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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.3 São Paulo set. 2009

 

ARTIGOS

 

A compulsão nossa de cada dia1

 

Nuestra compulsión diaria

 

Our daily compulsion

 

 

Miguel Calmon du Pin e Almeida2

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor parte de suas experiências pessoais as mais mínimas para tentar estabelecer os pontos onde as compulsões se apoiam: pequenas marcas identificatórias, pequenas experiências que vão modelando os modos de ser e existir de cada um de nós. N esta direção, enfatiza o papel e a função do meio ambiente nos processos que resultam na capacidade de representar psiquicamente.

Palavras-chave: Parar de fumar; Marcas identificatórias; Compulsão e meio ambiente.


RESUMEN

El autor parte de sus experiencias personales las más mínimas para tratar de establecer los puntos donde las compulsiones se apoyan: pequeñas marcas identificadoras, pequeñas experiencias que van modelando las formas de ser y existir de cada uno de nosotros. En este sentido, enfatiza el papel y la función del medio ambiente en los procesos que resultan en la capacidad de representar psíquicamente.

Palabras clave: Parar de fumar; Marcas identificadoras; Compulsión y medio ambiente.


ABSTRACT

The author bases himself on his most minimal personal experiences to attempt to establish the points where our compulsions seek support: small identifying marks, small experiences that shape the being and existence of each one of us. Towards this, he emphasizes the role and function of the environment in the processes that result in the ability of psychic representation.

Keywords: Stop smoking; Identifying marks; Compulsion and environment.


 

 

(…) Tudo aqui é distância - lá
era alento. Depois da primeira
pátria, como parece a segunda
incerta e sem abrigo! Bem aventurada
a pequena criatura que sempre permanece
no seio que a criou; ó tu, mosca feliz,
que saltas interiormente ainda mesmo
nas núpcias: o ventre é tudo. (…).
R. M. Rilke (Rilke, 1976, p. 47)

 

Introdução

Mesmo o exílio sendo incerto e sem abrigo, impossível permanecer na primeira pátria. Sobra-nos a aventura da segunda pátria e todas as consequências que esta aventura implica. O reconhecimento desta impossibilidade em um primeiro momento desespera; depois, tranquiliza e por fim ordena.

Em tempos de individualismo exacerbado, os limites de nossa constituição não se apresentam com contornos tão claros e nos pressionam insistentemente por satisfação. E de tal modo que se tem a impressão de que não há impossível que ordene a experiência humana. Tudo é excesso. Tudo é assustadoramente possível. O indivíduo erra em torno desse excesso e não se ancora em nenhum lugar. O sujeito repete suas tentativas de buscar uma inscrição no mundo, mas resvala e nada lhe resta senão repetir.

 

I.

Eu acordava no dia seguinte de uma festa cheia de excessos: bebida, comida, encontros, alegria e cansaço. Minha cabeça doía. Todo meu corpo doía. Estava exausto. Na boca, aquele gosto de cabo de guarda-chuva; na garganta, a sensação de que nada passava, somente o pigarro e o esforço para desprender alguma coisa que teimosamente insistia em permanecer ali. E o pior de tudo, fazia sol naquela bela manhã de domingo. Daquelas manhãs que convidam para tudo o quanto meu corpo se recusava pensar, desejar e muito menos fazer. Das entranhas do meu mal-estar decido: é a última vez que faço isso. Não há necessidade de tanto excesso. Para que tudo isso? Antes tivesse feito tudo com moderação. Não precisaria renunciar drasticamente a tudo, apenas fazê-lo com moderação.

Curioso como nestas horas toda a moralidade do mundo despenca na cabeça com uma evidência que somente um imbecil não teria percebido o que parece tão óbvio e fácil. As frases, assim como os pensamentos, parecem começar da mesma maneira: é só isso; é só aquilo, e tudo parece se harmonizar tão obviamente. No entanto, na noite anterior, toda a moralidade do mundo não seria suficiente para me impedir a embriaguez que permitia me afastar de mim mesmo e do meu dia-a-dia comum. E nem para tornar claro e óbvio o que no dia seguinte me pareceria claro e óbvio. Um tsunami, talvez seja a melhor forma de dizer, me impelira à bebida, à comida, à alegria como se não houvesse mais amanhã. Só mais uma música, que certamente seria a mais importante de todas, a melhor; só mais um copo, a saideira, o “penúltimo”, uma vez que o último somente antes da morte; só mais um pouco. Um último que não cansa de se repetir e não acaba nunca. O último, o que não se finaliza, o que nunca acaba de acabar, cria assim sua autonomia de se repetir. Só a exaustão consegue acabar com o último. Acaba quando eu acabo.

Penso na minha saúde, na minha mulher, nos meus filhos, na manhã que deixo de ir à praia com eles e decido: vou parar de fumar. Uma decisão que me aproxima de um mandamento moral que julgo me tornará uma pessoa melhor. Creio que escolhi o cigarro porque talvez a garganta, naquele momento, me incomodasse mais do que a cabeça ou o cansaço do corpo. N ão era a primeira vez que me empenhava nesse propósito. Já tentara outras vezes e sempre recaíra, como dizem no AA ou no N A, ou em qualquer grupo que trate das compulsões.

 

II.

Nasci em 1953. Vocês já viram algum filme americano dessa época onde o herói ou a heroína não estivessem fumando? A maneira de portar o cigarro entre os dedos, de pousá-lo no cinzeiro, de bater a cinza denotavam e conotavam o caráter e a personalidade do indivíduo. A cena de sedução vinha envolta na aura de fumaça que escondia e revelava ao mesmo tempo o que era para ser percebido sem a necessidade de ser mostrado. O clima da fumaça envolvendo tudo já revelava a intimidade anunciada no gesto. A descontração do liberar a fumaça nos dava a dimensão da liberdade do personagem, sua autonomia, sua independência. Nada o deteria em sua determinação.

Claro que meus pais fumavam. Por razões que vocês certamente podem antecipar, não tinha por relação a eles o mesmo entendimento de tudo o que se insinuava nos casais dos filmes. Mas isso não queria dizer que não os admirasse enormemente na displicência com que jogavam seus maços de cigarro sobre a mesa como se não tivessem nada a esconder. Nada tinham a esconder de ninguém. Eram adultos. Creio que as primeiras representações que fiz do que era ser um adulto foram emolduradas pelo cigarro. Por algumas vezes fumei cigarro apagado só para treinar os gestos. Como deveria soltar a fumaça? Pela boca? Pelo nariz? Aquilo me parecia uma proeza extraordinária. Temia não conseguir jamais fazê-lo. Como deveria segurar o cigarro entre os dedos? Pela ponta dos dedos me parecia mais requintado; no meio dos dedos, era mais casual; quase junto à palma da mão era o suprassumo da irreverência ou da boemia. Como bater as cinzas, como jogar fora o cigarro já fumado, tudo era cercado de charme e significação. Quando eu for grande, chegarei à minha casa, com meu maço de cigarros no bolso, meu isqueiro (abro um parêntese: meu pai tinha um isqueiro Dupont, o que na época era chiquérrimo. Nosso nome de família é du Pin. Ao me apresentar e dizer meu nome, foram muitas as vezes que me perguntaram: “Dupont, dos isqueiros?” Na minha infância esta semelhança sonora integrou minha novela familiar. Gostava de imaginar que minha família era dona da fábrica de isqueiros.). Retomando, chegarei em casa, e sem ter nada o que esconder, colocarei meu maço de cigarros e meu isqueiro sobre a mesa e displicentemente continuarei andando para me ocupar do que quer que seja. Enfim serei grande!

No momento da decisão, “vou parar de fumar”, não pensei em nada disso. Aliás, nem me lembrei de nada disso. Apenas decidi, impulsivamente, movido pelo mandamento moral de me tornar uma pessoa melhor.

“Fumarei o último cigarro e nunca mais vou fumar”, “é a última vez que faço isso”… como entender o sentido deste “o último”, “a última”? O último cigarro; a última vez que faço isso; o último trago; a última compra… O que caracteriza o último destas experiências? O que este último realiza de modo a conduzir inevitavelmente, inequivocamente, irremediavelmente a sua repetição?

Henri-Pierre Jeudy (2007) se refere deste modo ao último:

O prazer do instante, aquele que nos invade quando não pensamos em outra coisa senão no tempo presente, pode, por si só, ser um princípio de vida. Mas o instante retira toda sua potência do fato de ser vivido como o último, mesmo que ele se reproduza. O último não quer dizer a última vez, ele significa que o instante se basta a si mesmo, ele é único. Assim, o olhar que projetamos sobre as coisas poderia ser o último a cada vez, não no sentido que vamos morrer, mas porque o instante é fadado a se desvanecer em si mesmo, a nos deixar. Seu caráter especial vem da banalidade que ele transfigura. E quando ele já se foi, esse último instante, descobrimos que nele repousa a alegria de viver. (p. 49)

Segundo Henri-Pierre Jeudy, por extrair sua potência do fato de ser vivido como o último, por ser único, “o último” deve ser entendido como eterno, como fora do tempo, como o que nem começa nem termina como o que transfigura a banalidade do que pode, a qualquer momento, deixar de ser o que é para ser outro. Portanto, poderia dizer daquilo que me retira da banalidade do acontecimento e me inscreve em um regime especial, que me leva a bastar-me a mim mesmo, nesse último instante. Viver a vida como se não houvesse amanhã. Logo a mim, que por tantas vezes percebo meus estados de alma alterados por situações as mais mínimas, sujeito a mudanças tão rápidas e ao mesmo tempo tão efêmeras, esta experiência do instante se oferece como um princípio de vida, como o lugar onde repousa a alegria de viver. Sem mais amanhã, sem mais sustos, sem mais críticas, sem mais desafios, “o último” emerge como uma defesa contra esta vulnerabilidade, contra esta constante transformação do que sou, do que penso ser, do que me é estranho a mim mesmo em mim. Como resistir a seu fascinante apelo?

Traduzindo, como resistir ao projeto de abolição do desejo como forma de abolição do impasse, da incerteza, da dor e do sofrimento? Pois tal é o projeto das compulsões. Abolir o desejo e, junto a ele, a possibilidade de constituição do sujeito e de seus objetos. Alienar-me no gesto, no ato de fumar, por exemplo, e deixar que ele, o ato de fumar, passe a dizer quem eu sou, me sustente para lá de mim, que insisto em me contradizer a cada manhã.

Por que não pensar a compulsão como a expressão das marcas que desejamos que nos signifiquem, sem que nós próprios tenhamos que nos responsabilizar por sê-las? Não estarão as compulsões apoiadas nestes pequenos lampejos de subjetivação onde ter e ser se confundem? Basta portá-las para ser?

 

III.

João Freire Filho (2005) em seu artigo “Paradoxos da autenticidade: gênero, estilo de vida e consumismo nas revistas femininas juvenis”, trata desta questão afirmando a existência de um certo consenso entre os autores de a identidade ter se tornado “mais móvel, múltipla, sujeita a mudanças e inovações no atual estágio da sociedade”.

Em seu artigo, João Freire Filho se propõe a refletir como as “questões fundamentais da existência (quem sou? o que sou? quem poderia ser? quem quero ser?) ganham no mundo moderno mais premência e lançam o sujeito em duas direções opostas e simultâneas, paradoxais portanto: por um lado, a condição de maior mobilidade, de mais multiplicidade, oferece ao sujeito chances e oportunidades mais ampliadas para a autonomia individual; e por outro lado, e por isso mesmo, intensifica a ansiedade e o risco frente a precariedade de qualquer escolha”. (p. 120)

Este artigo faz parte de uma pesquisa em andamento e trata de recolher, por meio do acompanhamento de uma revista feminina destinada ao público juvenil, a revista Capricho, a maneira pela qual, por meio dos editoriais, artigos, reportagens, entrevistas, depoimentos… tais publicações “oferecem descrições textuais e visuais daquilo que é conveniente em matéria de personalidade, economia, relacionamento afetivo, saúde, comportamento sexual, aparência, vestuário e acessórios” (p. 122), proporcionando modelos quinzenais ou mensais de feminilidade e autoestima, a partir dos quais “as leitoras poderão construir o seu senso do que significa ser - neste exato momento - uma jovem ‘popular’, ‘cool’, ‘in’, ‘fashion’, ‘moderna’, ‘bela’ e, por mais paradoxal que possa parecer, ‘diferente’ e ‘autêntica’” (p. 122).

Aqui encontramos o paradoxo que a psicanálise ajuda a dar visibilidade: a relação paradoxal entre o “eu” e o “outro”. Para ser “eu”, o sujeito humano tem de ser o “outro”. Para ser “diferente”, tem de ser idêntico. N ão há relação de contradição entre um e outro - onde existe um não existe outro. O “eu” e o “outro”, identidade e diferença, se habitam mútua e simultaneamente; eles se constituem mútua e simultaneamente. Paradoxalmente.3

 

IV.

Retomemos a questão proposta acerca do “último”: como entender as relações entre “o último” e o “só por hoje”, lema dos grupos de ajuda dos anônimos? Em que se diferenciam e em que se identificam estes dois paradigmas?

Ambos lidam com perdas e com as dificuldades de se representar a perda e a falta. O “só por hoje” previne e tenta impedir uma promessa impossível de ser garantida pelo sujeito para sempre. No “só por hoje”, uma perda que se quer por definitiva, se apresenta como perda temporária: barra-se o horror do nunca mais. O “último cigarro” toma, por definitiva, a posse de um objeto que é temporária: barra-se o horror do amanhã. Ao contrário da eternidade do “último”, o “só por hoje” é o primado do dia-a-dia.

Freud, em “Inibição, sintoma e angústia” (1926[1925]/1986), nos dá as pistas sobre como se inscrevem as diferenças entre perda definitiva e temporária:

Nosso ponto de partida será novamente a única situação que acreditamos compreender - a situação da criancinha quando se lhe apresenta um estranho em vez de sua mãe. A primeira exibirá a ansiedade que atribuímos ao perigo de perda de objeto. Mas sua ansiedade é indubitavelmente mais complicada do que isto e merece um exame mais completo. Que ela tem ansiedade não resta a menor dúvida, mas a expressão de seu rosto e sua reação de chorar indicam que ela está também sentindo dor. N ela parecem estar reunidas certas coisas que depois serão separadas. Ela não pode ainda distinguir entre a ausência temporária e a perda permanente. Logo que perde a mãe de vista comporta-se como se nunca mais fosse vê-la novamente; e repetidas experiências consoladoras, ao contrário, são necessárias antes que ela aprenda que o desaparecimento da mãe é, em geral, seguido pelo seu reaparecimento. A mãe encoraja esse conhecimento, que é tão vital para a criança, fazendo aquela brincadeira tão conhecida de esconder dela o rosto com as mãos e depois descobri-lo de novo. Nessas circunstâncias a criança pode, por assim dizer, sentir anseio desacompanhado de desespero.4

 

V. Sobre as compulsões e a compulsão a repetir

Pensamentos ou atos obsessivos dizem do que o sujeito realiza como se fossem corpos estranhos ao seu; pensamentos ou atos movidos por uma força irresistível contra a qual o sujeito gostaria de lutar, mas crê nada poder fazer para impedir. Na neurose obsessiva, a compulsão resulta de um conflito psíquico e de uma luta subjetiva entre duas forças opostas, estando o sujeito impossibilitado de escolher qualquer uma delas. Encurralado nessa impossibilidade de escolher, a resposta do sujeito são os pensamentos e atos obsessivos.

Para nos aproximar das compulsões que frequentam de forma cada vez mais assídua nossos consultórios, é a esta acepção de compulsão que devemos nos remeter, uma vez que nelas a insistência não incide sobre o conflitual, não há luta psíquica, mas simplesmente compulsão a repetir. Jô Gondar (2001) aponta a hesitação como o elemento diferencial entre as compulsões da neurose obsessiva e das novas patologias do ato, à medida que a hesitação introduz, no sintoma obsessivo, um intervalo de tempo em que a compulsão não ocorre, um intervalo de tempo em que o obsessivo hesita diante da obediência cega que o obriga a escolher entre dois mandamentos opostos; intervalo de tempo em que crê poder escapar da impossibilidade da escolha; isso e aquilo; ou nem isso nem aquilo. Jô Gondar sugere que é este elemento de hesitação, este intervalo de tempo, este tempo de espera, que não se encontra nas novas patologias. A compulsão à repetição toma o caminho da passagem ao ato, da simples descarga. N ão há exílio, nem pátria. Apenas descarga pulsional reclamando, à espreita, por condições de subjetivação.

É o imaginário que falta a estes pacientes, o que Freud chama de repetidas experiências consoladoras. Neles, ao contrário da neurose obsessiva, a compulsão não se articula, não hesita, não faz formação de compromisso, uma vez que seus sintomas não se constituem pelo retorno do recalcado. Não há um sujeito representado em seu sintoma. Não há sujeito no sintoma. Há descarga, o caminho mais curto da satisfação pulsional. Não há intervalo, não há espera. Tudo é urgência. O dispositivo da interpretação fracassa em seus esforços, uma vez que não há o quê nem para quem representar.

Assim, na relação com tais sujeitos, temos a necessidade de aprender a escutar de novas maneiras, escutar pequenos sinais de subjetivação, indícios do que está por se subjetivar.Marcá-los, destacá-los, vivê-los, à espera de que sirvam de matéria para a fabricação do imaginário. Experimentar mais do que interpretar. A meu ver, o fundamental a ser retido aqui é a dinâmica, é o que mantém e possibilita estar constantemente em jogo. N ão deixar a peteca cair, manter a bola em jogo. N ão há um e depois o outro. N ão há ponto de partida nem muito menos ponto de chegada. Ser um sujeito não é um substantivo. N ão é também uma qualidade que, uma vez alcançada, não se possa perder mais. Pelo contrário, é um estar permanentemente em jogo, permanentemente em questão, disposto ao confronto com tudo aquilo que convida ao fora do jogo, fora do desejo, fora de questão. Ser sujeito é aceitar e se inscrever nesta dinâmica. Isso significa dizer que em toda repetição há o que nos move e condena à liberdade, assim como tudo o que nos acena com a promessa da serenidade das pedras.

Se no que alcança quando repete, o homem encontrasse tudo quanto necessita, ele estaria acabado. N o que se repete o homem se reassegura do que é e se espanta e se abre para o que não é. Simultaneamente se reassegura do que tem e se espanta e se abre para o que não tem. A cada uma das vezes em que repete algo faz diferença, e é em torno da capacidade de suportar e reconhecer essa diferença que um sujeito terá que se constituir.

 

VI.

Ao estabelecer a compulsão à repetição como um fundamento anterior ao do princípio do prazer, René Roussillon (2001)5 afirma que ainda estamos longe de ter tirado todas as consequências e todas as implicações teóricas, clínicas e técnicas de “Além do princípio do prazer”. Tudo o que antecede a virada de 1920 se modifica desde então e propõe novos problemas a serem enfrentados na sequência. Em seu trabalho, duas destas consequências são apontadas: a inversão das relações do princípio de prazer e do princípio de realidade6 7 e a necessidade de agregar ao conceito de realização alucinatória de desejo, um fundo alucinatório do psiquismo, assim como sua implicação metapsicológica, isto é, explicar a maneira como o psiquismo se forma para transformar essas alucinações primárias automáticas em representações psíquicas.

Por exemplo, se o que se repete está além do princípio do prazer, o trabalho de reconstrução e subjetivação do nó de realidade histórica não subjetivado passa para o primeiro plano (p. 10). O que está negativizado (isto é, aquilo a que se chega por retraimento do sujeito, o que falta sem que o sujeito ele mesmo reconheça esta falta) é justamente o não vivido subjetivamente. Dito de outro modo, como assumimos que é pela interação com o meio ambiente que um sujeito pode se constituir (o que implica dizer que ele não está dado desde o princípio), a ênfase se reparte agora entre esta realidade histórica não subjetivada e as questões relativas à pulsionalidade.

Acompanhemos Roussillon:

... de um lado, que uma das características essenciais das zonas traumáticas é a confusão entre a parte de si e a parte das respostas do meio ambiente aos movimentos do sujeito, e de outro lado, que a reação primeira e fundamental do sujeito confrontado aos estados traumáticos não é expulsar os traços de si mesmo, mas, bem ao contrário, de se lhes assimilar como se eles fossem provenientes dele próprio, de tentar ligá-los narcisicamente. É uma outra maneira de pensar a hipótese freudiana do masoquismo originário e do automovimento que ela comporta. A expulsão, ou a projeção, somente operam em um segundo tempo. (p. 10-11)

Isto significa que a realidade psíquica de um sujeito não se constrói sozinha a partir das moções pulsionais, mas a partir das marcas concretas das respostas parentais ao desamparo e aos movimentos pulsionais do sujeito, ou, dito com mais ênfase, que a realidade psíquica do sujeito carrega as falhas do seu meio ambiente, acidentais e/ou estruturais, assim como seus efeitos traumáticos e as soluções que o sujeito lançou mão para resolvê-las, mesmo que provisoriamente.

Neste ponto a sensibilidade clínica, a disposição para o risco e a abertura para a loucura pessoal por parte do analista, são radicalmente convocadas: como criar as condições para que o desejo se afirme em tais condições, quando o desejo falta?

 

VII. Conclusão

Devo dizer a vocês que foi bem difícil parar de fumar. A princípio, eu não imaginei que tantas experiências pudessem estar concentradas em um ato tão banal. A ideia de que parar de fumar implicava suprimir um gesto tão habitual integrado ao meu cotidiano, que me acompanhava no pensar, nas pausas do dia-a-dia, me parecia impossível fazer. E saibam que, se o consegui, já faz 25 anos, foi à custa de ter reencontrado com a loucura que me levou a fumar. Entendi que, para não fumar, teria que ter à mão o cigarro, onde quer que eu estivesse. Tinha cigarros em casa, no consultório, no carro, em todo lugar. A decisão de não fumar teria que ser minha e não da falta do cigarro. Se ele me faltasse, tinha absoluta convicção que sairia, fosse a hora que fosse, para encontrá-lo, onde quer que fosse. Recomendam-nos pensar em outra coisa. Mas como pensar em outra coisa quando tudo o que penso, quando meu primeiro, e por vezes único pensamento, está determinado pelo que acaba de me ser retirado? Mesmo que não o fosse, passaria a sê-lo desde o momento em que me foi retirado. Quisera ser uma mosca só para não ter que viver tudo isso. Para viver apenas da natureza.

Foi o que encontrei no poema de Rilke que utilizei como epígrafe.

(…) Tudo aqui é distância - lá
era alento. Depois da primeira
pátria, como parece a segunda
incerta e sem abrigo! Bem aventurada
a pequena criatura que sempre permanece
no seio que a criou; ó tu, mosca feliz,
que saltas interiormente ainda mesmo
nas núpcias: o ventre é tudo. (…).

 

Referências

Freire Filho, J. Paradoxos da autenticidade: gênero, estilo de vida e consumismo nas revistas femininas juvenis. In Freire Filho, J. e Herschmann, M. (Org.). Comunicação, cultura e consumo. Rio de Janeiro: e-papers, 2005.        [ Links ]

Freud, S. (1986). Inibição, sintoma e angústia. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1926[1925])         [ Links ]

Gondar, J. Sobre as compulsões e o dispositivo analítico. Versão ampliada do trabalho apresentado no Encontro Latino Americano dos Estados Gerais da Psicanálise realizado em São Paulo, em 13-10- 2001.        [ Links ]

Jeudy, H-P. O último cigarro. Porto Alegre: Sulina, 2007.        [ Links ]

Rilke, R. M. Oitava Elegia. In Elegias de Duíno. Rio de Janeiro: Globo, 1976, p. 47.        [ Links ]

Roussillon, R. Le plaisir et la répétition. Paris: Dunod, 2001.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Miguel Calmon du Pin e Almeida
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
R. Carlos de Góes, 375, salas 310 e 311, Leblon
22440-040 Rio de Janeiro, RJ
E-mail: mcalmon.trp@terra.com.br

Recebido em 11.5.2009
Aceito em 23.6.2009

 

 

1 Trabalho apresentado em 2009 no XXII Congresso Brasileiro de Piscanálise no Rio de Janeiro, na mesa “Raízes socioculturais das compulsões”, composta por Bernardo Tanis, Emmanuel Carneiro Leão e coordenada por Magda Khouri.
2 Membro titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ.
3 Reproduzo parte do trabalho Culturas juvenis e realidade urbana apresentado por mim no simpósio “Nas tramas da cidade”, promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP (2008).
4 Grifos meus.
5 Reproduzo parte do trabalho Repetição e compulsão à repetição, apresentado por mim no simpósio promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ (2007).
6 “Instaura-se potencialmente o primado de um princípio de realidade psíquica que eventualmente será secundariamente transformado em princípio de prazer e depois ele mesmo re-transformado em princípio de realidade do prazer. Não nos sentiremos, pois surpresos que a teoria do inconsciente sofra ela também uma mutação (1923). N o fundo do psiquismo opera o ID governado pela compulsão à repetição, primeira forma de inconsciente. Em seguida, ganha sobre este fundo pelo trabalho de subjetivação, - o Eu-objeto vai se tornar em parte um Eu-sujeito que tenta reassegurar secundariamente o primado do princípio do prazer graças às representações psíquicas e ao trabalho de simbolização -, um outro tipo de inconsciente (inconsciente secundário) que testemunha do que dentro da história pôde receber a marca do princípio do prazer, e enfim uma parte préconsciente para o que pôde ser representado e transformado em princípio de realidade do prazer. Aqui ainda a tópica psíquica se encontra potencialmente um degrau abaixo de seu lugar”. (p. 60/61) (minha tradução)
7 “Quando se exerce a compulsão à repetição, é o princípio de realidade que prima ‘objetivamente’”. (p. 60)

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