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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.2 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGOS

 

Enactment: modelo para pensar o processo psicanalítico1

 

Enactment: modelo para pensar el proceso psicoanalítico

 

Enactment: model to think of the psychoanalytical process

 

 

Nelson José Nazaré Rocha2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de uma breve revisão bibliográfica, o autor inicia o artigo descrevendo e discutindo o conceito de enactment, e a maneira como ele define este e outros termos.
Seguindo a diferenciação proposta por Jacobs entre enactments abertos e fechados, o autor apresenta um curto exemplo clínico do primeiro e uma situação clínica mais complexa para ilustrar o segundo tipo.
Em seguida, usando a última ilustração, o autor examina a importância do conceito na sua aplicação clínica, discutindo ainda a sua validade como um instrumento para a compreensão e para o trabalho com os fenômenos clínicos, e em suas diferenças relacionadas aos conceitos de acting out e identificação e contraidentificação projetivas.
O autor conclui, defendendo o uso desse conceito como um modelo – no sentido em que foi usado por Bion: como um instrumento para pensar, que deve ser abandonado após o uso – para auxiliar a descrever e a pensar sobre a situação analítica.

Palavras-chave: Enactment; Acting out; Identificação projetiva; Contraidentificação projetiva; Adolescente borderline.


RESUMEN

A partir de una revisión bibliográfica, el autor inicia el artículo describiendo y discutiendo el concepto de enactment, y la manera como él define este y otros términos.
Siguiendo la diferenciación propuesta por Jacobs entre enactments abiertos y cerrados, el autor presenta un breve ejemplo clínico del primero y una situación clínica más compleja para ilustrar el segundo tipo. Seguidamente, usando la última ilustración, el autor examina la importancia del concepto en su aplicación clínica, discutiendo también su validez como un instrumento para la comprensión y para el trabajo con los fenómenos clínicos y la diferenciación con respecto a los conceptos de acting out e identificación y contra-identificación proyectiva.
El autor concluye definiendo el uso de este concepto como un modelo – en el sentido en que fue usado por Bion: como un instrumento para pensar, que debe ser abandonado después de su uso – para auxiliar a describir y a pensar sobre la situación analítica.

Palabras clave: Enactment; Acting out; Identificación proyectiva; Contra-identificación proyectiva; Adolescente borderline.


ABSTRACT

Through a brief bibliographical review, the author begins the paper describing and discussing the concept of enactment, and how he defines this and other terms. Following the differentiation proposed by Jacobs between overt and covert enactments, the author presents a short clinical example of the former and a more complex clinical situation to illustrate the second kind of enactment.
In the latter, the author examines the importance of the concept in its clinical application, also discussing the validity of this concept as an instrument for the understanding and working through of clinical phenomena, taking into consideration its differences vis à vis the concepts of acting-out and projective identification and projective counter-identification.
The author concludes the paper, defending the use of this concept as a model – in the sense it was used by Bion: as an instrument to think, to be abandoned after being used – in order to help describe and think about the analytic situation.

Keywords: Enactment; Acting out; Projective identification; Projective counter-identification; Borderline adolescent.


 

 

O conceito

O conceito de enactment tem sido muito usado ultimamente na literatura psicanalítica. A palavra não tem correspondente em português, como vários dos conceitos psicanalíticos. Seria algo como colocar em cena, encenar, mas não só. Pressupõe sim, uma espécie de encenação, mas é algo além disso. No meu modo de entender, concordando com muitos dos autores, difere do conceito de acting e acting out à medida que pressupõe uma encenação, uma atuação – também no sentido teatral, não só no sentido de acting out (ou in3), ou seja, ação no lugar de palavras – em que tanto o paciente quanto o analista tomam parte.

A despeito de ser relativamente novo, já é muito discutido por vários autores. Alguns rejeitam a proliferação de conceitos, postulam que já existe uma infinidade de conceitos novos na nossa ciência e que os já existentes dariam conta de tratar daquilo a que o novo conceito se propõe. Outros defendem o uso do termo, exatamente por permitir salientar a grande diferença com o conceito de acting out, mormente pela conotação negativa que este último adquiriu com o uso. Penso também que a grande validade do conceito de enactmenté distingui-lo do conceito de acting out, por ressaltar seu aspecto comunicativo. Não que o conceito de acting out não tenha sido usado também nesse sentido. Foi, mas concordando com muitos autores (entre os quais destaco: Roughton, 1993; Boesky, 1998; e Thomä & Kächele, 1989), o conceito ficou impregnado de conotação pejorativa, designando atos impróprios produzidos pelo paciente, às vezes até com características delinquenciais e, ademais, é usado até para descrever comportamentos do paciente que, fazendo parte de sua própria psicopatologia, nada tem a ver com a situação analítica em si.

Contudo, o maior diferencial do conceito de enactment é seu o aspecto inter-relacional: é a concepção de um fenômeno que ocorre envolvendo a díade paciente-analista, levando, entre outras coisas, à compreensão da contratransferência como uma criação conjunta do paciente e do analista, como diz Gabbard (1995).

Não vou aqui, neste espaço, tecer considerações conceituais sobre o tema; para tanto, recomendo o artigo de Cassorla (2001), onde são levantados vários postulados a favor e contra o conceito. Apenas salientarei um ou outro aspecto dessa discussão.

Começo por definir como vou utilizar este termo, uma vez que não há uma definição universal. Algumas tentativas de tradução já foram feitas. Alguns autores já usaram “posta em cena” ou “colocar em cena”, por exemplo. Prefiro, como outros, utilizar o termo em inglês, como já fazemos com tantos outros termos estrangeiros de difícil ou impossível tradução (insight, acting, rêverie etc.). Entendo por enactment um fenômeno clínico que pode ocorrer na inter-relação entre paciente e analista, iniciado por qualquer dos partícipes, mas necessariamente envolvendo uma espécie de encenação inconsciente dos dois – do contrário será uma atuação – na qual ambos representam papéis inconscientemente interrelacionados e interdeterminados.

Considerando ainda a falta de expressão equivalente em nossa língua, cito uma ideia apresentada por McLaughlin (Panel, 1992) na abertura de um dos famosos painéis sobre o tema, promovidos pela American Psychoanalytical Association. Este, o de 1989, do qual McLaughlin era o coordenador: “Na fala comum e na definição do dicionário, a palavra enactment sugere uma ação, cujo propósito, força e intenção são elevados à alta intensidade. Essa intensidade dá concretude e realidade ao impacto que causa na outra pessoa, implícita no campo da ação. É, portanto, um ato cuja intenção é persuadir ou forçar o outro a uma ação recíproca. A mensagem é expressa em palavras, silêncios, atitudes e particularmente em comunicações não verbais.” (p. 827) (tradução livre)

E assim, partindo desta ideia emprestada, saliento o que considero fundamental na descrição, ainda que fenomenológica, desse conceito: uma ação que tem tal característica de força e intenção que, encontrando no receptor condições que impeçam este último de processar conscientemente os efeitos dessa ação, determina como resposta uma outra ação, com características semelhantes e, desta forma, o processo se desenrola, com maior ou menor magnitude.

O enactment, em seu aspecto comunicativo, costuma veicular atualizações na transferência (Roughton, 1993), traumas, repetições, processos mentais muito primitivos e, desta forma, acontece uma espécie de formação de compromisso da dupla (Boesky, apud Panel, 1992), no qual, ao mesmo tempo, elementos são revelados enquanto outros são escondidos. Isto também já evidencia seu aspecto resistencial, o que não deixa de ser também uma comunicação. De qualquer forma, a função que será cumprida dependerá do uso que o analista puder fazer do fenômeno. Quando um enactment é percebido pelo analista, a análise obterá o que de mais precioso um enactment pode oferecer: compreensão dos mecanismos da dupla, dos mecanismos mentais do paciente e os do analista, o que implicará no desenvolvimento do processo. Quando, ou enquanto não é percebido, cumpre com sua função resistencial, ou, na melhor das hipóteses, segue-se colhendo o que de bom uma formação de compromisso pode oferecer numa situação dessas.

 

A clínica

Apresentarei a seguir material clínico, com o intuito de ilustrar e embasar clinicamente a discussão de um conceito que, como a própria psicanálise, nasceu da clínica.

Jacobs (2001) faz uma interessante distinção entre o que ele classifica como enactments“abertos” e “encobertos” (“overt” e “covert” enactments). Afirma que os abertos, os mais evidentes exatamente por esta característica, são logo percebidos pelo analista e tornam- se óbvios e abundantes materiais para análise. Todos temos exemplos deste tipo de fenômeno em nossa clínica: os pacientes que nos “colocam para dormir”, por exemplo, ou aquelas situações nas quais ficamos absolutamente confusos e incapazes de focalizar a escuta e organizar o pensamento etc. Vou citar uma situação desse tipo: uma pessoa, em análise comigo há mais de dois anos, iniciando seus estudos sobre psicoterapia e psicanálise, no meio de uma sessão me pergunta: “Ah! Você tem aquele artigo do Bion, ‘Ataques ao elo de ligação’?” Imediata e prontamente eu respondo afirmativamente, enquanto me levanto, pego o livro na estante e o entrego a ela. Assim que sentei em minha poltrona, dei-me conta do que havia acontecido. Após alguns instantes de intensa autocrítica, pude refletir sobre o ocorrido e vislumbrar o quanto aquela situação revelava dos mecanismos daquela pessoa, cuja queixa principal naquele momento era sobre o pai, que tudo lhe negava e nada facilitava no difícil início de sua carreira. Pudemos aproveitar essa situação para aprofundar a análise desses pontos e do seu funcionamento mental (sem falar no óbvio conteúdo que o próprio título do artigo solicitado expressava!).

Por sua vez, os enactments que Jacobs (2001) classificou como encobertos,4 aqueles mais sutis, não são tão facilmente perceptíveis e podem passar assim por um período de tempo bastante longo, carregando o risco de produzirem outras consequências para o processo analítico. Este tipo de enactment, “…condutores primordiais de comunicação entre analista e paciente” (Jacobs, 2001, p. 8), carregam mensagens que têm um maior impacto no processo. Também postula este autor que, por estarem na raiz de um impasse que se estabeleceu na dupla, eles têm o potencial de veicular conflitos entrelaçados entre paciente e analista, que assim podem ser compreendidos e a análise retomada.

Apresentei em outro lugar (Rocha, 2006) uma situação clínica na qual um enactment deste segundo tipo estava acontecendo há algum tempo. Tratava-se de um adolescente borderline, a quem eu chamei de Adriano, com o qual comecei a trabalhar quando ele tinha 15 anos. Em função da dinâmica da família de Adriano e, por uma série de acontecimentos e suas contingências, sem me dar conta disso, acabei recebendo seus pais em meu consultório muito mais do que era preciso, e mais do que suficiente para colocar em risco a necessária condição de intimidade do par analítico. Isto foi acontecendo aos poucos, no decorrer dos dois primeiros anos de análise, sem que eu me desse conta, como já disse, até que um dia aconteceu um fato, que eu descrevo no artigo supra citado, e que reproduzo aqui:

 

O fato

Adriano e eu trabalhávamos juntos há pouco mais de dois anos. Num dia comum até então, se é que existem dias comuns no trabalho psicanalítico, fui até a sala de espera para recebê-lo e me deparei com um rapaz que o acompanhava e que me disse:

“– Nelson, boa noite! Eu sou o Max, irmão do Adriano. Vim hoje com ele porque aconteceu uma coisa que você precisa saber e talvez o Adriano não tenha coragem de contar. Então eu peço a você que me deixe entrar para contar isso e depois eu saio e vocês conversam”.

Fiquei aturdido com essa inusitada solicitação. Tentando encontrar algum norte, olhei para Adriano, que estava com uma expressão muito embaraçada, e perguntei:

“– O que você acha disso, Adriano?”

Adriano meneou a cabeça afirmativamente, alternando seu olhar desconcertado para mim e para o irmão.

“– Você quer que o Max entre junto conosco, Adriano?”, indignado, insisti.

“– Fui eu que pedi para ele vir”, respondeu-me.

“– Então vamos”, disse eu, vencido, mas não convencido.

Quando entramos na minha sala, Max ia se sentando na poltrona que Adriano costumava usar. Sem pensar indiquei-lhe outra poltrona dizendo:

“– Sente-se aqui, esse é o lugar do Adriano”.

Max então me contou, com expressão grave e voz embargada:

“– Minha mãe foi para o exterior com o Marcos. O Adriano foi dormir na casa do Fred, amigo dele. Estava lá um priminho do Fred de cinco anos. A mãe do Fred saiu com a irmã, mãe do menininho e daí, enquanto o Fred estava tomando banho, o Adriano abaixou as calças do menino e enfiou o dedo no ânus dele, dizendo que iam fazer igual papai e mamãe faziam. O molequinho contou para a mãe e a mãe do Fred veio na hora trazer o Adriano de volta em casa e me contou o que tinha acontecido, dando o maior escândalo. Eu falei para o Adriano que conversasse isso com você, mas ele falou que não sabia se ia ter coragem de te contar essas coisas. Eu não sabia o que fazer, minha mãe não está aí… Daí eu propus para o Adriano que eu viesse te contar, assim pelo menos eu teria certeza de que você ficaria sabendo… Ele topou, achou melhor assim. Eu só combinei com ele que eu não contaria nada para a minha mãe por telefone, quando eles chegarem a gente conversa. É isso!” Fez menção de levantar-se.

Perguntei a Adriano: “– Tem alguma coisa que você queira conversar enquanto o Max está aqui?”

Fez que não com a cabeça dizendo muito baixinho, quase chorando: “– Só que fui eu que pedi para ele vir te contar isso”.

Max levantou-se, dirigiu-se ao irmão e muito afetivamente disse: “– Espero você lá fora, Adriano”. Agradeceu-me e saiu da sala.

Eu estava mais aturdido ainda. Meus sentimentos completamente confusos. Entre outros sentimentos, sentia compaixão e raiva ao mesmo tempo. “Por que Adriano foi fazer isso?”; “Por que esse moleque que se acha pai do Adriano tinha de invadir o espaço analítico?”; “Por que eu deixei?”; “… mas eu nunca notei nada de perverso no Adriano, o que será isso que ele fez?”; “Como o Marcos e a Raquel vão reagir a isso quando souberem? Vão esfolar o Adriano!…”; “Coitado do Max! É praticamente um menino ainda e tendo que segurar esse rojão!”; “Puxa vida, a mãe do Fred conhece o Adriano desde pequeno, além disso, é a médica dele! Será que ela não poderia ter sido mais continente com ele? E com o Max? Afinal, ela os conhece desde criancinhas e está sabendo que a mãe deles não está no país!…”; “E por que essa mulher tem de largar tanto os filhos assim também?” Enfim, minha mente estava num redemoinho de perguntas e de sentimentos.

Ao mesmo tempo eu sentia que tinha de oferecer alguma segurança para aqueles dois rapazes-meninos que estavam ali perdidos, na minha frente. Enquanto me levantava para abrir a porta para Max sair, disse a ele: “– Acho que foi bom você não ter contado para a sua mãe por telefone. É melhor que eles fiquem sabendo quando chegarem. Se enquanto isso você precisar de alguma coisa, eu estou à sua disposição.” Foi o máximo de reasseguramento e de continência que consegui oferecer ao Max, além da minha escuta. Sem ter consciência disso, estava me sentindo na obrigação de tomar conta dos dois, de dar suporte e continência a eles; eu era quem estava “me achando” pai deles, do Max também, não só do Adriano!

 

Os desdobramentos do fato

Naquela sessão, e na seguinte, conversamos sobre o ocorrido. Adriano, muito constrangido, dizia não entender o que havia se passado, por que havia feito aquilo. Dizia não sentir nenhum tipo de atração sexual por aquele garoto em especial, nem por qualquer outro.

De imediato consegui apontar para Adriano sua tendência de fazer as situações se voltarem contra ele e, como consequência, afastar as pessoas que lhe eram importantes. Fred e Welder eram os únicos amigos de Adriano, eles formavam um trio e era claro para Adriano que ele havia perdido esses dois amigos, além da mãe de Fred, pessoa muito marcante na vida dele. Conversamos sobre essas perdas e sobre a certeza que Adriano tinha de que tanto um amigo quanto outro não o aceitariam mais. Falamos também sobre o medo e o constrangimento que ele sentia para enfrentar os pais quando chegassem da viagem.

Nessas duas sessões eu procurei, mas não detectei nada que pudesse indicar perversão em Adriano, não consegui perceber o ocorrido desta forma, mas sim como mais uma atuação agressiva de Adriano.

Dois dias após o fato, recebi um telefonema de Max. Disse não haver aguentado segurar sozinho aquela situação e que havia ligado para a mãe. A mãe pediu a ele que me ligasse para que eu marcasse um horário para ela me ligar. Pedi seu telefone e liguei para ela. Raquel estava muito aflita pela notícia e pela distância. Aos prantos me perguntava se o filho era um “homossexual pervertido” e “pedófilo”. Tentei acalmá-la em relação a essas angústias, dizendo a ela que não era esse o diagnóstico, que o sentido da atitude de Adriano havia sido o mesmo de outras tantas vezes, ou seja, mostrar sua capacidade destrutiva e autodestrutiva. Conversamos longamente; entre outras coisas, ela falava que teriam que pensar em algum castigo para Adriano, que precisaríamos falar sobre isso etc. Marcamos uma entrevista para quando chegassem.

Chegaram dois ou três dias depois, vieram para a entrevista e trouxeram Max. Raquel disse que Max estava muito assustado com tudo e que queria entender o que estava acontecendo com o irmão. Tentei mostrar que o ocorrido não caracterizava Adriano como homossexual ou pervertido, que aquilo fazia parte da dinâmica que estávamos trabalhando, disse: – “Essa atitude veicula um ataque inconsciente de Adriano, que produziu esse efeito todo, mobilizando-nos todos desta maneira. Na verdade, Adriano enfiou o dedo nos nossos ânus.”

Eu estava também bastante assustado com tudo. Não me dava conta disso, só de uma grande preocupação; com todos, com Adriano, com seus pais, com Max. Percebia em mim a necessidade de defender Adriano e de aplacar a angústia de seus pais.

Nos dias seguintes seus pais voltaram mais duas vezes ao meu consultório.

 

O insight

Alguns dias depois recebi, através da minha secretária eletrônica, o pedido de uma colega, a analista de Max e, num recado subsequente, o mesmo pedido de outra colega, a terapeuta do casal, para que conversássemos sobre o ocorrido. Na hora fiquei muito incomodado. Meu primeiro sentimento foi de que devia a elas uma explicação. Depois pensei: “Explicação de que? Devo por quê? De quem é essa análise?” Nesse momento tive o insight e pude vislumbrar o que vinha ocorrendo naquela relação analítica e a palavra que ressoava em minha mente era promiscuidade. No dicionário encontrei esta definição de promíscuo: “[Do lat. promiscuu.] Adj. Agregado sem ordem nem distinção; misturado, confuso, indistinto” (Ferreira, 1999). Meus pensamentos concentravam-se nessa definição. De fato, era isso o que vinha acontecendo, havia perdido minha intimidade com Adriano. Veio-me à cabeça (peço licença pela crueza, mas sinto que tenho que expressar pontualmente como me veio): “Foi no meu cu que ele enfiou o dedo! E não para me foder, mas para me mostrar isso!” Esse “isso” era exatamente o que eu chamei de promiscuidade, a perda de nossa intimidade, a minha identificação ora com seus pais, ora com ele, fazendo com que eu me desculpasse por ele ou permanecesse em uma posição crítica, censora ou preocupada em relação a ele. Ficou evidente também que não me senti na posição do que é usado como objeto de um perverso.

Minha primeira atitude foi fechar-me com Adriano. Não tive mais nenhum contato com seus pais. Não respondi às colegas; já me desculpei com elas, hoje agradeço-lhes, por escrito!

 

A compreensão

Aos poucos fui tentando metabolizar as informações que podia colher de minhas reflexões e leituras. Pude ver que deveria existir um conjunto de identificações e contraidentificações projetivas cruzadas (Cassorla, 1997) entre Adriano, seus pais e eu. Pensava em enactment, assunto que busquei para tentar melhor compreender.

Como consequência imediata da limpeza do campo analítico (Baranger, Baranger e Mom, 1982), Adriano e eu pudemos resgatar nossa intimidade, tão necessária à dupla. A evidência concreta disso foi o pedido de Adriano para aumentarmos o número de sessões. Ele pôde trazer assuntos muito importantes e de difícil abordagem, como suas angústias em relação ao seu corpo e à sua sexualidade; a sua dificuldade de se relacionar com as pessoas e, principalmente, a sua solidão.

Minha compreensão sobre ele foi crescendo. Fui, por exemplo, estudando e compreendendo mais as questões do paciente borderline (Kernberg, 1984; Woiler, 2001); fui compreendendo melhor a configuração de sua personalidade, de sua analidade defensiva (Freud, 1908/1976; Shengold, 1985); pude aprofundar as relações entre o que era observado e analisado com sua história de vida; pude ampliar a compreensão da dinâmica familiar e suas implicações na vida de Adriano etc.

 

A discussão

Poderíamos considerar como enactment, o episódio que eu relatei sob o título “O fato”. Não creio que esta asserção esteja de todo errada, todavia ela não expressa a real extensão do que penso, uma vez que nosso enactment iniciou-se muito tempo antes; o referido fato foi o precursor, ou, melhor dizendo, o catalisador do insight sobre o longo enactment crônico que estava acontecendo.

As pressões externas, vindas dos pais de Adriano, são inegáveis, bem como as contingências de estar atendendo um adolescente, com a história e as características de personalidade de Adriano. Mas o que dizer da minha, vamos dizer assim, falta de cuidado com o setting? Em função do que já descrevi, fui me colocando numa situação que, de uma forma ou outra, permitiu aquilo que depois se revelou para mim como uma falta de intimidade com Adriano. Não creio que isso tenha ocorrido somente devido às pressões e contingências externas, nem somente às internas. Penso que algo, na minha relação com Adriano, mobilizou isso tudo.

Não consigo precisar quando, como ou quem deu início ao enactment. O certo é que, desde cedo, flancos foram abertos que permitiram a entrada do mundo externo em minha relação com Adriano, inclusive das citadas pressões feitas pelos pais. E essa não é minha prática ordinária com nenhum outro paciente, adolescente ou não, borderline ou não. Pude pensar, a posteriori,5 aspectos mentais de Adriano que provavelmente colocaram-me nessa situação, fazendo com que repetíssemos na relação analítica situações muito primitivamente vividas por ele.

Adriano nunca teve um espaço seu, próprio. Ainda pequeno os pais se separaram, ele ficou “na casa da mãe”, depois foi para a “casa do pai”, depois ficaram um tempo sem casa, a mãe morando com eles na “casa do pai”, onde também todos entravam. Quando finalmente eles estavam morando os três numa casa, a mãe já estava saindo e indo para outro lugar. Ele dorme na sua casa e faz as refeições na “casa do namorado da mãe”. Mesmo assim, seu quarto é vigiado e vasculhado o tempo todo pela mãe, irmão e empregada, todos em busca de sujeiras escamoteadas e de desvios no padrão de organização preconizado por outrem. Partindo de informações que me foram fornecidas pela mãe, podemos ainda conjeturar sobre tempos mais primitivos: devia haver uma falta de espaço para Adriano desde o útero materno e no início de sua vida, quando o casal já vivia às turras.

Estarmos nesse enactment garantia que esses e outros assuntos não pudessem ser percebidos, vistos e analisados. Como descrevi anteriormente, meus sentimentos eram de compaixão, raiva, culpa etc., todos misturados. Essa mistura fazia com que, de um lado, eu me ocupasse em atender as demandas dos pais, tentando corrigir Adriano. De outro, sentia-me no dever de convencer seus pais de que Adriano não era uma pessoa de má índole, que ele não fazia as coisas “por sacanagem”, como dizia Marcos. De qualquer maneira, eu estava contratransferencialmente desempenhando um papel muito parecido com o daqueles com quem Adriano estava habituado a se relacionar, ora vigiando, ora corrigindo, ora admirando, e assim por diante.

Em várias situações a presença do enactment se faz notar. Foi só a partir de um fato clínico de muita intensidade em si e nas consequências por ele produzidas, que eu pude ter o insight sobre o enactment. Entre essas consequências estão, evidentemente, os insights e análise de meus pontos cegos vinculados ao que vinha ocorrendo na relação com Adriano, os quais pude trabalhar em minha análise pessoal. Ressalto isso para evidenciar, uma vez mais, a inter-relação inconsciente entre paciente e analista, implícita no fenômeno clínico que estou discutindo.

Junto com a compreensão das minhas dificuldades contratransferenciais, pude entender alguns dos processos mentais de Adriano veiculados por meio do enactment. De pronto, por exemplo, fui capaz de perceber e analisar com ele uma das funções de seus atos impulsivos, das coisas que ele fazia sem que percebesse estar fazendo. O “fazer para chamar a atenção”, conforme diziam seus pais, foi compreendido com outro sentido. Efetivamente, dentro da análise, o fato serviu para – teve a função de – chamar minha atenção para o que vinha acontecendo em nossa relação analítica. Adriano, elevando a falta de intimidade, a promiscuidade, a nível de um grande “cutucão”, pôde reclamar o espaço próprio que não estava tendo comigo, e, com isso, chamar minha atenção, despertando-me para o que vinha ocorrendo.

Vale ainda ressaltar que esse enactment também expressava muito das fantasias sexuais de Adriano, principalmente relacionadas à cena primária. Na sua atuação com o menino, quando ele diz: “Vamos fazer o que o papai faz com a mamãe?”, podemos entender uma clara referência a algumas de suas fantasias sobre a vida sexual de sua mãe com Marcos. Como me disse o dr. Theodore Jacobs (2006): “Parece que ele estava atuando nos dois papéis; o papel do macho, que penetra e da fêmea, que é penetrada. Concordo que este enactment expressa as fantasias sobre sua relação com ele, incluindo o desejo dele de provocá-lo para que você desse a ele um relacionamento mais privado e íntimo do que aquele que vocês dois estavam tendo, mas eu também penso que ele estava ‘enacting’ uma importante fantasia sexual que precisava ser analisada e compreendida.”

 

A conclusão

Penso que o que de melhor está contido na ideia de enactment, é a rede de identificações e contraidentificações projetivas, que produz uma encenação inconsciente, da qual analista e analisando participam igualmente. Isto torna evidente que a ideia de enactment traz em seu bojo uma descrição fenomenológica, não um conceito metapsicológico. Do ponto de vista metapsicológico parece-me muito mais preciso pensarmos em termos de identificações e contraidentificações projetivas ou no par transferência-contratransferência.

Friedman e Naterson (1999), afirmam que os enactments são “apenas uma outra maneira de descrever o processo analítico” (p. 226) e concluem seu artigo afirmando: “Transferência- Contratransferência é essencialmente um sinônimo para o fenômeno do enactment” (p. 246). Inspirado novamente pelas palavras do dr. Jacobs (2006), quero enfatizar que concordo com esses autores no sentido de que todo enactment diz respeito à dinâmica transferência-contratransferência, mas o contrário não é verdadeiro; muitos fenômenos transferenciais e contratransferenciais não se constituem enactments.

A despeito disso, o conceito de enactment me foi um instrumento muito útil nas conjeturas, análise e compreensão do processo analítico. Penso e recomendo o uso deste instrumento, como um modelo, para auxiliar a descrever e a pensar sobre a situação analítica. Falo de modelo no sentido em que foi usado por Bion: como um instrumento para pensar. “O momento seguinte ao uso do modelo é a realização que corresponde à intuição e à abstração. Na hora” – diz Bion – “em que tenho a intuição, posso abandonar o modelo, que então se torna inútil” (Rezende, 1993, p. 15). Concluo citando Bion (1974): “Modelos são descartáveis, teorias não” (p. 31).

 

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Endereço para correspondência
Nelson José Nazaré Rocha
Rua Maria Monteiro, 786 / 24
13025-151 Campinas, SP
Tel: 55 19 3254-2114
E-mail: njnrocha@uol.com.br

Recebido em: 10.5.2009
Aceito em: 23.6.2009

 

 

1 Este artigo é derivado do trabalho “O enactment como instrumento de compreensão de um processo psicanalítico”, que recebeu o Prêmio FEPAL – Niños y Adolescentes, outorgado pela FEPAL, Lima, outubro de 2006.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
3 Sobre esta discussão, remeto o leitor ao capítulo “In versus out: A spurious distinction” do inteligente artigo de Dale Boesky (1998), no qual o autor aponta para o ofuscamento que essa discussão traz para a distinção metapsicológica entre intrapsíquico e ação, concluindo: “Muitas discussões sobre dentro versus fora confundem geografia com metapsicologia” (p. 49).
4 Penso que podemos postular que os primeiros funcionam num registro de Pré-consciente e os últimos num registro de Inconsciente.
5 Compreender a posteriori é uma das contingências lógicas do enactment, uma vez que ele é definido como um fenômeno que acontece fora do campo da consciência do analista; só depois que ele é desvendado é que o material por ele veiculado pode ser compreendido e utilizado no processo analítico. Sobre o uso do conceito de posteridade – a posteriori, traduzido no francês por après-coup e assim consagrado por Lacan – remeto aos comentários feitos por Laplanche e Pontalis (1975).

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