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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.3 São Paulo set. 2009

 

DIÁLOGO

 

Comentário à entrevista de Fúlvio Scorza

 

Comentário a la entrevista de Fúlvio Alexandre Scorza

 

Comment to the interview of Fúlvio Alexandre Scorza

 

 

Leila Tannous Guimarães1

Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul - Campo Grande

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto é um comentário da entrevista concedida pelo Prof. Fúlvio Scorza à Revista Brasileira de Psicanálise. Visando a interface da neurociência com a psicanálise, o comentário destacou a relação entre neuroplasticidade e memória, corpo/mente, utilização combinada de drogas e psicoterapias e, por fim, a relação entre o consumo de drogas (álcool e cocaína), além do stress, como fatores lesivos aos neurônios e impeditivos da neurogênese.

Palavras-chave: Neurociência; Psicanálise; Memória; Neuroplasticidade.


RESUMEN

Este texto es un comentario de la entrevista concedida por el Profº Fúlvio Scorza a la Revista Brasileira de Psicanálise. Teniendo como objetivo la interfaz de la neurociencia con el psicoanálisis, el comentario destaco la relación entre la neuroplasticidad y la memoria, cuerpo/mente, el uso combinado de la medicación y psicoterapias y finalmente, la relación entre el consumo de las drogas (alcohol y cocaína), más allá de la tensión, como factores dañosos a las neuronas y impeditivos de la neurogénesis.

Palabras clave: Neurociencia; Psicoanálisis; Memoria; Neuroplasticidade.


ABSTRACT

This text is a comment on the interview given by Profº Fúlvio Scorza to the Revista Brasileira de Psicanálise. Aiming at the interface of Neuroscience with psychoanalysis, the comment highlighted the relationship between neuroplasticity and memory, body/mind, combined use of medication and psychotherapy and, finally, the use of drugs (alcohol and cocaine), farther to stress, as factors may be harmful to neurons and an impediment to neurogenesis.

Keywords: Neuroscience; Psychoanalysis; Memory; Neuroplasticity.


 

 

Inicialmente gostaria de agradecer à equipe editorial da Revista Brasileira de Psicanálise, o honroso convite para comentar a entrevista realizada com o Prof. Fúlvio Scorza. Acompanhando o clima entusiasmado da entrevista e os aspectos instigantes que surgem no decorrer da mesma, convidei uma colega de sociedade, a quem tanto estimo e respeito por sua competência psicanalítica e interesse pessoal pelo tema, dra. Lenita Osorio Araujo para refletirmos em conjunto as questões que podem instigar o pensamento psicanalítico na interface com a neurociência e manter, assim, a chama viva e entusiasmada deste debate.

Creio que vale sublinhar que esta entrevista nos deixa perceber que a interação entre a neurociência e a psicanálise tende a ser mais estimulante do que antes, permitindo que cada disciplina possa contribuir com seus aportes sem aquele tom de rivalidade pretensiosa em que se buscava ser o dono da verdade científica que revela os mistérios da mente humana.

Muitas linhas de pesquisas atuais estão centradas na interpretação neurobiológica da consciência, mas, como dizia Green (2002), “o inconsciente dos psicanalistas segue fora do alcance dos neurobiologistas”.

Gostaria também de assinalar o fato de que a comunicação entre a neurobiologia e a psicanálise nos impõe a necessidade de observarmos os diferentes campos, métodos e procedimentos com os quais as duas disciplinas atuam, demandando, de nossa parte, certo cuidado nas relações que estabelecemos aqui, entre elas. Observa-se que o diálogo que se estabelece entre psicanalistas e neurocientistas segue, no mínimo, algumas tendências: uma, em que a relação entre eles se dá de maneira parcial, com o intuito de discutir certos aspectos de ordem epistemológica; outra, que procura tomar como base o trabalho de Freud (1895) sobre as afasias, no “Projeto para uma psicologia científica”, hipóteses fecundas para fazer a integração entre neurobiologia, psicologia e psicanálise, no sentido de formar uma nova disciplina, como, por exemplo, a neuropsicanálise; e uma terceira, da qual, possivelmente faço parte, que é o grupo de psicanalistas que procura observar com interesse os trabalhos e descobertas que estão sendo realizados pela neurobiologia, a fim de tomá-los como acréscimos norteadores dos avanços conquistados.

Freud fez uso da teoria dos neurônios em seu trabalho de 1895, “Projeto para uma psicologia científica”, na tentativa de integrar cérebro e mente. Alguns autores, como N orman Doidge e Charles P. Fisher (2005) consideram que, nesse trabalho, Freud teria antecipado a lei Hebb - Neurons that fire together wire together - introduzindo assim uma versão inicial do conceito de neuroplasticidade, ou mudanças no cérebro devido à experiência.

Mas as neurociências do final do século XIX e início do século XX não foram suficientes para realizar avanços no sentido dessa integração. Embora Freud tivesse mantido a esperança de uma eventual integração da psicanálise e a neurociência, o desenvolvimento do seu pensamento, a partir da década de 1890, demonstrou uma escuta extremamente dinâmica do funcionamento psíquico, e a metapsicologia é um exemplo do quanto ele se separou dos modelos biológicos, sobretudo dos neurológicos, mesmo tendo sido em sua pré-história, um neurofisiologista apaixonado.

Na entrevista com o Prof. Scorza, o primeiro ponto com o qual se estabelece relação com a neuroplasticidade é a “memória” que, somada às pesquisas de Eric Kandel e ao pensamento de Ivan Izquierdo (2002), nos permite uma aproximação com a psicanálise, sobretudo, com relação à sua importância para a construção de quem somos: “O conjunto de memórias de cada um determina aquilo que se denomina personalidade ou forma de ser” (p. 10).

Entretanto, a questão da “memória” é bastante ampla no que diz respeito às pesquisas desenvolvidas pela neurobiologia e pela psicanálise. No que tange à amnésia infantil, o divisor de águas da aquisição da linguagem separa a amnésia ativa - que recobre a repressão dos fatos do passado infantil - da memória dos fatos mais primitivos, ocorridos até os 36 meses aproximadamente, que são intraduzíveis. Há um consenso sobre a impossibilidade de se evocar em termos de linguagem as memórias da primeira infância, pré-verbais.

O que foi captado e armazenado em termos de imagens e sensações, em uma linguagem direta e não metafórica, sem símbolos que os possam distinguir, não podem ser expressos em nenhum idioma, e por falta desse elo que pensamos ser as representações da palavra, permanecem inconscientes, intraduzíveis. Apesar de toda a sua atividade psíquica, da importância emocional para o indivíduo, não terão acesso ao pré-consciente. A clínica do narcisismo, do sofrimento ambiental primário, abre lugar para a ressonância empática, para as construções analíticas com oferta de sentido, um trabalho que privilegia a intersubjetividade, ancorado no eixo transfero/contratransferencial (Izquierdo, 2002, p. 89).

Neste sentido, retomamos Freud (1940[1938]/1969), em “Esboço de psicanálise”, quando diz ser plausível dar ênfase, em psicologia, aos processos somáticos, atribuindo a eles a verdadeira essência do psíquico e procurar outra determinação dos processos conscientes (p. 183). Afirma que há outros processos e material psíquico que não têm acesso tão fácil ao se tornarem conscientes, mas têm de ser inferidos, reconhecidos e traduzidos para a forma consciente: “Para tal material, reservamos o nome de inconsciente propriamente dito” (p. 185), e é com este inconsciente que a psicanálise procura trabalhar. E aqui se inserem também as noções de Freud já apresentadas em “O ego e o id” (1923/1969) que, levando em conta o aspecto consciente e pré-consciente do ego, enfatiza que sua maior parte é inconsciente, tal como o id. O ego surge, portanto, do registro das sensações corporais, e para tornar-se consciente tem de se ligar a resíduos mnêmicos da fala. Como resume Victor Manoel de Andrade (2009), em suas “Reflexões psicanalíticas sobre o ‘Ego freudiano e a consciência’”, Freud associa à consciência algo que se passa no corpo: na consciência primária, as sensações de prazer e desprazer que decorrem do movimento de músculos lisos secretores e vasomotores; na secundária, o pensamento torna-se consciente ao expressar-se como fala.

Edelman (1992), em seu livro Biologia da consciência: as raízes do pensamento, comenta que a encarnação (mente/corpo) impõe limites inelutáveis. “O desejo de ultrapassar esses limites dá origem à contradição, à fantasia e à mística, pois a mente em suas criações individuais está fora do alcance da ciência” (p. 197). Para ele, a razão dessa limitação científica é evidente, pois as formas da encarnação que conduzem à consciência são únicas em cada indivíduo, únicas do corpo dele e das suas histórias individuais. Embora pareça haver muitas coisas que Edelman não tenha conseguido explicar, por reconhecer que muito do nosso comportamento é dirigido pelo inconsciente, ele concebe a mente como resultado de interações físicas que cruzam um número extremamente elevado de níveis de organização, desde o molecular até o social. E conclui que o “nosso cérebro não é muito eficaz na visualização de ordenamentos desta complexidade” (p. 203). A memória, vista enquanto processo dinâmico e propriedade sistêmica, não é equivalente à soma das alterações sinápticas subjacentes (p. 204), pois para Edelman (1992), a noção de Freud do recalcamento é consistente com os modelos de consciência que ele apresenta em seu livro. Acrescenta que:

Na sua forma extensa a TSGN implica fortemente os sistemas dependentes de valor na formação da memória. A distinção entre eu e não-eu exige a participação de sistemas de memória que ficam para sempre inacessíveis à consciência. O recalcamento, a incapacidade seletiva para recordar, estaria sujeita a recategorizações fortemente carregadas de valor. Dada a natureza socialmente construída da consciência elaborada, seria vantajoso do ponto de vista da evolução possuir mecanismos de recalcamento das recategorizações que ameacem a eficácia dos conceitos de eu. Os circuitos que interatuam com os sistemas de valor estão situados no hipocampo e nos gânglios basais. Para um animal linguístico, os símbolos têm importância e a evolução de uma forma de reduzir o acesso a estados considerados ameaçadores para o conceito de eu teria valor seletivo. (p. 210-211)

Scorza nos fala sobre a questão mente/cérebro como uma coisa só, mas que age de maneira distinta sobre um fenômeno único. Como exemplo, cita a repressão dos instintos mediada pelo ego e a pesquisa de Mark Solms, com pacientes que estão em tratamento psicanalítico, para avaliar, por meio da Ressonância Magnética ou SPET, o que está acontecendo no tecido em vivo, antes, durante e após um período de trabalho analítico, procurando observar determinadas experiências em situações selecionadas.

Fisher (2005) relata que um importante estudo realizado por Goldapple e colegas (Archives of General Psychiatry, 2004, 61: 34-41) encontrou mudanças em locais específicos do cérebro, em pacientes com depressão tratados com psicoterapia. Significativamente, essas alterações cerebrais eram diferentes daquelas observadas em um grupo semelhante de pacientes deprimidos que melhoraram com a medicação. Esses resultados sugerem que a psicoterapia e medicamentos ajudam pacientes deprimidos por meio de mecanismos distintos. Outras experiências com neuroimagens também foram citadas por esse autor, inclusive as de Eric Kandel e col. (apud Fisher, 2005), para demonstrar as alterações cerebrais em resposta à psicoterapia, além de outras mudanças que diferem de acordo com a modalidade de tratamento. Esses princípios estão sendo usados para estudar os mecanismos pelos quais a psicanálise pode exercer um impacto específico sobre a biologia do cérebro.

Para Edelman (1992) não é motivo de surpresa o fato de se ter descoberto que as drogas que alteram as funções das sinapses podem ser de enorme utilidade no tratamento dos distúrbios mentais, pois as doenças e perturbações da consciência representam, para ele, reajustamentos e adaptações às alterações ocorridas nos mapas reentrantes, nas regiões homeostáticas e nos prolongamentos do córtex responsáveis pela atenção perceptiva, pelo funcionamento conceptual simbólico e pelas respostas emocionais. N o entanto, a individualidade do paciente consciente é resultado de um padrão extremamente complicado de eficácias sinápticas que funcionam unicamente para ele. Consequentemente, a tarefa de comunicar com o paciente, por meios verbais e emocionais, não pode ser substituída pela utilização de drogas. É provável que continue a ser necessária uma combinação das drogas com a psicoterapia.

O uso combinado de droga e psicoterapia é uma prática cada vez mais frequente na clínica psicanalítica contemporânea, decorrente do elevado número de pacientes borderline e psicóticos que nos procuram. O pensamento de Scorza sobre a importância de o estudo da neuroplasticidade ser realizado pela psicanálise, psiquiatria, neurociência e neurologia, encontra ressonância nas nossas reflexões atuais sobre a experiência clínica.

Em uma apreciação da TSGN, Arnold Modell (Other Times, Other Realities) utiliza a ideia da memória como recategorização para reavaliar a natureza das trocas entre o paciente e o terapeuta. Faz reviver o termo Nachträglichkeit que Freud aplicava à ideia de que a memória é “retraduzida” como resultado da experiência subsequente. Modell (apud Edelman, 1992) sublinha que o ego é uma estrutura envolvida no processamento e reorganização do tempo, o que ele liga à ideia de memória enquanto recategorização.

Na sua crítica dos conceitos ligados à relação de transferência no contexto psicanalítico, Modell sugere que o ponto de vista da seleção sobre o funcionamento cerebral oferece uma interpretação alternativa para a repetição compulsiva descrita por Freud. Assim como Scorza destaca a influência lesiva sobre os neurônios e o impedimento da neurogênese a partir do consumo de determinadas drogas, como álcool e cocaína, além do estresse, Modell sugere que a recriação de uma memória de categorização é um princípio biológico fundamental que, em certas circunstâncias, ultrapassa o princípio de prazer de Freud. Ele propõe que “a compulsão de repetir representa uma compulsão de procurar uma identidade perceptiva entre objetos presentes e passados”. Ao fazê-lo, o paciente está consciente, em variáveis graus, da relação do eu com o tempo. Modell sublinha igualmente que, no processo psicanalítico, o raciocínio metafórico é “a moeda de troca do pensamento”. Deste ponto de vista, o contexto terapêutico destina-se “a acentuar múltiplos níveis de realidade, o que vai por sua vez alargar o potencial tanto de novas percepções anteriores como de reformulações de percepções novas” (p. 261-2).

E, em oposição aos cognitivistas, Edelman (1992) afirma que: “Pensar é uma atividade que ocorre em termos de padrões sintetizados, e não de padrões lógicos; por essa razão, pode sempre ir mais longe do que as relações sintáticas ou mecânicas” (p. 219). Neste sentido, os mecanismos de categorização funcionam por meio de cartografias globais que envolvem necessariamente o nosso corpo e a nossa história pessoal. Por isso, a percepção não é necessariamente verídica. No nosso comportamento somos dirigidos por uma memória de recategorização sob influência de alterações dinâmicas de valor. As crenças e os conceitos são individualizados apenas em referência a um meio ambiente aberto, cuja descrição não pode ser especificada antecipadamente. Os nossos modos de categorização e a utilização da metáfora pelo nosso pensamento (relacionar uma coisa com outra pertencente a um domínio diferente) refletem estas observações (p. 220).

Finalmente, podemos considerar o nosso debate suficiente para dizer que os resultados em cada campo podem estimular indagações no outro. Assim como os dados da neurociência estimulam novas questões na psicanálise e reafirmam grande parte de seu conhecimento teórico e prático, os dados fenomenológicos e subjetivos da psicanálise podem estimular novas questões e novas áreas de estudo da neurociência.

 

Referências

Andrade, V. M. O ego freudiano e a consciência. Trabalho apresentado no XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise, 01/05/2009.        [ Links ]

Freud, S. (1969). O ego e o id. Vol. 19. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em1923)         [ Links ]

_____ Esboço de psicanálise. Vol. 23. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, p. 182-185. (Trabalho original publicado em 1940)         [ Links ]

Fisher, C.P. (2005). Psychoanalysis and Neuroscience. In: San Francisco Medical Society. Disponível em: <www.sfms.org>. Acesso em: 03/10/2009.        [ Links ]

Izquierdo, I. (2002). Memória. Porto Alegre: Artmed.        [ Links ]

Edelman, G. (1992). Biologia da consciência: as raízes do pensamento. Lisboa: Instituto Piaget.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Leila Tannous Guimarães
[Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul SPMS]
Rua Espírito Santo, 936, Jd. dos Estados
79020-081 Campo Grande, MS
E-mail: leilatg@terra.com.br

Recebido em 9.10.2009
Aceito em 14.10.2009

 

 

1 Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul SPMS.

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