psicanalistas a partir de seus próprios méritos. Sei que muitos questionam este suposto. Minha resposta é pragmática: antes de rejeitá-la por razões ‘teóricas’, primeiro convido a examinar o valor heurístico de tal separação.

Muito precocemente, em minha carreira profissional, interessei-me pela epistemologia clínica (Jiménez, 2005) e, principalmente, pela metodologia, entendida como o estudo das regras e caminhos que levam a ‘boas’ inferências e, desde aí, ao enriquecimento de um conhecimento clínico válido, capaz de produzir consenso, de ser comunicável e, sobretudo, refutável, ao menos por meio da discussão coletiva e da argumentação racional. E mais, a reflexão epistemológica, apoiada em meus estudos prévios de filosofia, cultivou, em mim, uma insatisfação crescente com o método clínico como a única vertente de conquista de conhecimento em psicanálise, e levou-me a interessar pela investigação sistemática em psicanálise, nas suas diferentes vertentes: investigação empírica em processo e resultados, investigação na relação precoce mãe-bebê, investigação conceitual. Nos últimos anos, em parte impulsionado pela necessidade de intercâmbio acadêmico com meus colegas psiquiatras, maravilhei-me com os desenvolvimentos da nova biologia da mente (Jiménez, 2006), a qual permite-nos retomar o caminho da integração ‘neuro-psicanalítica’ abandonado por Freud em 1895. Nos 25 anos de busca de caminhos de articulação do conhecimento psicanalítico com disciplinas afins, aprendi sobre métodos de variada sofisticação, os quais podem ser aplicados às ‘marcas’ ou registros de processos psicanalíticos e, ultimamente, tomei conhecimento das fascinantes combinações entre registros de variáveis subjetivas processáveis e de imagens dinâmicas do funcionamento cerebral.

A diversidade teórica e prática, em psicanálise, é um fato que, atualmente, poucos discutem. Já em 1966, Philip Seitz demonstrou que psicanalistas expertos não podem alcançar um acordo confiável sobre interpretações baseadas em inferências sobre estados internos complexos. Posteriormente, Pulver (1987a, 1987b) e Bernardi (1989) chegaram a conclusões semelhantes. Entretanto, é questionável descrever esta situação em termos de pluralismo, porque o que parece existir é uma mera pluralidade ou, pior ainda, uma fragmentação teórica e prática, desde o momento em que nos falta uma metodologia para comparar sistematicamente as diversas teorias e enfoques técnicos. Ricardo Bernardi (2005) pergunta-se a respeito do que vem depois do chamado pluralismo, se não se criarem as necessárias condições para que a diversidade observada converta-se em um fator de progresso e não de destruição da psicanálise. Suas investigações (Bernardi, 2002; 2003) sobre como os psicanalistas argumentam nas controvérsias deixam uma sensação de pessimismo sobre nossa capacidade de encontrarmo-nos em um terreno comum. De sua parte, Tucket (1994a) considera esta situação uma oportunidade para a mudança: “Chegou o tempo, não apenas de revisar nossa metodologia para induzir nossas verdades, mas também de desenvolver novos enfoques que tornem possível estarmos abertos a novas ideias e, por sua vez, de sermos capazes de avaliar sua utilidade por meio de argumentações arrazoadas. A alternativa é a Torre de Babel” (p. 865).

Certamente, a exuberante diversidade de teorias é produto inevitável da prática clínica. No seu afã de manter a vitalidade da situação analítica, o analista vai, necessariamente, modificando sua técnica, de maneira mais ou menos idiossincrática, às vezes afastandose bastante da técnica ‘standard’, ou seja, daquela que internalizou como ‘a análise correta’. Tais modificações técnicas relacionam-se mais com uma “teoria intrinsecamente privada [sobre] o material do paciente do que [com] as teorias oficiais públicas, às quais o analista pode subscrever-se conscientemente” (Sandler. 1983, p. 38). Nós, psicanalistas, somos experts em construir narrativas que, em seu detalhe, pretendem captar a singularidade da subjetividade dos pacientes. É altamente provável que os desenvolvimentos na teoria psicanalítica, ao longo da história, provenham, precisamente, do fato de que algumas destas teorias privadas foram “oficializadas”. O problema não está aí, mas sim no transpassar inadvertido, na confusão dos níveis de abstração. A estes fragmentos teóricos, produtos de inferências indutivas que se aplicam bem a um paciente em particular, atribui-se um valor universal que não possuem, o que engendra uma teoria oficial “sobre-especificada” (Fonagy, 2006). Esta generalização espúria é, em última instância, a razão da ‘confusão de línguas’ na construção da teoria em psicanálise.

 

2. Em direção a uma fenomenologia da prática em psicanálise

A pergunta que me coloco, em relação à prática psicanalítica, pode ser formulada da seguinte maneira: Como podemos estar seguros de que vemos a prática clínica tal como é, de que a conhecemos em sua própria realidade e que não estamos simplesmente projetando sobre ela nossas próprias teorias? É óbvio que os sistemas conceituais são absolutamente necessários para quem pretenda observar qualquer realidade e comunicar o visto, de forma válida; no entanto, frente a processos intersubjetivos, nos quais a exigência de validação é tão necessária quanto difícil, o risco de apriorismo nos esquemas converte-se em um problema. Por muito tempo, temos subestimado a complexidade da situação clínica e suposto uma relação simples e direta entre teoria e prática em psicanálise.3 A existência inegável, de diferentes práticas, obriga-nos a desenvolver um método que nos permita descrever tais diferenças de uma maneira confiável.

Estudando os debates que aconteceram durante a década de 1970, em Buenos Aires e Montevidéu, quando as ideias kleinianas entraram em contato com o pensamento lacaniano, Bernardi (2003) mostrou que a dificuldade para estabelecer controvérsias genuínas, que estejam a serviço do desenvolvimento da disciplina, não depende tanto de características próprias das teorias (como, por exemplo, sua incomensurabilidade), mas sim de estratégias defensivas destinadas a manter as premissas de cada teoria, a salvo dos argumentos da outra parte. Portanto, as dificuldades do diálogo não se devem tanto a razões teóricas, mas a razões práticas. Certamente, a situação descrita, de falta de verdadeira confrontação entre pontos de vista diferentes, impediu a formação de um corpo teórico-prático coerente em psicanálise. Com tudo isso, as dificuldades multiplicam-se quando se trata de compartilhar a prática clínica em si mesma.

O primeiro obstáculo reside, precisamente, em que não se atribui à prática um estatuto próprio, independente da teoria. Em vez de um debate apoiado em argumentos e exemplos clínicos, o que costuma acontecer é um debate puramente ‘teórico’, tornando óbvias as peculiaridades da prática. O segundo obstáculo é ainda mais espinhoso. O estudo da série Psychoanalyst at Work, publicado no International Journal of Psychoanalysis, levou Tuckett (2007) a afirmar que “a tradição da discussão psicanalítica do material clínico de outro colega é, por assim dizer, de supervisioná-lo” (p. 1047). A supervisão do material apresentado parece ser o padrão de discussão habitual nas sociedades psicanalíticas e nos congressos internacionais. Coube a mim, pessoalmente, fazer o relatório final dos diferentes painéis que discutiram material clínico apresentado por Helmut Thomä, no Congresso Psicanalítico de Nova Orleans. Com antecedência, Thomä havia comunicado seu temor de não ser entendido e de não ser discutido, a partir de seus próprios termos e, ao contrário, ser ‘supervisionado’ a partir das teorias preferidas pelos painelistas (Thomä, Jiménez & Kächele 2006, p. 193s)4. Num trabalho recente, Thomä & Kachele (2007) colocam que “para fazer da psicanálise comparativa uma empresa frutífera, é essencial avaliar como o analista, em questão, aplica seu conhecimento profissional em interações específicas” (p. 651). Então, um problema crucial é que, nas apresentações de material, quem apresenta habitualmente não se preocupa em explicitar as razões a partir das quais interveio da maneira como o fez e, quem o discute, tampouco se interessa em elucidar as razões do apresentador. Produz-se, assim, um diálogo de surdos que nunca se encontram em um terreno comum, o que conduz a mal-entendidos e a uma crescente babelização.

A seguir, tentarei avançar passos, em direção à construção de uma fenomenologia da prática em psicanálise. Sumariamente, usar o método fenomenológico significa por atenção cuidadosa e reflexiva ao modo como uma realidade se nos apresenta, tratando de colocar, entre parênteses, os preconceitos que temos acerca dela (Jiménez, 2003). É algo assim como ver a situação analítica, como costumava dizer Freud, in statu nascendi, isto é, em seu momento original.

Uma maneira proveitosa de aproximar-se de um fenômeno é pela exploração do significado original das palavras que o designam. A palavra “prática”, presente em todos os idiomas europeus, vem do grego práxis, e não apenas significa ação, ato, atividade, exercício, execução, realização, mas também significa maneira de fazer, maneira de ser, resultado, consequência. Deste modo, algo “prático” é precisamente algo “que faz”, ativo, eficaz (Mendizabal 1959). Este último sentido é o que Owen Renik toma, em seu livro Practical Psychoanalysis for Therapists and Patients (2006). Para Renik, numa psicanálise prática, o paciente é capaz de revisar, com seu analista, diversos aspectos da maneira como ele ou ela constrói a realidade com o resultado de sentir-se melhor. Gostaria que vocês retivessem esta definição para quando, mais à frente, examinarmos a chamada tese do Junktim, isto é, da união inseparável entre conquista de conhecimento e cura, em psicanálise.

Demos mais um passo, e tentemos nos colocar no ‘aqui e agora’ da situação do analista com seu paciente, e comparemos essa situação com a de uma supervisão. Durante uma supervisão, olhamos os acontecimentos depois que eles se deram; portanto, é natural perguntar-se pelo por que eles aconteceram. O que se busca, assim, é uma explicação; este é o momento próprio das teorias psicanalíticas enquanto razões explicativas. Mas se nos colocarmos na situação na qual eles estão acontecendo, ou seja, no lugar do analista, no momento em que interatua com seu paciente, é claro que a tarefa não é tanto de explicação, mas sim de predição, isto é, de determinar o que acontecerá no futuro, como reagirá o ou a paciente, se o analista intervém de tal ou de qual maneira. A tarefa de predição exige razões práticas e não teóricas.5 As razões práticas buscam responder, a partir de uma série de alternativas – nenhuma das quais foi, todavia, consumada –, sobre qual delas é a melhor, ou seja, sobre o que é que se deve fazer. Não se trata, então, de questões sobre o fato e de sua explicação, mas sim de assuntos de valor, do que é desejável fazer.

Durante a sessão, na mente do analista, há um movimento permanente entre razões teóricas que, ao modo de miniteorias parciais, permitem-lhe entender e explicar a interação do momento, em termos do conhecimento adquirido ao longo do processo, e razões práticas, que orientam a tomada de decisões com relação ao que dizer, e a quando e como intervir. Se temos à mão material de uma sequência de sessões, seguramente encontraremos confirmação, ou refutação, das predições que o analista arrisca fazer, durante uma sessão em particular. Isso é, sem dúvida, algo que não corresponde à realidade do momento em questão, pois aqui não se trata de encontrar explicações ex post facto, e sim de aventurar hipóteses preditivas sobre algo que ainda não aconteceu. No arrazoado prático, o agente busca pesar e avaliar suas razões para atuar, busca ponderar o que fala a favor ou contra os cursos alternativos de ação que se abrem frente a ele. E, mais ainda, esta decisão toma-se, definitivamente, em primeira pessoa; isto é, desde um ponto de vista subjetivo, em termos da predição na qual se encontra naquele momento. Assim, a decisão de intervir traz, consigo, toda a singularidade de um encontro com o outro, no aqui e agora. Este é um momento ideográfico, criativo e inefável, no qual o analista assume um risco que, por razões de princípio, nunca pode ser totalmente cingido pela teoria explicativa; este é, por assim dizer, um momento “vazio” de teoria.

Contudo, se vamos para além das aparências, na realidade este momento de suposto “vazio” de teoria não é assim, pois nele o analista faz uso de conhecimento teórico-prático, primariamente não consciente, e aplica-o sem dar-se conta de que o faz. Há 25 anos, Joseph Sandler (1983) mostrou-nos que:

Com o aumento da experiência clínica, e à medida que se torna mais competente, o analista constrói pré-conscientemente (descritivamente falando, inconscientemente) toda uma variedade de segmentos teóricos que se relacionam diretamente com seu trabalho clínico. Eles são produtos do pensamento inconsciente, em grande medida teorias parciais, modelos ou esquemas que têm a qualidade de estar disponíveis, por assim dizer, como reserva, para serem evocados cada vez que for necessário. O fato de que podem se contradizer, mutuamente, não é problema. Coexistem, felizmente, enquanto sejam inconscientes. (p. 38; grifos meus)

Se isto é assim, então nós, analistas, iguais aos neuróticos, não somos “senhores em nossa própria casa”; trabalhamos com nossos pacientes sem saber, cabalmente, como o fazemos. Uma parte importante do trabalho analítico, se não a mais importante, desdobra-se no nível do implícito. Victoria Hamilton (1996) lembra-nos que “mesmo os pensadores mais consistentes, praticam inconsistentemente e de maneira que são mais pessoais e idiossincráticas” (p. 317). O dito anterior tem consequências importantes sobre as discussões clínicas, pois quem discute costuma fazê-lo a partir de suas próprias teorias explicativas explícitas, ou seja, as oficiais e públicas. Entretanto, quem apresenta o material provavelmente não alcança perceber, de maneira acabada, e nem mesmo a comunicar, as razões práticas, implícitas que o levaram a intervir de tal ou qual maneira. Por certo, esta situação não pode senão obstaculizar a possibilidade de um diálogo clínico construtivo.

Provavelmente seja esta uma das razões do por que a tradição de supervisionar, durante as discussões clínicas, falha em captar a essência do trabalho do analista com seu paciente. A singularidade da relação terapêutica constrói-se no emaranhado de predições e validações (ou refutações) que constituem o diálogo entre analista e paciente. Neste sentido, é útil pensar no trabalho analítico como um trabalho artesanal. Um artesão costuma utilizar quantidades limitadas de materiais e de instrumentos teórico-práticos para criar suas obras. De maneira semelhante, o analista vale-se de informação heterogênea, acumulada durante sua formação e experiência, e que deve ser criativamente adaptada a cada caso concreto. Em nosso artesanato psicanalítico, como norma, utilizamos materiais (modelos de trabalho, teorias parciais, esquemas) preexistentes. A combinação de atenção igualmente flutuante e associação livre facilita a evocação, momento a momento e espontânea, destes modelos na interação diádica. O trabalho está guiado pelas teorias ou metamodelos do analista sobre o ‘melhor modo’ de psicanalisar. Em suma, estou descrevendo a natureza construtivista do trabalho clínico, segundo a qual o analista parte de materiais diversos, em origem e natureza (Jiménez, 2008). Para Canestri (2006), “não se deve subestimar a quantidade de elementos de todo tipo e origem que constribui para a construção destas ‘teorias’ ou modelos parciais. Entre estes elementos estão os conteúdos específicos do inconsciente e pré-consciente do analista, sua Weltanchauung, a psicologia do senso comum, sua conexão com um grupo ou escola psicanalítica, a qualidade desta conexão e a relação que ele tem com as ‘autoridades’ psicanalíticas, suas crenças científicas e pré-científicas, seu elaboração e reelaboração pessoal dos conceitos da disciplina, sua contratransferência etc. […] Se se leva em conta a especificidade da prática clínica, pode-se ver que os conceitos em psicanálise nunca estão formados de uma vez para todas, mas estão em constante transformação e reelaboração” (p. 13s).

Com tudo isso, penso que, neste processo de ‘contínua transformação e reelaboração’ dos conceitos, tem-se subestimado o papel do paciente. Aqui, encontramo-nos com o tema de uma heurística intersubjetiva, pois trata-se do papel que atribuímos à interação entre duas mentes trabalhando conjuntamente. Com isto, sugiro que, na mente do analista se dá um processo continuado de tomada de decisões que, sobre o fundo do ‘uso implícito das teorias explícitas’6 está influenciado permanentemente pela ação e reação do paciente. No decorrer desta interação, produzem-se os processos de validação ou refutação das intervenções do analista.

Disse, anteriormente, que o trabalho analítico está guiado pelas teorias ou metamodelos do analista sobre o ‘melhor modo’ de psicanalisar. Devemos, em seguida, revisar mais de perto o que podemos entender pelo ‘melhor modo de analisar’, o que nos leva às diversas maneiras de conceber a teoria psicanalítica da mudança.

 

3. A teoria nuclear da mudança terapêutica, na prática clínica

Como bem o mostraram Thomä & Kächele (1987), o núcleo da concepção causal da teoria da mudança terapêutica, em psicanálise, está formulado no Epílogo de “Podem os leigos exercer a análise?” (Freud 1927):

“Na psicanálise, desde o começo, existiu uma união inseparável [Junktim] entre curar e investigar; o conhecimento trazia o êxito, e não era possível tratar sem inteirar-se de algo novo, nem se ganhava um esclarecimento sem vivenciar seu benéfico efeito. Nosso procedimento analítico é o único em que se conserva esta preciosa conjunção. Apenas quando cultivamos a cura analítica de almas é que aprofundamos na intelecção da vida anímica do ser humano, cuja luz viva do entendimento acabávamos de entrever. Esta perspectiva de ganância científica foi a característica mais preclara e promissora do trabalho analítico” (, p. 256).

Úrsula Dreher (2000) mostra-nos que, se em tempos de Freud tal conjunção entre cura e investigação pode não ter sido problemática, a partir do entendimento atual esta pretendida união necessita de elaboração. Todavia, sem entrar na controvérsia acerca do que se entende por investigação, é possível descrever importantes diferenças na maneira como, na prática clínica, os psicanalistas têm concebido a união entre conquista do conhecimento e cura. O tema conecta-se com o assunto das metas ou objetivos da terapia psicanalítica.

A história da psicanálise mostra que nunca houve muito consenso quanto aos objetivos ou metas do tratamento analítico (Sandler & Dreher 1996). Desde os tempos de Freud tem existido uma variedade de opiniões que vão desde a ideia de que a psicanálise é uma busca da verdade acerca do paciente (Segal, 2006) até a visão de que seu objetivo é a remoção ou diminuição de sintomas, através de formações de compromisso mais efetivas e adaptativas (Brenner, 1982). Na prática, pareceria existir uma polarização entre dois extremos indesejados; por um lado, o chamado furor curandi e, por outro, a condução de tratamentos que se dão sem objetivos claramente estabelecidos. A esse respeito, Gunderson e Gabbard (1999) declaram que “em nossa experiência como consultores de outros terapeutas e analistas, temos observado que não são raros os tratamentos que vagam indefinidamente. Às vezes, eles justificam-se estabelecendo uma distinção entre metas ‘analíticas’ e ‘terapêuticas’” (p. 694). Renik (2006) parece ter a mesma opinião, quando afirma: “A maioria dos psicanalistas oferece […] uma longa viagem de autodescobrimento, durante a qual se considera contraproducente a preocupação demasiada com o alívio dos sintomas” (p. 1).

Marília Aisenstein (2003) adverte que a pergunta – bem conhecida nos círculos psicanalíticos franceses – “a cura chega como um subproduto do tratamento psicanalítico? tem sido frequentemente atribuída a Jacques Lacan”. Lacan fez desta ideia, originalmente de Freud, “praticamente um imperativo: o psicanalista não deve ter interesses na terapia, posição que influiu amplamente na psicanálise, na França” (p. 263). Mesmo quando Aisenstein insiste em que é um erro separar a metaterapêutica do processo analítico, ela reafirma que a busca da verdade representa a base da melhora na psicanálise. É certo que a ideia de que há que se buscar a verdade do inconsciente, e que a cura virá por acréscimo, é muito generalizada em psicanálise, e não apenas patrimônio da tradição psicanalítica francesa.

Sem dúvida, há um amplo acordo entre psicanalistas das mais diversas orientações de que “ao longo de uma terapia, em especial de uma exitosa, sobrevém uma sensação clara de estar encontrando e formulando, gradualmente, uma verdade sobre o paciente” (Strenger, 1991, p. 1; grifo meu). Hanna Segal (2006) o diz, da seguinte forma: “o tipo de verdade que concerne à psicanálise é a verdade a respeito da realidade psíquica, a respeito do funcionamento da mente e suas raízes inconscientes” (p. 284). As divergências surgem quando se trata de detalhar o que se entende por encontrar e formular a verdade acerca do paciente. Neste sentido, as diferenças são significativas.

Mesmo quando estamos de acordo com isto, que é tratar da busca da verdade do paciente, surge naturalmente a pergunta: Quem determina qual é a verdade do paciente? Como avaliar qual é a verdade do paciente em um momento específico? Aqui é onde se produz a maior concentração de opiniões divergentes e as maiores consequências para a prática. Na resposta a estas perguntas, podemos distinguir basicamente duas concepções. Por um lado, uma concepção monádica, que coloca o analista como um experto que ‘conhece melhor’ o funcionamento da mente do paciente e suas raízes inconscientes, e uma concepção diádica, que coloca que a verdade é coconstruída na interação interpessoal e intersubjetiva entre paciente e analista.

Uma fenomenologia da prática em psicanálise não apoia a concepção monádica. E mais ainda, penso que, nesta concepção, os critérios para avaliar o ‘funcionamento da mente e suas raízes inconscientes’ tendem a surgir mais das ‘teorias’ que o analista tem em sua mente, que do paciente. A concepção diádica predispõe o analista a escutar com mais cuidado o que o paciente busca no tratamento, que geralmente é se sentir melhor, ainda mesmo quando, é certo, muitos pacientes busquem fazê-lo por meio da ampliação do conhecimento de si. O alívio sintomático transforma-se, assim, em um guia na busca da verdade do paciente. Para Renik (2006), “muitas das decisões que um analista toma – o que investigar, como intervir – devem ser determinadas pelo caso, se o paciente estiver experimentando benefício terapêutico” (p. 26). Para Thomä & Kächele (2007) “o junktim apenas se satisfaz, se se prova o ‘efeito benéfico’” (p. 662). Para estes autores, os relatos de tratamento, quer dizer, as apresentações de material clínico, devem estar centradas em mostrar as mudanças no paciente.

Se é certo que, durante muito tempo prevaleceu a ideia de que o objeto da psicanálise é a busca da verdade do inconsciente, nas últimas décadas “observa-se uma redefinição de [seu] objeto de estudo para a particular figura intersubjetiva, constituída pela relação analista-paciente” (Canestri, 1994, p. 1079). Neste último sentido, não é possível continuar separando a exploração do inconsciente com a consideração do que paciente e analista tentam com tal busca, e que vai para além da contemplação da conjeturada verdade do inconsciente. Parafraseando Sandler & Dreher (1996), não é possível continuar ignorando ‘what analysts and patients want’. A busca da verdade do paciente não se faz no vazio, mas sim no seio de uma relação entre duas pessoas, o que nos leva a aprofundar no tema da validação no contexto clínico.

A validação no contexto clínico, isto é, dentro da sessão com o paciente, é um processo permanente e ineludível. Como coloca Tuckett (1994b), “é parte essencial da técnica analítica aceita, que busquemos corrigir nosso entendimento e interpretação, de acordo com um constante monitoramento subjetivo da ‘verdade’ do que pensamos que está se passando” (p. 1162).

Desde o ponto de vista da validação do trabalho psicanalítico durante a sessão, os critérios clássicos de verdade, coerência, correspondência e utilidade do conhecimento, podem considerar-se como abstrações de um processo único e amplo de validação, que inclui observação, conversação e interação (Kvale, 1995). Para que seja aplicável à realidade psicanalítica, deve-se substituir a ideia clássica do conhecimento como reflexo da realidade, por uma concepção na qual o conhecimento é uma coconstrução social e linguística da realidade intersubjetiva entre paciente e analista. Na situação analítica, analista e paciente estão permanentemente interpretando e negociando o significado da relação, passando isto a ser matéria de comunicação entre ambos. A conversação chega a ser o contexto último, dentro do qual se deve entender o conhecer (Rorty, 2000). A verdade constitui-se através do diálogo; o conhecimento válido emerge como resultado de interpretações e possibilidades de ações alternativas e em conflito, as quais são discutidas, negociadas e discernidas, seguindo as regras do método psicanalítico.

No contexto clínico, o que interessa é a relação entre significados e atos, entre interpretação e ação. Se abandonarmos a dicotomia entre fatos e valores, ao assunto da verdade agrega-se o tema da estética e da ética. Ao se tratar de construção social, a beleza e o valor do uso do conhecimento construído passam a ocupar o primeiro plano. Produz-se, assim, uma virada: de um modelo psicanalítico baseado na arqueologia, em que o objeto é o descobrimento de uma verdade escondida, a um modelo arquitetônico, em que o que importa é a construção de uma nova casa. A ênfase é posta, agora, na prova pragmática por meio da ação. O tema do valor do conhecimento não pertence mais a um âmbito separado do conhecimento ‘científico’, mas está intrinsecamente unido à criação e aplicação deste.7

Validar, na sessão analítica, é, então, um processo permanente de checagem de hipóteses e conjeturas, de questionamento das mesmas e de comparação com as teorias e modelos que o analista tem à mão nesse momento. Nesse processo, a coerência do próprio discurso passa a ser um critério de validação. Mas validar também é checar o conhecimento com o paciente. Através do diálogo, analista e paciente chegam a consensos ou marcam suas diferenças sobre o observado, sobre o que para eles será considerado como ‘dado clínico’ e seu significado.

Contudo, a conquista do conhecimento consensual sobre observações e seus significados não esgota a validação no contexto clínico. A validação pragmática das interpretações vai para além da validação comunicativa. O interesse – que guia as razões práticas de ajudar os pacientes a alcançar a mudança desejada – é intrínseco à empresa terapêutica. Para Freud, um dos diferenciais da psicanálise é, precisamente, o de que a investigação e a cura vão de mãos dadas. Se a validação comunicativa inclui um aspecto estético, a validação pragmática implica a dimensão ética. Para Freud, não bastava a validação comunicativa; para ele, o ‘sim’ ou o ‘não’ do paciente à intervenção do terapeuta nunca foi uma confirmação ou invalidação suficientes. Recomendava formas mais indiretas de validação, mediante a observação de mudanças na conduta do paciente, subsequente à interpretação, tais como mudanças nas associações, sonhos, surgimento de recordações ou alteração dos sintomas. Para Ricoeur (1977), “o êxito terapêutico […] constitui […] um critério autônomo de validação” (p. 868). A verdade narrativa constrói-se no encontro terapêutico, carrega consigo a convicção de uma ‘boa história’, e deve ser julgada tanto por seu valor estético como pelo efeito curativo de sua força retórica (Spence, 1982).

Em resumo, um exame dos processos de validação, na situação clínica, levam-nos à conclusão de que o esforço de compreensão do material clínico, próprio e alheio, deveria consistir, primariamente, em desvelar as razões práticas que subjazem às intervenções do analista e à relação destas com as mudanças observadas no paciente.

 

4. Para além da união inseparável: estudar a prática em seus próprios méritos

Depois de esboçar uma fenomenologia da prática em psicanálise, devemos fazer um percorrido pela teoria da mudança terapêutica. No que apresento, a seguir, tentarei dar um passo a mais, colocando, em interdito, o núcleo central da teoria psicanalítica da mudança. Adianto a afirmação de que a ideia do junktim, isto é, de que no tratamento psicanalítico ‘o conhecimento traz o êxito, e que não é possível tratar sem se inteirar de algo novo, nem se ganha um esclarecimento sem vivenciar seu efeito benéfico’, não pode continuar sendo sustentada como uma verdade universal. Não me escapa a gravidade desta afirmação, mas estou convencido de que a ideia do junktim não faz justiça à realidade da prática dos psicanalistas, e nem tampouco ao conhecimento que temos, atualmente, sobre os mecanismos de mudança terapêutica. Para atrever-me a desafiar uma tese tão central no pensamento de Freud, apoio-me em suas próprias palavras quando, referindo-se com admiração a Charcot, escreveu que este “não se cansava nunca de defender os direitos do trabalho puramente clínico, consistente em ver e ordenar, contra a intervenção da medicina teórica” (Freud, 1893, p. 13). Na nota necrológica sobre Charcot, Freud recorda que um de seus alunos, certa vez, colocou-lhe que um dado fato clínico não podia ser aceito, pois contradizia a teoria. A resposta de Charcot não se fez esperar: ‘Tanto pior para a teoria. Os fatos clínicos têm primazia’. E terminou com uma frase que impressionou intensamente ao jovem Freud: ‘La théorie c’est bon, mais ça n’empêche pas d’exister” (p. 13).

Até onde chega meu conhecimento, o primeiro que restringiu, explicitamente, o alcance da ideia da união inseparável entre conquista de conhecimento e cura foi o psicanalista latino-americano, José Bleger. Em seu trabalho póstumo de 1971, “Critérios de cura e objetivos da psicanálise”, observou que não é infrequente que o “paciente se beneficie de um tratamento psicanalítico sem ter-se curado do que desejavam curar. […] Em outros casos – coloca ele –, considera-se um bom progresso e um bom final de tratamento (quando não se pode conseguir outra coisa) que o paciente reconheça e aceite seus sintomas, seus erros, limitações e dificuldades. Quer dizer, se conseguem […] objetivos ou efeitos maiêuticos [ou de autoconhecimento] e não os curativos” (Bleger, 1973, p. 79).

Naturalmente, nós, clínicos, também conhecemos o caso contrário, a saber, pacientes em que a magnitude do autoconhecimento adquirido no processo faz justiça ao alcance das mudanças sintomáticas e estruturais conquistadas. O grupo de estudos do processo de mudança, de Boston (PCSG, 1998; Stern 2004) oferece-nos uma explicação para este fato clínico. Eles propuseram um modelo de mudança na terapia psicanalítica que sustenta que o efeito terapêutico do vínculo analista-paciente está nos processos intersubjetivos e interativos que dão lugar ao que chamam conhecimento relacional implícito. Este é um campo não simbólico, diferente do conhecimento declarado, explícito, consciente ou pré-consciente, que se representa simbolicamente de um modo verbal ou imaginário. Historicamente, a teoria da mudança terapêutica centrou-se na interpretação da dinâmica intrapsíquica representada no nível simbólico, mais do que nas regras implícitas que governam as próprias transações com os outros. Estas regras não são conscientes; estão inscritas na memória procedural (???) de longo prazo. Os distintos momentos de interação entre paciente e terapeuta ganham forma num processo sequencial dirigido pelo intercâmbio verbal, que pode incluir variadas intervenções. O locus mutativo na terapia produz-se, todavia, quando o movimento de negociação intersubjetivo leva a momentos de encontro nos quais se compartilha o entendimento da relação implícita mútua; e, com isso, é produzida uma recontextualização do conhecimento relacional implícito do paciente. Nestes momentos, produz-se, entre paciente e analista, um reconhecimento recíproco do que está na mente do outro, no que tange à natureza atual e ao estado da relação mútua. O reconhecimento mútuo leva paciente e analista a um domínio que transcende a relação “profissional”, sem anulá-la e, ao fazê-lo, liberta-os parcialmente das tonalidades da relação transferência-contratransferência. O conhecimento compartilhado pode ser, posteriormente, validado a nível consciente. Mas pode também permanecer implícito.

É certo que o modelo proposto pelo PCSG deve ainda ser validado; no meu entender, não está claro o significado clínico e empírico do que eles chamam um “momento de encontro”. No entanto, o que está claro é que as ideias do grupo de Boston vai para além da teoria psicanalítica nuclear da mudança em psicanálise e apontam o papel que desempenha a qualidade do vínculo intersubjetivo, isto é, a chamada aliança terapêutica, como fator curativo independente, em terapia. A verdade é que o valor da experiência do paciente do analista, como elemento prognóstico e fator curativo, tem sido reconhecido desde os tempos de Ferenczi. Contudo, nunca teve, na teoria da mudança, um lugar comparável ao da interpretação e do insight, e continua sendo um tema controverso na psicanálise contemporânea. A seguinte citação, de um trabalho recente de Hanna Segal (2006), prova o que foi dito: “O Middle Group, […] estabeleceu um novo modelo da mente, derivado de Ferenczi e desenvolvido por Balint, Winnicott, e posteriormente, nos Estados Unidos, por Kohut. A diferença fundamental entre este modelo e os de Freud, Klein e seus seguidores, não reside no fato de que leva em consideração uma nova evidência clínica, mas sim no tipo de uso que fazem da evidência clínica. Surgiu uma nova preocupação, que se foca em várias noções de cura e mudança, que não se baseiam em alcançar a verdade, e que consideram as influências pessoais do analista […] como parte integral do processo analítico. Nisto, as mudanças na técnica são do tipo que as tornam essencialmente não analíticas. Elas vão ao contrário do esforço analítico de conseguir a mudança através da busca da verdade” (p. 289s).

Se é certo que a qualidade do vínculo, como fator de mudança terapêutica, não pertence ao núcleo da teoria da cura, neste ponto haveria que se responder como Charcot, ‘tanto pior para a teoria’, pois as descobertas de mais de 50 anos de investigação empírica em processo e resultados em psicoterapia apoiam a ideia de que a qualidade da relação terapêutica é o fator mais potente de mudança em toda forma de terapia, incluída a psicanálise. As intervenções específicas e, neste caso, a interpretação e a conquista do insight, explicam uma parte ínfima da variação dos resultados do tratamento (Wampold, 2001; Jiménez, 2007).

Desde um ponto de vista clínico, isto significa que as técnicas e intervenções não são eficazes em si, ou por si mesmas. O peso da evidência favorece a ideia de que a terapia é uma relação profissional, na qual a qualidade da relação pessoal entre paciente e analista é um fator-chave no aumento (ou na limitação) do impacto dos procedimentos terapêuticos (Orlinsky e Ronnestad, 2005). Certamente, isto também significa que a classe de técnicas que os analistas exitosos aplicam é muito maior do que o prescrito pela teoria da técnica oficial.

Em vista disto, Carlo Strenger (1991) é enfático:

... a consequência destes fatos para a questão da união entre verdade reconstrutiva e efeito terapêutico parecer ser a seguinte. A relação entre estas duas propriedades da interpretação, certamente não é tão categórica como Freud acreditou que fosse. A verdade reconstrutiva não é condição necessária nem suficiente para a eficiência terapêutica. (p. 140; grifos meus).

A especificidade da psicanálise na prática real dos psicanalistas também tem sido questionada pela investigação psicoterapêutica comparada. Ablon & Jones (1998) têm demonstrado que os tratamentos psicanalíticos incluem conjuntos diversos de intervenções, desde os quais os terapeutas, além de aplicar estratégias consideradas como de natureza psicodinâmica, de outra maneira e significativa, também aplicam intervenções técnicas que habitualmente são associadas ao enfoque cognitivo comportamental. Em outras palavras, existiria uma sobreposição significativa na maneira como terapeutas de diferentes orientações conduzem os tratamentos, e entre modelos teóricos que, assumidamente, correspondem a estratégias diferentes de intervenção. Suas investigações são consistentes com outras (Goldfried e cols. 1998; Jones & Pulos 1993), que têm encontrado uma extensa sobreposição entre terapias psicanalíticas, interpessoais e cognitivo comportamentais. Por certo, também se encontrou diferenças entre os enfoques, por exemplo, que a terapia cognitivo comportamental promovia o controle dos afetos negativos pelo uso do intelecto e da racionalidade, em combinação com uma vigorosa estimulação, apoio e reforço por parte dos terapeutas; nas terapias psicanalíticas; ao contrário, a ênfase esteve colocada sobre a evocação de afetos, no trazer à consciência sentimentos inquietantes, e em integrar dificuldades atuais dentro da experiência de vida prévia, usando a relação terapeuta-paciente como agente de mudança. Embora estas investigações tenham sido feitas em terapias breves, enquanto não houver dados que afirmem o contrário em terapias psicanalíticas de longa duração e de alta frequência, podemos assumir que, nestas últimas, a sobreposição descrita também existe.

Estamos, então, frente a um campo novo que exige mais investigação. Por exemplo, não é claro que as ideias de Sandler sobre as teorias implícitas que o psicanalista maneja, o que Fonagy chamou base de conhecimento psicanalítico implícito,8 sejam equivalentes ao conhecimento relacional implícito do grupo de Boston. Aqui há um tema, ainda não totalmente esclarecido, que aponta para a relação entre o conhecimento explícito, declarativo e simbólico, e o conhecimento implícito, procedural, não simbólico. Este último é en-atuado (???) na interação não verbal, e parte importante dele provavelmente nunca alcança o nível explítico (Jiménez, 2006).

Em todo caso, e frente aos novos achados da investigação sistemática em disciplinas afins da mente, e no processo e resultados em psicoterapia, é validada uma gama de intervenções técnicas que, embora não pertençam à teoria psicanalítica oficial da mudança, parecem ser aplicadas, privadamente, por muitos analistas em seu trabalho cotidiano. Gabbard & Westen (2003) sugeriram que deveríamos “mudar a questão de, se estas técnicas acaso são analíticas, para focalizarmos mais em, se acaso elas são terapêuticas. Se a resposta a esta questão é afirmativa – continuam eles –, a pergunta que se segue é como integrá-las [oficialmente] na prática psicanalítica e psicoterapêutica da maneira que mais ajude o paciente” (p. 826; a ênfase está no original). Para esses autores, uma teoria moderna da ação terapêutica deve descrever tanto o que muda (os objetivos do tratamento) como as estratégias que são provavelmente úteis para promover tais mudanças (técnicas). Chegamos a um ponto – acrescentam –, em que as teorias de mecanismo único de ação terapêutica – não importando quão complexas elas sejam – têm provado ser pouco úteis neste sentido, por causa da variedade de metas de mudança e da variedade de métodos eficazes para conseguir a mudança na direção de tais metas.

Finalmente, a argumentação que desenvolvi, ao longo desta apresentação, leva-me a propor que chegou o momento de liberar a prática da teoria, para assim estudá-la em seus próprios méritos. “Se a teoria é descolada da prática, a técnica poderá progredir sobre bases puramente pragmáticas, sobre a base do que se vê que funciona. A teoria psicanalítica da função mental poderia, então, seguir a prática, integrando as recentes descobertas pelos métodos inovativos de trabalho clínico” (Fonagy, 2006, p. 70). Esta é uma proposta metodológica e não epistemológica, pois uma separação total entre teoria e prática é impossível. A ideia é dar legitimidade às miniteorias implícitas, ou seja, dar a possibilidade de aflorar e de se expressar para poderem ser estudadas em seus próprios méritos.

Este programa de investigação é uma ampliação do que foi formulado por Sandler em seu trabalho de 1983,9 pois integra diferentes formas de investigação moderna em disciplinas da mente (Jiménez, 2006). Trata-se da construção de um novo paradigma, que se baseia nos princípios do pluralismo metodológico e que, acredito eu, pode tirar a psicanálise de seu isolamento secular (Luyten, Blatt & Corveleyn, 2006). Quando falo de investigação sistemática da prática, refiro-me tanto à investigação empírica em processo e resultados, como à nova metodologia qualitativa que foi introduzida pelo movimento de renovação científica dos Working Party (Canestri, 2006; Tuckett e cols. 2008).

Termino esta apresentação com uma mensagem esperançosa: A iniciativa científica, impulsionada pela Federação Psicanalítica Europeia (Tuckett, 2002; 2003), que tornou possível o surgimento do movimento dos Working Party, oferece-nos uma metodologia para investigar coletivamente uma parte importante do campo do implícito na prática da psicanálise. É altamente significativo, para a argumentação que apresentei ao longo deste trabalho, comprovar que a metodologia usada para discutir material clínico nos Working Party parte do respeito à seguinte regra fundamental: Psicanálise é aquilo que é praticado pelos psicanalistas (Sandler, 1982, p. 44), o que significa que “todo apresentador é considerado pelo grupo como psicanalista, não importando o que ele mostre” (Tuckett, 2007, p. 1051). Minha própria experiência como apresentador de material clínico durante a Conferência da Federação Europeia, em março de 2007, confirma minha convicção de que estamos frente a um novo começo. Acredito, firmemente, que esta maneira inédita de aproximar-se da prática dos psicanalistas trará consigo uma mudança cultural que resultará numa revitalização da psicanálise.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Juan Pablo Jiménez
Av. Salvador 486
Santiago, Chile
E-mail: jjimenez@med.uchile.cl

Recebido em: 20.5.2009
Aceito em: 10.6.2009

 

 

1 Tradução de Maria Teresa Moreira Rodrigues, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Grasping psychoanalysts’ practice in its own merits. Keynote Lecture. Conferência apresentada no 46o Congresso da Associação International de Psicanálise. Chicago, 29 de julho a 1 agosto de 2009. ipa – Psychoanalytic Practice: Convergences and Divergences.
2 Depto. de Psiquiatria e Saúde Mental Oriente, Universidade do Chile.
3 Por exemplo, Etchegoyen (1986) estabelece uma relação biunívoca entre teoria e prática, quando afirma: Assim como há uma correlação estrita da teoria psicanalítica com a técnica e com a investigação, também se dá, na psicanálise, de forma singular, a relação entre a técnica e a ética” (p. 27; itálicos meus).
4 Por certo, supervisionar não significa, necessariamente, ver o material alheio desde o ponto de vista das teorias oficiais e públicas preferidas do supervisor. Imre Szecsödy, psicanalista húngaro-sueco, desenvolveu um método de supervisão analítica, com forte base empírica, de acordo com o qual trata-se de criar, na relação com o supervisionando, uma situação de aprendizagem mutativa, na qual este aprende a reconhecer o sistema de interação que estabelece com seu paciente (Szecsödy, 1990).
5 A distinção entre razões teóricas e razões práticas é um antigo tema filosófico que se pode rastrear até o próprio Aristóteles. Estas diferem pelo caráter do seu fim; a razão prática é estimulada pelo objeto do apetite. Os escolásticos seguiram a tradição, fazendo a diferença entre razão especulativa e razão operativa, diferença que Kant também retoma, quando destaca que as duas razões, a teórica e a prática, não são dois tipos distintos de razão, e sim a mesma razão que difere em sua aplicação (cf. José Ferrater Mora, 1969).
6 O ‘uso implícito’ aponta para um processo de decisões que está determinado por razões práticas que julgam o valor do uso ou a utilidade das teorias explícitas, em um determinado momento. Neste caso, a pergunta que orienta, não é o porquê, mas sim o para quê.
7 Peter Fonagy, recentemente, adiantou idéias similares. “A teoria psicanalítica, como qualquer outra teoria, serve, inconscientemente, para organizar a ação. Assim, a verdade de uma teoria já não é vista como algo absolutamente restrito à sua relação com uma realidade externa. Muito mais, a validade de uma teoria repousa na sua capacidade para facilitar a ação. O conhecimento não é a constatação (awareness) de fatos absolutos, mas sim a capacidade de alcançar um objetivo dentro de um contexto específico” (Fonagy, 2006, p. 83).
8 “Esta [...] reconstrução teórica ainda não teve lugar na teoria pública da psicanálise. Mantém-se em um recipiente inexplorado, algo misterioso, que se poderia chamar a base de conhecimento psicanalítico implícito” (Fonagy, 2006, p. 83, a ênfase está no original).
9 “É minha firme convicção que a investigação das teorias implícitas privadas dos psicanalistas clínicos abre uma porta maior na investigação psicanalítica” (Sandler, 1983, p. 38).

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