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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.3 São Paulo set. 2009

 

ARTIGOS

 

Uma aproximação ao mundo dos conteúdos oníricos e a cesura1

 

Una aproximación al mundo de los contenidos oníricos y la caesura1

 

An approach towards world’s oneiric contents and the caesura1

 

 

Edival Antonio Lessnau Perrini2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Núcleo Psicanalítico de Curitiba - Curitiba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor apresenta relatos clínicos, pessoais, e retirados da literatura para pensar experiências emocionais ligadas ao que Bion denominou, em 1977, de Cesura.
Mostra que, na vivência da Cesura, partes dos protopensamentos e dos conteúdos oníricos da mente podem deixar sua forma potencial e indiscriminada para serem realizadas psiquicamente.
Enfatiza também que “trabalhar na Cesura”, peculiaridade do método psicanalítico, é trabalhar com movimentos paradoxais que apontam para mudanças súbitas e inesperadas de estados mentais. E que suportá-las, na clínica e no cotidiano, em seu vazio imediato de significação, e contê-las, é o que pode possibilitar estas realizações.

Palavras-chave: Cesura; Experiência emocional; Conteúdos oníricos; Estados da mente.


RESUMEN

El autor presenta relatos clínicos personales y de personajes extraídos de la literatura, para pensar experiencias emocionales ligadas a lo que Bion denomina, en 1977, Cesura.
Muestra que, en la vivencia de Cesura, parte de los contenidos oníricos de la mente, pueden dejar su forma potencial e indiscriminada para ser realizados psíquicamente. Enfatiza también que “trabajar en la Cesura”, peculiaridad del método psicoanalítico, es trabajar con movimientos paradojales que permitan cambios súbitos e inesperados de los estados mentales. Y que soportarlas, en la clínica y en lo cotidiano, en su vacío inmediato de significado, y contenerlas, es lo que puede posibilitar estas realizaciones.

Palabras clave: Cesura; Experiencia emocional; Contenidos oníricos; Estados de la mente.


ABSTRACT

The author presents clinical, personal statements and literature texts to think about emotional experiences linked to what Bion called, in 1977, as Caesura.
He shows that, experiencing the Caesura, parts of the oneiric contents of the mind is able to let their potential and indiscriminate form to be psychic accomplished.
He emphasizes also that “working the Caesura”, a peculiarity of the psychoanalyst method, is working with paradox movement that point out to a snap and unexpected change of the mental states. And to abide them, on clinic and on everyday life, on its empty immediate meaning, and bearing them, is what can make these accomplishments possible.

Keywords: Caesura; Emotional experiences; Oneiric contents; States of the mind.


 

 

Vésperas

No princípio é a luz do verbo.
Dentro da luz, botão de flor das vésperas, o verbo.
Dentro do verbo em luz, a madrugada das palavras.
No princípio é a luz do verbo.
Se me toca, falo.
(poema inédito do autor)

 

É possível escrever um texto sobre Cesura. Mas o novo que emerge de nossas trevas não habita nossos vícios. O desconhecido não cabe dentro do útero para sempre: ou o conforto é rompido ou segue nos induzindo à repetição. E repetir é muito agradável. Podemos fazer arranjos que parecem novidades. Geralmente são armadilhas. A novidade é absolutamente incontrolável. De repente, estamos dentro do solavanco, do medo, do sobressalto. Nesses momentos podemos estar perto da experiência emocional de Cesura.

A criteriosa observação, mas principalmente a coragem de se arriscar e olhar onde havia pouca luz e abundavam temores, levou Melanie Klein (1935, 1946) a apreender novidades sobre a mente primitiva. Seus conceitos de cisão e de identificação projetiva ampliaram os limites conhecidos da psicanálise, alimentaram com substância muitos autores e permitiram novos ângulos de observação clínica. Bion (1957) esteve muito perto desta fonte. Ousou também e chegou a um modelo de mente em que a ideia de inconsciente de Freud (1915) sofre uma dessas sacudidelas, uma profunda ampliação:

Está implícito na descrição que fiz que a personalidade psicótica, ou parte psicótica da personalidade, utilizou a cisão e a identificação projetiva como um substituto da repressão. Enquanto a parte não psicótica da personalidade recorre à repressão como meio de eliminar da consciência - e de outras formas de manifestação e atividade - certas tendências da mente, a parte psicótica da personalidade, por sua vez, tenta livrar-se do aparelho de que depende o psiquismo para levar a efeito as repressões; tem-se a impressão de que o inconsciente foi substituído pelo mundo dos conteúdos oníricos. (Bion, 1957/1988, p. 53; o grifo é meu).

De 1957, ano em que escreveu o trabalho acima, até 1977 quando apresentou Cesura, Bion viveu experiências, em si e com seus pacientes, que lhe permitiram construir uma obra que sublinha e amplia essa nova perspectiva do funcionamento psíquico. Seu olhar busca e depura intensamente a experiência emocional. Sua proposta clínica é cada vez mais um convite ao viver desprendido da mesmice das palavras impregnadas de passado, de sentidos usuais, de explicações e de desejos predeterminados. Suportar o silêncio do não conhecido é que permite ouvir a sonoridade intrínseca da vida.

Freud (1926/1976) trouxe o modelo da cesura do nascimento para a psicanálise a fim de sublinhar dois aspectos que pretendia dar ênfase: a cesura propriamente dita e a continuidade que está presente entre a vida intrauterina e a primeira infância. Já existe, na contribuição de Freud, referência explícita a este modelo que contém o núcleo paradoxal da Cesura: há algo que se rompe e há algo que tem continuidade.

A representação de mente que Bion (1957) concebeu para dar conta de sua experiência clínica alcançava uma cesura <-> continuidade entre as partes psicóticas e não psicóticas da mente. Esta representação foi expandida em O aprender com a experiência (1963) como uma apreensão conceitual e clínica que, a partir de recursos teóricos de Klein (identificação projetiva, cisão, posição esquizoparanóide, posição depressiva), ampliava o conceito cesura <-> continuidade, e incluía a teoria das funções como possibilidade técnica de se aproximar do mental.

Até Transformações (1965), o modelo de mente de Bion não perde a condição essencialmente desenvolvimentista que caracteriza as representações de Freud e Klein.

Em Transformações há uma cesura epistemológica. A topografia consciente/inconsciente, psicótico/não psicótico, posição esquizoparanóide/posição depressiva se rompe e “as dimensões do conhecer e das percepções do sensorialmente sensível passam a compartilhar com as do alucinatório, da existência autônoma dos pensamentos e do ser um com a realidade, o reconhecimento de serem âmbitos ou domínios em que vivemos o psíquico” (Braga, 2003, p. 227).

O alucinatório é parte integrante dessa dimensão psíquica, como propõe Braga a partir de Transformações de Bion, e os conteúdos protomentais e oníricos são elementos vivos. Esse olhar permite, pela Cesura, acesso às vivências emocionais que definem um universo construtor de realidades paralelas ao senso comum. O analista, por meio dessa porta-cesura, pode transitar junto a elementos emocionais que permaneciam em estado de “vésperas”, como sugere o poema-epígrafe e, a partir do trabalho de sonho alfa (Bion, 1992), possibilitar que esses elementos sejam transformados em algo que possua linguagem útil para a realização mental; que sejam capazes de “tocar a alma” da dupla - analista e analisando - de forma a produzir outra experiência emocional, em que os elementos “vésperas” possam (ou não) vir a ser apreendidos, representados, pensados e integrados ao repertório onírico.

A proposta de Bion de “Investigar a Cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não o consciente; não a sanidade; não a insanidade. Mas a Cesura, o vínculo, a sinapse, a (contra-trans)-ferência, o humor transitivo-intransitivo” (Bion, 1977, p. 136) aponta para esse sentido. A ideia de sinapse como ponto de ligação, e não como conceito em neurociência, sugere a viabilidade de ligação entre esses múltiplos universos, a possibilidade de passagem de um estado mental para outro dentro de uma vivência singular, paradoxal, marcante e muito forte porque sentida como desorganizadora: o novo que nos emerge realmente não habita nossos vícios.

A Cesura (1977) aponta para uma sintonia com a cesura <-> continuidade que se desenvolve em Transformações. Muito além do modelo inicial da cesura do nascimento, aqui é a intensa experiência emocional da dupla que vai permitir (ou não) que os paradoxais conteúdos primitivos possam ser objetos de transformação. A condição amadurecida de disponibilização da função continente da mãe (e do analista) (Bion, 1963/ 1980) é vital para que a explosão seja contida e propicie alguma realização criativa. Esta vivência permite apreender a mente dentro do modelo de uma cebola (Bion, 1977), que se expande “com muitas camadas diferentes” em que o velho e o novo perdem o componente cronológico e se manifestam no agora que pode - ou não - ser penetrado, mas que, se o for, será por meio de uma vivência emocional turbulenta e geradora de desacomodação.

Trabalhar a partir da Cesura é um desafio, uma possibilidade de se haver com experiências não impregnadas de sentido conhecido, uma condição singular de se viver a clínica psicanalítica.

 

II

A sra. Y me procurou em momento de profunda insatisfação. Buscava razões que justificassem seus envolvimentos em relações em que ela se sentia predominantemente desconsiderada. Pessoa racional, executiva bem-sucedida, mostrava-se afetiva na relação comigo, mas cobrava frequentemente explicações, e trazia exemplos que me pareciam mais provas das suas suspeitas e acusações do que elementos capazes de nos aproximar. Chamava de “muito esquisitos” os seus relacionamentos. Chorava com frequência, manifestava claramente seu rancor e reclamava da ausência de uma família original que a tivesse amado verdadeiramente. A esta família debitava o preço de suas insatisfações. N ão abria mão de entender o que não compreendia. E dizia buscar a análise para isto.

Esse era o clima emocional da maioria das suas sessões, e me despertava, muitas vezes, sensações de cansaço e sonolência. Percebia em mim sinais de desesperança na possibilidade efetiva de que pudéssemos criar um clima analítico para as nossas conversas. Via-me, outras vezes, pensando em encaminhá-la para uma retaguarda psiquiátrica, na esperança de que, diminuída quimicamente a sua ansiedade, fosse possível uma conversa espontânea, fora do estigma causa/efeito.

A pressão para que surgisse o médico psiquiatra em mim parecia-me a sua forma de manter contato com um analista alucinado que, certamente, sabia o que ela devia fazer para resolver todos os seus problemas.

Seria esta a forma que a sra. Y tinha de me comunicar seu estado emocional de desamparo? Sua conduta concretizaria um pensamento que não tinha como ser expresso de outra forma, nem poderia ser conversado de maneira mais direta entre nós?

O fato é que quando eu conseguia apreender esse movimento, voltava a me sentir vitalizado para conversar com paciência e compaixão, acolhendo sua angústia e não atuando a minha.

Numa sessão, ela (que dizia nunca sonhar) trouxe um sonho em que ia a um terreno baldio e depositava sobre algo que lembrava um túmulo (talvez o túmulo de seu pai), uma enorme quantidade de livros, os seus livros, e saía de lá de mãos vazias para fazer uma viagem em um imenso e caudaloso rio cheio de pedras e cachoeiras perigosas. Seu relato é acompanhado de muita angústia: o rio desaguava num quarto fechado, onde ela estava presa e asfixiada, e quem lhe encorajava a sair pela única janela existente era seu marido.

Estaríamos nos aproximando de elementos primitivos de sua mente que encontravam uma forma de realização mental? Esta possibilidade permitiria, agora, uma expressão que podia estar vinculada a elementos oníricos e não apenas a fatos concretos? Seu sonho e sua angústia apontariam para o desejo de poder experimentar um viver mais livre de roteiros intelectuais preestabelecidos (seus livros), um estar disponível às vivências, mesmo que o caminho novo se apresentasse perigoso (rio caudaloso, cachoeira, pedras, quarto fechado)? Seu marido poderia ser a expressão de nossa parceria analítica que, ao poder suportar seu desamparo, e o próprio movimento do analista (real) de atuar a sua angústia via uso de medicação, por exemplo, era apreendido como possibilidade verdadeira para auxiliar seu desejo de se aproximar de si mesma, incompleta, paradoxal, humana?

O fato é que tudo o que falávamos parecia fazer sentido por pouco tempo; logo a angústia e o desconforto voltavam e dispersavam seu pensamento, e a antiga forma racional voltava.

Algumas semanas depois do relato desse sonho, numa sessão muito tensa, em que novamente esbravejava contra todos, ela repentinamente deu um pulo no divã, se colocou sentada e, olhando para mim com raiva, gritou: “ENTÃO VOCÊ N ÃO SABE O QUE FAZER COMIGO?!…”

Depois de me recompor do sobressalto, de viver (e conter) dentro de mim a vontade forte de agir, e de gritar também, consegui dizer para ela: “Não”. E, após um pequeno silêncio, completar: “Você quer que eu te adote como você diz que faz o seu marido, o seu sócio, o seu irmão; mas é isto também o que você NÃO quer. Por isso está aqui”.

A sra. Y seguiu desacomodada, gritou, xingou, depois chorou muito e mergulhou em um novo enorme silêncio. O estardalhaço do seu berro e a tensão vivida por mim apontavam para o surgimento de uma cesura entre o alucinatório e o ser. Estavam rompidas as fronteiras entre o analista alucinado e o analista real.

No momento seguinte da sessão houve uma intensa emergência de ansiedade e de ideias: nada dava certo com ela, seus relacionamentos estavam fadados a fracassar, sua experiência comigo seguia o mesmo molde de seus outros relacionamentos, enfim, sua vida não tinha mesmo saída. Suas sessões eram pesadas, mas não me despertavam mais desesperança, nem me sentia sonolento ou desanimado. Conversávamos e, apesar de suas queixas, sentia que havia sintonia em nossa conversa. Mesmo assim, ela me pedia medicação e afirmava que minha relutância em indicar um psiquiatra era fruto de minha não sensibilidade com o seu sofrimento.

Um dia, avisou que havia procurado um médico e que este lhe prescrevera um antidepressivo. Ouvi, e continuei conversando com ela como sempre. N ão valorizei sua decisão, embora tenha me sentido, no primeiro momento, provocado. Ela fez uso dessa medicação por alguns meses. Depois foi descontinuando seu uso, e, finalmente, me comunicou que havia interrompido.

O impacto que a sra. Y pôde experimentar no contato com a cesura que se apresentou na nossa relação, permitiu-lhe realizar a apreensão de um pensamento singular: ela, somente ela, e ninguém por ela podia ser o sujeito de sua vida.

A turbulência que se fez revela o estrondo psíquico da quebra das paredes de concreto que evitavam o contato com o seu ser, com a sua própria vida, antes nunca sentida verdadeiramente como sua. A dor evidente, associada a essa apreensão era dor, mas era fertilidade também.

 

III

A literatura, a música, a pintura e as obras de arte em geral, descomprometidas com o conhecido, desvinculadas do pensamento linear, corajosas em ser a partir da intuição criadora, podem produzir impacto semelhante porque, além de provocar evocações, abrem cesuras por onde podemos reconhecer em nós o mundo dos não-conteúdos e dos conteúdos oníricos. O paradoxo que habita o viver a cesura se manifesta pela vivência, ao mesmo tempo, da ruptura e da continuidade: da busca que não sabe que é busca, do novo que é desejado e intensamente repudiado.

A importância que alguns livros têm em nossa história pessoal, pode estar relacionada às rupturas e às transformações que nos permitem acesso a áreas desconhecidas da mente e que são determinantes para a edificação de nossa identidade singular. O antropólogo americano Loren Eiseley tem uma bela história que pode auxiliar nessa comunicação:

Descobrir outro mundo não é apenas um fato imaginário. Pode acontecer aos homens. Aos animais também. Por vezes, as fronteiras resvalam ou interpenetram-se: basta estar presentes nesse momento. Vi o fato acontecer a um corvo. Esse corvo é meu vizinho: nunca lhe fiz mal algum, mas ele tem o cuidado de se conservar no cimo das árvores, de voar alto e de evitar a humanidade. O seu mundo principia onde a minha vista acaba. Ora, uma manhã, os nossos campos estavam mergulhados num nevoeiro extraordinariamente espesso, e eu me dirigia às apalpadelas para a estação. Bruscamente, à altura dos meus olhos surgiram duas asas negras, imensas, precedidas por um bico gigantesco, e tudo isso passou como um raio, soltando um grito de terror tal que eu faço votos para que nunca mais ouça coisa semelhante. Esse grito perseguiu-me durante toda a tarde. Cheguei a consultar o espelho, perguntando a mim próprio o que teria eu de tão revoltante… Acabei por perceber. A fronteira entre os nossos dois mundos resvalara devido ao nevoeiro. Aquele corvo, que supunha voar à altitude habitual, vira de súbito um espetáculo espantoso, contrário para ele, às leis da natureza. Vira um homem caminhar no espaço, bem no centro do mundo dos corvos. Deparara com a manifestação de estranheza mais completa que um corvo pode conceber: um homem voador!… (L. Paulwels e J. Bergier, p. 20).

Experiências pessoais podem também permitir vivências de Cesura. Talvez a primeira vez que mergulhei nela, com alguma consciência, tenha sido com meu filho caçula, quando ele tinha cerca de um ano e meio, e estávamos juntos vendo uma Revista Geográfica Universal. Animado com a abundância de fotos coloridas, eu inventava histórias que ele acompanhava atentamente. De repente, chegamos à foto de um pajé devidamente caracterizado para um ritual indígena. A foto me pareceu alarmante: era um índio com o rosto pintado em diferentes cores, todas fortes, chamativas e extravagantes. Ele trazia no lábio uma concha enfiada por dentro da boca, construindo uma imagem enorme e ameaçadora, e na cabeça ostentava um grande chifre. Seu olhar me trouxe, imediatamente, sensações ruins, e para poupar o pequeno menino tentei, rapidamente, passar para a outra página. Meu filho, muito atento, interrompeu o meu gesto, gritando afetivamente enquanto apontava a patética figura: papai! De repente, inúmeras imagens alucinadas de pai, expectativas lineares da paternidade que eu desejava, modelos ingênuos desmontaram-se e o primitivo, em mim e no meu filho, estava ali para ser contido e vivido verdadeiramente.

Outra experiência interessante, pela turbulência gerada, se deu em minha primeira entrevista com o analista com quem fiz a minha primeira análise. Havia tomado atentamente nota do seu endereço, e sabia que seu consultório ficava no 19° andar. Inadvertidamente, entrei no prédio situado na quadra anterior. Dentro do elevador, solicitei ao ascensorista que me levasse ao 19° andar. Vivenciei um desconfortável estado de pânico quando ele disse calmamente: este prédio só tem 18 andares. Eu queria muito começar aquela análise, mas não sabia o quanto eu também queria, determinadamente, afastar de mim aquela possibilidade. O ato falho, pela fresta que abriu para um mundo completamente desconhecido, colocou-me diante de elementos oníricos do alucinatório. Aquela penosa vivência e sua elaboração me permitem, até hoje, ser mais paciente e tolerante com meus analisandos, comigo mesmo, e com pessoas com quem convivo.

Observar tais experiências emocionais pode nos auxiliar a utilizar melhor na clínica o que Bion sublinhou ser “um modelo para entender ocasiões bem menos dramáticas (do que o dramático episódio do nascimento) que ocorrem repetidamente quando o paciente é desafiado a passar de um estado de mente para outro” (Bion, 1977, p. 129). Essas súbitas passagens, dramáticas porque nos colocam em contato com um universo emocional diferente do que estávamos trafegando, estão explicitadas nas experiências pessoais que relatei, no episódio do “corvo diante do homem voador”, e no pavor vivido pela sra. Y ao descobrir que eu realmente não sabia o que fazer com ela, e que seu desejo de um analista alucinado não era a minha função como seu analista real.

 

IV

Das possibilidades da psicanálise limitadas às relações anaclíticas (Freud, 1914), até o momento contemporâneo que busca considerar o fenômeno psíquico realizador de transformações dos conteúdos primitivos da mente, temos uma caminhada de observações e trabalhos teóricos e clínicos, que nos deixam uma dívida de gratidão com analistas que se expuseram, observaram e partilharam suas apreensões.

A importância desses trabalhos internalizados no analista e a experiência analítica pessoal e clínica permitem vivências de aproximação ao que se chama de primitivo ou psicótico.Relações analíticas que buscam esta experiência emocional podem criar realizações psíquicas que, se realizadas, ampliam significativamente a consciência do mental.

Não se desconsideram as dificuldades, se oferece contensão à angústia, se busca a empatia com o desejo humano de se livrar do desconforto, de se buscar o porto seguro do conhecido, da valorização da memória cronológica, das explicações e das compreensões intelectuais. Trabalha-se com o sofrimento e com a convicção vivencial que paradoxos pulsam no humano, e que este quinhão original pode ser experimentado no agora da sessão que se vive.

“Não há postulante à análise que não tema os elementos psicóticos nele existentes e não creia poder atingir um ajustamento satisfatório, sem que se analisem esses elementos” (Bion, 1957). Essa visão - absolutamente humana - sublinha a natural postura antiálgica que habita a nossa alma. Vivida verdadeiramente na relação psicanalítica, ela abre uma possibilidade de paciência, contensão e compaixão que respeita a dificuldade, mas não se acomoda a ela. Compreende, contém e vai adiante.

O sonho de que eu insistia, horas e horas, tentando em vão acender, em sua casa, lâmpadas queimadas que eu substituía por outras lâmpadas queimadas parecia ter ocupado toda a sua noite. Ele foi trazido por uma analisanda, em momento de mal-estar e angústia, diante da presença de mudanças concretas que dizia conseguir em sua vida pessoal e profissional, e que eu observava na forma de se relacionar comigo. O conteúdo do seu sonho parecia um antídoto a qualquer possibilidade verdadeira de mudança. Ela me falava com energia, vivamente, mas dizia que essas novas situações não seriam aceitas por sua família. Pensei inicialmente que o que me comunicava elucidava movimentos ambivalentes e defensivos de um momento de ataque ao trabalho. Mas sua fala vívida não me passava “lâmpadas queimadas”, mas luz, energia e determinação. Falei a ela dessa luz, de sua estranheza diante desta energia e determinação, e do seu temor de que eu não pudesse suportá-la acesa e energizada. Incomodou-se inicialmente. Depois relutou, mas se sentiu tocada e pôde apreender o seu medo de partilhar comigo momentos de intimidade, de sentir-se feliz, que era a experiência emocional palpável que estava sendo vivenciada. Serluz, mesmo que por alguns momentos, é cesura para quem tão bem conhece, vive e sente-se segura na intimidade que tem com o ser-trevas.

 

V

Os relatos aqui apresentados, clínicos, pessoais e retirados da literatura, entendem a Cesura dentro de uma visão sublinhada por Franco Filho (2005) de que Bion apresenta a questão da Cesura como um acontecimento dentro da existência, e também como uma postura mental dentro de uma investigação psicanalítica.

Confirma ainda que é peculiar, ao método psicanalítico, provocar cesura e atenção analítica à experiência emocional que dela decorre: a descoberta intempestiva de que o analista não sabe o que fazer com as questões existenciais de sua analisanda; ou o sonho das lâmpadas queimadas, aparentemente sintônico com o mal-estar e a desesperança da paciente, mas que aponta exatamente para outro vértice, a vivência atônita (e desacomodadora) de se perceber com luz própria.

A Cesura pode estar presente também em experiências pessoais apreendidas pela função psicanalítica: o pai que se assusta ao se ver visto (e poder re-ver-se) pelos “olhos” do estado mental primitivo; ou o analisando determinado que se vê traído pelo ato falho na escolha do prédio do futuro analista.

A Cesura pode estar presente ainda em algumas manifestações artísticas, pela densidade de experiência emocional que ela é capaz de despertar em observadores disponíveis: a metáfora surpreendente do corvo e do homem voador, por exemplo.

Sob o vértice da Cesura, partes do mundo primitivo dos protopensamentos, em que há registros de sensações, mas não de significados, e dos conteúdos oníricos, em que já existe uma semente de representabilidade, podem deixar as suas formas potencial e indiscriminada para serem realizadas psiquicamente, o que nos leva a uma possibilidade de apreender a expansão mental fora do viés linear do desenvolvimento.

Trabalhar na Cesura, portanto, é trabalhar com estes movimentos paradoxais que apontam para mudanças súbitas e inesperadas de estados mentais; é suportá-las no seu vazio imediato de significação, e contê-las até ser possível alguma realização psíquica. Trabalhar na Cesura é trabalhar no luto, na experiência dolorosa e assustadora da perda dos conteúdos mentais previamente conhecidos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Edival Antonio Lessnau Perrini
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e Núcleo Psicanalítico de Curitiba NPC]
Rua da Paz, 195/ 416, Centro
80060-160 Curitiba, PR
E-mail: eperrini@onda.com.br

Recebido 16.3.2009
Aceito em 25.6.2009

 

 

1 Trabalho apresentado em Reunião Científica da SBPSP em 10 de junho de 2008.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e do Núcleo Psicanalítico de Curitiba NPC.

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