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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.3 São Paulo set. 2009

 

ARTIGOS

 

O sistema mental determinante da inveja

 

El sistema mental determinante de envidia

 

The determinative mental system of envy

 

 

Walter Trinca1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A inveja, como um fato clínico, é originária da intensificação do ódio, sendo mobilizada pela pulsão de morte voltada contra o próprio sujeito invejoso. O ódio tem como consequência o distanciamento de contato do invejoso com seu próprio ser. Uma situação que levaria ao esvaziamento do self, caso não surgisse a inveja como medida compensatória ao esvaziamento, sob a forma de sensorialidade.
Trata-se da sensorialidade do ódio dirigido ao que evoca as insuficiências do invejoso, tendo em vista remover a fonte de seus sofrimentos. O ódio ao beneficiário do que é desejado substitui o ódio do invejoso contra si próprio. Tal sensorialidade tem por finalidade manter algo a respeito da validade e da bondade do sujeito invejoso. O autor considera que desse modo não é necessário alterar os elementos básicos da concepção kleiniana clássica de inveja.

Palavras-chave: Psicanálise contemporânea; Teoria psicanalítica; Sensorialidade; Sistemas mentais; Inveja.


RESUMEN

La invídia, como um hecho clínico, es originaria de la intensificación del ódio, siendo mobilizada por la pulsión de muerte dada contra el propio sujeito envidioso. El ódio tiene como consecuencia el distanciamiento del contacto del envidioso con su propio ser. Una situación que llevaría al vaciamiento del self, caso no sergiese la envidia como medida compensatória al vaciamiento, bajo la forma de sensorialidad.
Se trata de la sensorialidad del ódio dirigido al que evoca las insuficiências del envidioso, teniendo en vista remover la fuente de sus sufrimentos.
El ódio al beneficiário del que es deseado sustituye el ódio del envidioso contra si mismo.
Esa sensorialidad tiene por finalidad mantenez algo a respecto de la validad y de la bondad del sujeto envidioso.
El autor considera que de esse modo no es necesario alterar los elementos básicos de la concepción kleiniana clássica de envidia.

Palabras clave: Psicoanálisis contemporâneo; Teoría psicoanalíca; Sensorialidad; Sistemas mentales; Envidia.


ABSTRACT

Envy as a clinical factor originates from the intensification of hate. It is mobilized by the death pulsion turned against the envious subject itself. Hate has as its consequence the distancing of contact with the envious person and his own inner being. A situation that would lead to the emptying of the self, in case envy would not emerge in its sensorial form as a compensatory measure to this emptying process. This has to do with the sensoriality of hate directed towards what evokes the insufficiencies of the envious person having in mind removing the source of sufferance. The hate towards the beneficiary of what is desired replaces the hate of the envious person against himself. Such sensoriality aims at keeping something about the validity and kindness of the envious person. The author considers that in this way it is not necessary to alter the basic elements of the classical kleinian conception of envy.

Keywords: Contemporary psychoanalysis; Psychoanalytical theory; Sensoriality; Mental systems; Envy.


 

 

Considerada uma disposição de espírito, a inveja foi definida por Spinoza (1999) como “o ódio que afeta o homem de tal modo que ele se entristece com a felicidade de outrem e, ao contrário, se alegra com o mal de outrem” (p. 316). Geralmente ela diz respeito ao desejo de possuir ou gozar o que é possuído ou gozado por outrem (Houaiss e Villar, 2001). O invejoso sofre por aquilo que lhe falta, ainda quando se alegra com o sofrimento alheio. Melanie Klein (1964) disse que a pessoa invejada é tida como possuidora daquilo que é mais desejado: um objeto bom, sendo que o impulso invejoso visa tomá-lo ou estragá-lo. O aspecto destrutivo está sempre presente na inveja e, para a teoria kleiniana, os impulsos destrutivos operam desde o começo da vida, em que o bebê coloca partes más de si mesmo, excrementos e outras maldades na mãe e no peito para estragar e destruir o que há de bom. Isso significa que para conhecer a inveja é preciso estudar os caminhos e os processos da capacidade de odiar e de destruir, da qual ela é um derivativo. Desse modo, seguindo as indicações de Feldman e De Paola (1998), posso tomá-la na categoria dos sentimentos e não dos impulsos. Para a caracterização de um sistema mental determinante baseio-me na inveja como uma forma de ódio intensificado. Quanto aos aspectos particulares da inveja que aparecem, por exemplo, sob as modalidades de inveja do pênis e inveja do outro sexo, acredito que façam parte do conceito mais amplo que estou considerando.

Todo psicanalista vez por outra se depara com um paciente que, ao lhe oferecer uma boa interpretação, retruca imediatamente que não é um fato novo, pois já havia pensado nisso. Menos frequente, mas ainda comum, é o paciente que faz isso com um grande número de ideias que lhe são oferecidas. Agora, há aqueles que costumam atacar tudo ou quase tudo o que o psicanalista lhe diz, porque não suportam uma mente criativa. Com o tempo, verifica-se que não conseguem usar aquilo que lhes é interpretado e todo o processo de análise corre o risco de ruir. Eles dizem que já sabem aquilo que é falado e visivelmente o desperdiçam, jogando fora o que muitas vezes é conseguido com esforço. N ão raro, têm ocasião de pensar sobre o que é dito, mas o ataque invejoso impede a utilização em seu benefício. Não podem fazer alguma coisa com os pensamentos do analista, tampouco com os próprios, por isso se esterilizam. Se pudessem perceber os ataques invejosos e aceitar o sistema mental da inveja, comporiam com o psicanalista uma força conjugada em favor de seu crescimento psíquico.

 

Um sistema de ataques

O sistema mental determinante é constituído pelo padrão dominante de funcionamento mental inconsciente e consciente que tende a se estabelecer de modo relativamente constante, por períodos relativamente prolongados (Trinca, 2007). Em uma psicanálise compreensiva, se quisermos focalizar o sistema mental determinante da inveja, deveremos levar em conta a constelação do inimigo interno (ibid.), mesmo que não seja esse o único fator responsável pelo sistema. O sentimento de inveja é despertado quando o indivíduo se depara com uma força contrária à sua adaptação situacional (cf. Mira Y López, 1960); essa força pode estar intimamente relacionada com os ataques da constelação. N esse caso, a inveja tem por substrato o ódio consciente ou inconsciente do indivíduo voltado contra si próprio por causa de lacunas, falhas ou faltas que se tornam insuportáveis na comparação com outro(s) indivíduo(s). Antes de destruir o(s) outro(s), detentor(es) das boas qualidades invejadas, o invejoso dirige a si próprio a acusação de insuficiência ou deficiência dessas qualidades. Por isso, ele fica em lugar denegrido, imprestável e degradante, comparando-se com quem detém a posição ou a condição privilegiada. N a análise, um aspecto a ser observado refere-se aos sentimentos de autodesprezo, humilhação e inferioridade, que surgem em consequência dos ataques. O paciente costuma alimentar fantasias de inutilidade e de incapacidade justamente a propósito daquilo que sente lhe faltar. Trata-se de uma situação propícia ao distanciamento de contato com o ser interior, porque em vez de se aninhar em seu ser é a repulsa que predomina, vindo a afetar os vínculos do paciente consigo mesmo. Essa é uma situação típica de ataque aos vínculos (Bion, 1972), que resulta em estado lacunar.

Um exemplo de ataque destrutivo com distanciamento de contato vem do sonho de um paciente, relatado por Segal (1966), em que um dinossauro faminto e voraz havia atacado e devorado toda a cidade de Londres. Iria atacar, também, o paciente, que tentava controlá-lo. Mas o paciente alimentava esse inimigo, que fazia a inveja tornar-se cada vez maior. Tinha produzido um vácuo por devorar tudo ao redor, resultando em crescimento da inveja e em solidão.

 

A ameaça de esvaziamento

Sob a mira dos ataques e distantes de si mesmos, os pacientes tendem ao esvaziamento, com riscos de incrementação da angústia de dissipação do self. Mas, longe de pôr o self em perigo, entra em ação a inveja como medida compensatória à fragilidade. É um mecanismo de reequilíbrio, que busca a evitação do abismo, quando a ameaça de esvaziamento é real. Se inexistisse a inveja que, por causa do ódio intensificado contra alguém que evoca uma desqualificação, é reasseguradora ao sujeito quanto aos seus direitos à existência, o sistema mental poderia ser outro. Certamente foi o que levou Rivière (1975) a pensar que a inveja é uma defesa contra a desintegração interna.

 

A sensorialidade da inveja

No lugar do contato com o ser interior predomina a sensorialidade da inveja. Como se manifesta essa sensorialidade? Inicialmente o sujeito invejoso encontra um obstáculo ou sente uma perda na obtenção de um bem, favorecimento ou vantagem que ele desejaria ter, porque acredita ser importante ou legítimo tê-lo, mas que lhe é negado. Alguém mais, que não seja ele, é detentor da condição ou privilégio que lhe falta. Uma falta que ele experimenta com desgosto, tristeza, irritação ou aflição, porque implica desqualificação, humilhação e inferioridade. Por comparação, o ódio é dirigido a quem ou àquilo que lhe evoca insuficiência, deficiência, rebaixamento e impotência. Bem entendido: o ódio é consequência do obstáculo julgado intransponível à obtenção do que é desejado, e o obstáculo é constituído justamente pela comparação, na qual as capacitações e condições do sujeito são julgadas insuficientes ou são denegridas. Contudo, o ódio tem em mira remover ou destruir a fonte da comparação, que é o beneficiário do que é desejado, de onde aparentemente provém o sofrimento do sujeito. A remoção ou destruição dessa fonte tem por fim evitar ou suprimir a experiência dolorosa de descapacitação, que levaria à autorrejeição. Isto porque o sentimento de ódio não deixa lugar à experiência de autodesqualificação, que culminaria em autorrejeição. O self repleta-se, então, de sensorialidade vivida como ódio intensificado em inveja, que em certos casos pode se concentrar e se cronificar. Para não sucumbir aos ataques, a autorrejeição é imediatamente convertida em ódio voltado para fora sob a forma de inveja contra o objeto da comparação, que corresponde ao beneficiário indevido do bem ou qualidade em questão. Ou seja, o invejoso busca remover ou destruir a fonte que o faria se sentir rejeitável, redirecionando o ódio contra outrem. O ódio ao objeto fica no lugar do ódio a si próprio. Com isso, a validade do sujeito se preserva porque, em vez de se odiar, ele constitui uma proteção que o faz se restabelecer em valor próprio e em direito à existência. Aos seus olhos, não deixa de se sentir alguém. A mobilização da inveja não suprime os ataques da constelação, tampouco evita o distanciamento de contato, mas a sensorialidade que se manifesta tem a função paradoxal de manter algo a respeito da bondade do sujeito. Definitivamente, a situação da inveja traz em seu bojo um duplo equívoco: de dirigir o ódio contra a fonte externa de comparação em vez de localizá-lo na interioridade; e de se constituir em sensorialidade em vez de se ocupar dos ataques e de se empenhar na retomada de contato com o próprio ser.

 

A inveja como um fato clínico demarcado

Convém insistir que me refiro à inveja que aparece como um fato clínico, e não como background e raiz de toda e qualquer perturbação psíquica. Tampouco estou considerando a inveja um constructo teórico geral, que está na base da compreensão de todo comportamento humano. Sendo um fato clínico demarcado, ela constitui-se em sistema mental determinante e serve aos propósitos da presente discussão. Ela estabelece um foco, cuja origem é o ódio transformado em manifestação específica e ocupa um lugar relativo em meu modelo, em vez de ser guindada à posição de teoria explicativa de valor absoluto. Nomeada dessa maneira, entendo que a inveja passa a ser, em certos casos, alguma coisa muito importante para o indivíduo, de modo a ofuscar-lhe a visão da vida como um processo mais amplo de experiências. Os relacionamentos tendem a se dar com base em certo padrão, que acaba por formar e manter o self sensorial. N esse contexto, não há como excluir a inveja da posição psíquica fundamental que em psicanálise denominamos esquizoparanoide. Derivada do ódio, a inveja ataca o objeto primordial e impede as experiências boas, necessárias ao desenvolvimento favorável do bebê. Mas é preciso verificar em cada caso quais são as formas assumidas pelo ódio em suas vicissitudes e transformações, das quais a inveja é uma das herdeiras.

 

O duplo aspecto da inveja

Sendo assim, é impossível dissociar a inveja do contexto de contato com o ser interior e negar sua relação com a pulsão de morte, aqui representada pela constelação do inimigo interno. O duplo aspecto da inveja, como ódio às fontes da vida e como sentimento amoroso articulado pelo pensamento, foi percebido por Bion, tal como encontramos nos comentários de Chuster e Trachtenberg (2009):

A inveja, como metáfora para o ódio às fontes da vida, só pode existir simultaneamente com algum sentimento amoroso (gratidão) e, mais ainda, nunca sem um Saber (vínculo K) que os une e articula como pensamento (transformações do pensamento). (p. 57)

Se em Bion há um Saber (K) destinado a integrar a experiência emocional, só pode provir da relação amorosa do indivíduo consigo próprio e, se há um ódio às fontes da vida, só pode se originar da pulsão de morte. Se esse duplo aspecto tem coexistência no mesmo indivíduo, só pode representar o jogo das respectivas influências sobre o self.

 

O objeto bom e a experiência de completude

Pela teoria kleiniana, entre outras, é possível estabelecer que o bebê consegue desfrutar de prazer, felicidade e gratidão se são dados por uma relação inicial favorável com a mãe e com o seio.2 Penso que um encontro bem-sucedido do ser do bebê com o ser da mãe realiza-se quando a mãe reconhece o ser do bebê e, por causa disso, permite que esse se sinta vivo, presente e existente. Assim, o objeto bom emerge da experiência emocional que, nesse encontro, auxilia o bebê a se pôr em relação consigo próprio. Em sua imaturidade, para se experienciar como ser, o bebê necessita, antes, de reconhecimento e depende da mãe ou de quem a substitua para um encontro em dupla profundidade (Trinca, 2007). Tendo esse encontro se realizado, o objeto bom surge da experiência de completude, que consiste em ser reconhecido e em se reconhecer como ser. O bebê passa a ter contato com as fontes da vida, que lhe trazem gratificação. Deixa de estar interferido por emoções a ele estranhas e aninha-se de presença e de existência.

Contudo, interferências sobre esse processo podem se dar precocemente e ter repercussões sobre o self em formação, ocasionando descontinuidades e, mesmo, rupturas na experiência de existência própria. A meu ver, a insuficiência ou a perda do objeto bom, assim como a predominância do objeto mau, se correlacionam com as dificuldades ou com a insuficiência de encontros bem-sucedidos entre a mãe e o bebê, deixando-o à mercê de angústias. Como? Estando comprometido o relacionamento primário, há dificuldades de permanência da experiência estabilizadora, descrita em psicanálise como um objeto bom, cujos fundamentos se sustentam em um bom relacionamento do bebê consigo mesmo. Nessa situação, o bebê mobiliza ódio, que se intensifica e se volta contra a fonte de desprazer e de infelicidade: o objeto bom perdido. Fica favorecida a ação de ataques ao objeto bom, cujo encontro não foi possível ou não se deu de modo satisfatório. Portanto, aquilo que ataca internamente parece ter toda a razão do mundo para a mobilização de seu ódio. A ação da pulsão de morte acompanha a falha e a falta ambientais precoces representadas pelo seio e pela mãe. Ou seja, as dificuldades ou insuficiências de encontros bem-sucedidos ativam a pulsão de morte e determinam o distanciamento de contato. Assim, um ambiente insuficiente ou precário vem se compor, no bebê, com um mundo interno em estado de turbulência.

 

Como situar a inveja?

Como situar a inveja nesse contexto? Seguramente, ela diz respeito ao modo de relacionamento com o objeto e se diferencia do puro sentimento de ódio voltado à destruição de um objeto detestado. Acredito que o que faz o ódio se transformar em inveja é que há nesta, em primeiro lugar, a presença do bom em relação ao objeto, que é um aspecto reconhecido e desejado pelo sujeito. Em segundo lugar, o objeto é odiado não por sua simples maldade, mas por ser detentor de boas qualidades que faltam ao sujeito, das quais ele se sente despojado. Finalmente, a inveja é constituída por uma relação tripartite, na qual figuram: 1) a experiência de completude, que de algum modo é ou foi vivida em contato inteiriço com o ser interior; 2) os ataques contra a vida, derivados da pulsão de morte, que visam destruir a experiência boa; 3) o objeto bom desejado e faltante, tornado mau porque é tido como fraudador da experiência de completude, contra o qual, justamente por isso, o sujeito se revolta e mobiliza sua ação destrutiva. N esse sentido, pode-se afirmar que na base da inveja existe uma comparação (Chuster e Trachtenberg, 2009). Há uma comparação entre o objeto bom, representado pela experiência de completude, e o objeto mau, representado pela defraudação, em parte, dessa experiência. Tal comparação faz o sujeito se sentir em estado de legitimidade para mobilizar a ação destrutiva, porque se vê colocado em situação de desvantagem, privação e sofrimento. Desse modo, a inveja corresponde à intensificação do ódio, que se dá dentro de uma particular configuração psíquica. Acredito, ainda, que esses elementos básicos da inveja se encontram presentes na vida emocional do bebê. Eles necessitam ser considerados relativamente à presença de contato e às dificuldades de contato com o ser profundo, que são experimentadas precocemente.

 

A vida emocional do bebê

Essa concepção está concorde com a teoria kleiniana que sustenta que a inveja surge quando o seio exclui o bebê e este passa a odiar o seio mau relutante, que retém tudo para si (Klein, 1964). Também, assegura que a inveja constitui uma expressão da pulsão de morte projetada no seio e na mãe, atuando desde o início da vida. Melanie Klein associou a inveja a elementos básicos da vida emocional e não excluiu a participação do ambiente, em especial dos cuidados maternos e da amamentação. Podemos compreender que, no contexto dos cuidados maternos insuficientes e insatisfatórios, há uma predisposição e uma facilitação de ataques ao contato com o ser interior, pela mobilização de ódio contra o objeto nutridor que, sendo fonte de vida, nega precipuamente segurança e satisfação ao bebê. Ao se transformar de boa em má a experiência de relação consigo próprio, o bebê depara-se com um objeto usurpador, que é o equivalente da má experiência advinda das dificuldades e insuficiências do encontro e do contato. A inveja estriba-se, pois, numa mudança de vértice na relação com a experiência de contato, que se torna um objeto ausente e odiado, tendo por referência um outro objeto, amado e desejado. O invejoso é, pois, um ser vingativo que se sente roubado de sua segurança existencial e de sua satisfação plena de viver.

 

A dinâmica da inveja

O bebê que sofre tal transformação em sua noção de si mesmo prefigura o adulto cujo self se sustenta no sistema da inveja. N esse adulto, a pulsão de morte passa à evidência como constelação do inimigo interno, que mobiliza o ódio contra a individualidade (Trinca, 2007). Eis como considero a dinâmica da inveja: a situação primordial de insuficiência é favorável à indução dos ataques, de sorte que o indivíduo se vê confrontado com a anulação de seus recursos, capacidades e criatividade, bem como com a diminuição de seu valor próprio, de sua dignidade de ser amado e de seu merecimento em ser alguém. Clinicamente, é incontestável a discrepância entre a noção de si mesmo que adviria de um contato verdadeiro e a noção encontrada sob os efeitos dos ataques, visto que o self se modifica em função do distanciamento de contato que ocorre. Paradoxalmente, a fonte da inveja não é localizada pelo indivíduo nos ataques da constelação, e sim em outrem que, sendo possuidor das qualidades e vantagens desejadas e não possuídas por aquele, torna-se alvo de sua indignação e de seu ódio, ao se sentir injustamente rebaixado e humilhado. Trata-se, porém, de outrem que, por seus dotes, faz evocar a falha e a falta daquilo que o invejoso desejaria possuir e não possui, mesmo considerando-se em condições para tanto. Aqui se coloca uma contradição entre a imagem inconsciente de si próprio dada pelos resultados dos ataques e a imagem interna pela qual o indivíduo invejoso se relaciona com outrem, evocador de sua falha e falta. N a passagem de uma para outra situação, o invejoso realiza uma mudança de concepção, pela qual se transforma de desqualificado em qualificado para possuir aquilo que não possui. Julgando que deveria possuí-lo, acha-se legitimado para mobilizar seu ódio a quem lhe faz sentir a subtração das merecidas qualidades. O ódio volta- se contra o estímulo que o faz experimentar rebaixamento e humilhação, ou seja, contra a versão atual desenvolvida, em parte, do objeto original desejado e faltante, tido como fraudador por negar a experiência boa do indivíduo consigo próprio. Essa situação mental reaparece agora sob a forma de negação de bem-estar e de provimento considerados necessários e legítimos. Assim, o indivíduo invejoso busca remover a fonte de sofrimento posta no objeto evocador da insuficiência e da insatisfação primárias.

 

O estado do self

A passagem que se dá de uma para outra situação mental é correlativa a uma modificação no estado do self: em vez de prevalecer a autorrejeição, que levaria à fragilidade, há predominância da sensorialidade do ódio voltado contra o detentor das boas qualidades. Uma modificação essencial, que preserva o self de esvaziamento e de incrementação da angústia de dissipação. Contudo, é uma modificação que define em parte a orientação predominante do self, porque a pessoa assume características que passam a ser básicas para ela: “eu sou esse ódio e essa inveja”. Apesar de ser esta uma afirmação enganosa quanto ao essencial, a pessoa estriba-se nela e tende a se reequilibrar em seu sentimento de ser alguém. Trata-se, sem dúvida, da saturação do self com elementos invejosos como medida compensatória destinada à autoafirmação, à segurança emocional e à sobrevivência psíquica. Estabelecendo-se em sistema mental determinante, não só dá a tônica ao self, como define um padrão preferencial de relacionamentos.

 

Discussão

Na presente discussão, não creio ser necessário alterar a concepção kleiniana com a finalidade de substituir o alvo original da inveja, o seio nutridor, pelo objeto onipotente idealizado, como quiseram Feldman e De Paola (1998), nem tampouco pelo objeto provedor idealizado, que é ao mesmo tempo enganador, parcial e injusto, como descreveu Laverde- Rubio (2006). Essas variantes foram cogitadas para suprir uma lacuna teórica, na falta de se considerar, como o faço, a atuação da constelação do inimigo interno, ou seja, o terceiro elemento da relação tripartite ao qual se reportar. N ão haveria a necessidade de preconizar um objeto idealizado que não funciona, caso se percebesse o processo de desqualificação incidente sobre o self, que subtrai a experiência boa, com todas as consequências decorrentes. Além disso, a presente abordagem permite discriminar e separar os ataques originários dessa constelação, que são derivativos da pulsão de morte, dos ataques ao objeto evocador de falha e falta, que são elementos sensoriais na composição do self. Se, entre outros aspectos, a constelação tem por alvo a destruição da individualidade, a inveja é constituída por um ódio que visa à manutenção sensorial em face da ameaça de esvaziamento do self na mira dos ataques. Por isso, na autodestrutividade o indivíduo tende a se tornar mais fraco, enquanto na inveja tende a se tornar sensorialmente mais forte. Ela é uma forma elaborada de ódio, mas, seguindo alguns autores (por exemplo Chuster e Trachtenberg, 2009), acredito não ser fundamental considerá-la constitucional e geneticamente implantada. Longe de ser um obstáculo com o qual não se pode lidar, ela é um elemento dinâmico que se torna cada vez mais transparente. O profissional poderá empregar sua capacidade de rêverie (Bion, 1972) para devolver ao paciente a parte de reconhecimento como ser que lhe foi subtraída na relação primária, restabelecendo, assim, o objeto bom distante, ausente ou perdido. É uma atitude que consiste em ajudá-lo a se pôr de acordo consigo próprio, em vez do distanciamento de contato, cuja pressão pode forçar o surgimento de soluções sensoriais no mínimo desditosas e precárias.

 

Referências

Bion, W. R. (1972). Volviendo a pensar. Trad. de D.R. Wagner. Buenos Aires: Horme.        [ Links ]

Chuster, A. e Trachtenberg, R. (2009). As sete invejas capitais: uma leitura psicanalítica contemporânea sobre a complexidade do mal. Porto Alegre: Artmed.        [ Links ]

Feldman, E. e De Paola, H. (1998). Uma investigação sobre o conceito psicanalítico de inveja. Rev. Bras. Psicanál., São Paulo, 32(2), 223-249.        [ Links ]

Houaiss, A. e Villar, M. S. (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.        [ Links ]

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Spinoza (1999). Ethique. Trad. de Bernard Pautrat. Paris: Seuil. (Ed. bilíngue).        [ Links ]

Trinca, W. (2007). O ser interior na psicanálise: fundamentos, modelos e processos. São Paulo: Vetor.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Walter Trinca
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e Instituto de Psicologia da USP]
R. João Moura, 627, Cj. 61
05412-001, São Paulo, SP
E-mail: wtrinca@usp.br

Recebido em 5.2.2009
Aceito em 4.6.2009

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
2 Em muitas passagens de sua obra, Melanie Klein (1964) sublinha o papel fundamental da relação mãe-bebê. Por exemplo, ela afirmou que “o objeto bom, em sua forma mais primitiva da mãe que cuida do bebê, foi reconquistado” (p. 61).

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