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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.2 São Paulo jun. 2009

 

RESENHAS

 

 

Resenha: Maria Lúcia Castilho Romera1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Centro de Estudos da Teoria dos Campos
Instituto de Psicologia - Universidade Federal de Uberlândia

 

 

A herança psíquica na clínica psicanalítica

Maria Cecília Pereira da Silva

Casa do Psicólogo/Fapesp, São Paulo, 2003, 184 p

O livro alavanca questões conceituais e técnicas de grande importância e desafia com ousadia o estatuto do método psicanalítico lançando-o para o tempo-espaço da criação. Traz informações oportunas e surpreende!

Já na apresentação, a autora se faz presente com Freud. Articulações com a literatura e a arte são bem apropriadas no sentido de serem feitas com delicadeza e precisão. Circunscreve seu objetivo ou seu foco de investigação: os aspectos sem representação, encapsuladores do sujeito psíquico. Faz uma distinção entre as vicissitudes da transmissão intrapsíquica e a transmissão transgeracional ou intergeracional.

A pesquisa de Maria Cecília mostra o quanto, ainda e sempre, temos o que extrair da obra de Freud ou de seu método interpretativo. Muitas vezes não o reconhecemos no nosso fazer clínico, atribuindo seus efeitos ao uso da técnica ou de alguma particular teoria psicanalítica. A autora mostra que nem sempre um aporte teórico é suficiente enquanto bússola de uma determinada forma de organização psíquica. Diante disso, a busca e a construção teórica devem sempre ser orientadas por aquilo que advém do/no campo transferencial.

Na Introdução define aporte teórico, reflete sobre a genealogia de sua investigação implicando-se no abrir caminhos. Levanta a delicada e polêmica questão do tudo é fantasia e tudo é sonho na relação com os pacientes ou no relato dos pacientes. Sua redescoberta da influência dos objetos parentais e do meio ambiente na construção do psiquismo parece vir junto com a redescoberta de um Freud conectado com sua cultura, atravessado por ela.

A descrição dos pacientes hospedeiros de uma história inconsciente de outras gerações, que não lhes pertencia e do self “sem berço” são primorosas. Situa bem claramente sua hipótese:

suponho que estes aspectos psíquicos descritos são fenômenos transgeracionais, resultantes da transmissão psíquica através das gerações, em que uma herança psíquica é passada ao indivíduo pelas gerações precedentes, ou seja, transmissão transgeracional, ou pela transmissão psíquica entre gerações, isto é, transmissão intergeracional. (p.30)

Neste ponto apresenta seus novos companheiros teóricos de jornada: Eiguer, Kaës, Correa, Golse, articulando sua herança teórica inglesa com a escola francesa. Localiza dentro desta perspectiva teórica sua definição de objeto transgeracional: são aqueles vazios, coisas não representadas e transmitidas.

Importa destacar o cuidado com que trata a herança conceitual por meio de preciosas notas de rodapé. Os conceitos nodais sobre os quais discorre no texto – identificação projetiva e self – são remetidos ao seu lócus originário com a maternidade e a paternidade de Bion, Winnicott e Klein reconhecidas. Também alguns aportes sobre metodologia, a despeito da autora dizer serem colocados a título de curiosidade, são de extrema valia para expressão da riqueza da intertextualidade que a mesma vai tecendo. Além de uma analista ecumênica, como a própria autora se reconhece, apreende-se do seu texto uma escritora interdisciplinar e não apenas articuladora de autores. É nela que se presentifica os personagens autores que dela saem como relato de uma experiência clínica redimensionada.

É dentro desta perspectiva que apresenta o seu trabalho psicanalítico naquilo que denomina diferentes settings – intervenção precoce, atendimento familiar e análise quatro vezes por semana. Mantendo rigorosamente a postura psicanalítica-interpretativa internalizada, pode alçar voos para… vales, montanhas, praias, desertos onde quer que a semente metodológica psicanalítica possa ser plantada.

Entra no compasso de Lebovici e sua experiência no curso de psicopatologia dos bebês de forma rica e apaixonante, expressiva do seu vínculo com esse autor. Nas três páginas finais da Introdução sabe como aguçar a curiosidade do leitor projetando o sabor do saber nos capítulos que comporão a investigação/demonstração da estrutura teórico/ clínica apresentada na Introdução.

São três os lócus percorridos pela autora: as consultas terapêuticas, as experiências de três análises individuais e o trabalho institucional envolvendo paciente, família e equipe técnica.

Maria Cecília mostra uma escrita implicada e uma grande generosidade presenteando o leitor com uma clareza ímpar, sua forma de praticar a clínica nas diversas modalidades de atendimentos. Um exemplo disso está na p. 87 onde se lê:

[…] não consigo formular nenhuma interpretação. Fico paralisada e chocada com as suas histórias. Penso que talvez eu tenha que ouvi-la muito, oferecendo a continência de um encontro afetivo, pois ela não pôde e não pode contar com objetos compreensivos. Ao fim dessa sessão, digo alguma coisa relacionada à dor de conhecer: […]

Ao mostrar sua práxis o leitor pode se posicionar e estabelecer com o texto uma relação de alteridade. As falas transcritas são uma espécie de “poesia concreta”: é o que é. E isso é tudo.

Neste mister vale a pena mostrar uma outra passagem de inequívoca clareza: “Quando, na transferência, revelam-se as identificações mórbidas, essa revelação nasce da relação inesperada entre a informação conhecida e a maneira como o sujeito a enuncia, na busca de resolver um conflito na transferência” (p. 156).

A fala-escrita tão direta pode produzir choque no leitor. Ela escancara algumas coisas. Inicialmente, poder-se-ia pensar que ela pudesse ser mais sutil; afinal, em algumas passagens o leitor já poderia estar sabendo o que ela vai deixando ser tecido na sua narrativa. Porém, ela insiste, firma ou grifa o que acha importante. Tal espécie de demonstração é um excelente expediente para alunos que estão iniciando no aprendizado da clínica. Entretanto, para aqueles mais antigos no ofício pode ser chocante. Vale o risco, pois ao chocar, o profissional poderá refletir sobre quão importante é a explicitação do óbvio provocador de um reinício. E ela mesma reitera tal posição em uma citação de Ogden (1989): “Se o analista permitir-se perpetuamente ser o iniciante que ele é, será possível algumas vezes aprender sobre aquilo que ele pensa já saber” (p. 156).

Ao final do capítulo 1 damo-nos conta de que a autora-pesquisadora não pretende pouco, pois quer transmitir como se apresentam os sinais da herança psíquica. Expressa um desafio investigativo de até onde esse conceito potencializa intervenções interpretativas, seus alcances e seus limites. Recorre a ele (ao conceito) com entusiasmo e parcimônia, pois não desvela a partir dele (tanto do conceito quanto do entusiasmo) soluções mágicas para aquilo que inexoravelmente implica magia: a nossa clínica – sonho/ficção e a alma humana. Em geral, o entusiasmo por qualquer conceito promove alguns deslizes e acaba por transformar em síntese algo da ordem do analisável. A escrita de Maria Cecília vai, por assim dizer, toureando essa massa bruta das facilitações.

No início do capítulo 2 escreve: “os fatos narrados foram transformados em ficção” (p. 83). O que a princípio denota cautela no campo da ética, faz de fato fibrilar um aspecto essencial do nosso fazer clínico ou da clínica psicanalítica. Como dizia Fábio Herrmann: no campo transferencial tudo é realidade e ficção. Aí não é mais observar, mas criar. Sua escrita é, especialmente nesse sentido, criativa e a leitura adquire fluidez só exigindo do leitor abertura para uma inventividade dialogada.

Cada caso clínico, pelo texto visitado, abre caminho para discussão pela via do relato- invenção. E aí a autora transita por conceitos fundamentais da psicanálise sempre no intuito de abrir com eles problematizações em relação à temática do livro. É assim que à p. 88 escreve: “as identificações mórbidas congelam o psiquismo num sempre que caracteriza o inconsciente, qualificado de atemporal. Quando se conhece a história secreta é possível modificar os efeitos que ela exerce sobre o ego e modificar a clivagem alienante”. Se nesse trecho é o inconsciente e sua articulação com a herança psíquica que estão sendo tratados, em outros momentos são considerados conceitos tão importantes quanto a contratransferência, o fato sem representação, continência, acolhimento e tantos outros. Além de seu cuidadoso estudo teórico, o que possibilita à autora tal desenvoltura é uma espécie de espinha dorsal da produção de seus conhecimentos. Fiel ao campo psicanalítico, o equilíbrio de suas incursões advém da sua constância na manutenção de uma postura metodológica interpretativa.

A “Conclusão em aberto” acaba por ser um tempo de circunscrever o pensamento da autora. Revisita os três enquadres percorridos sob a égide do método psicanalítico. E reafirma: “Os fenômenos transgeracionais acrescentam uma nova dimensão ao campo analítico, dilatam, dão altura e espessura, o que, no fundo, se constituem em sucessão do tempo, não de um tempo em outro lugar, mas de um tempo presente no setting” (p. 155). Sua posição é enfaticamente dirigida ao tempo de movimento ou transmutação imprimindo uma nova ordem de compreensão aos conceitos de regressão e fixação. Mantém-se no campo psicanalítico.

Na continuidade de sua citação:

Trata-se assim de um novo cenário, não apenas do mundo interno e da relação, mas de cenas das histórias e de suas comunicações com personagens de diferentes dimensões temporais que necessitam entrar em cena por conta própria de qualquer maneira, compondo um novo campo transferencial. (p. 155)

Neste ponto abre para o leitor uma possibilidade de questão: não serão estes personagens os habitantes principais do mundo interno-externo? A autora, por certo, deu destaque a essas diferentes dimensões temporais através das quais recupera o conceito de herança psíquica na e para a clínica psicanalítica por terem essas sido relegadas a segundo plano durante muito tempo na produção teórico-clínico da psicanálise.

Na última parte do texto Maria Cecília aborda a transmissão geracional na formação psicanalítica. Não poderia deixar de fazê-lo, já que desenvolve pesquisa no campo da educação. Se há algum pecado, no sentido de abordar uma questão não diretamente ligada à temática do livro, este é totalmente perdoado por trazer uma reflexão importante sobre o ato criativo na transmissão de conhecimento. É nesse circuito que acaba encerrando esse capítulo, tomando Adélia Prado como referência. Super bem-vinda! Posiciona-se relativamente à questão do analista abrir-se para fatos vivenciais dos pacientes que não sejam necessariamente fantasias. “… e nem tudo é sonho…” (p. 164). No entanto, deixa como última nota a poesia de nossa querida Adélia do(s) Prado(s) das Gerais: “um trem de ferro é uma coisa mecânica,/ mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,/ atravessou minha vida,/ virou só sentimento.” Nas entrelinhas deixa o registro de uma outra possibilidade: a vivência do fato se transforma em narrativa e assim… o trem nunca é só o trem. E disso mineiro entende, acima ou abaixo de qualquer suspeita!

Como boa mineira achei no livro o que já estava certo de não ser dado: a própria essência do método psicanalítico que se dá sem que dele se aperceba. Ele é que se dá! O livro além de instruir-me, surpreendeu-me!

 

 

1 Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e do Centro de Estudos da Teoria dos Campos, Professora Doutora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia

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