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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.3 São Paulo set. 2009

 

RESENHAS

 

Linguagens e pensamento

 

 

Resenha: Renata Udler Cromberg1

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae - São Paulo

 

 

Autor: Nelson da Silva Junior

Editora: Casa do Psicólogo - Coleção Clínica Psicanalítica, São Paulo, 2007, 142 p

A implicação significante: lugar originário das passagens entre a linguagem e o pensamento

O livro Linguagens e pensamento - A lógica na razão e na desrazão, de Nelson da Silva Junior, da coleção Clínica Psicanalítica, da Editora Casa do Psicólogo, publicado em dezembro de 2007, baseado em sua tese de Livre-docência no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo introduz questões verdadeiramente inéditas no campo psicanalítico.

A grande novidade em Freud foi trazer à tona a existência de operações lógicas no inconsciente de maneira tal que deslocou o eu da ilusória soberania sobre si próprio, aproximando o patológico da normalidade, o inconsciente da consciência. No discurso de uma análise, a escuta busca tanto o significante como as relações lógicas que organizam os pensamentos que insistem na repetição. No entanto, o enigma teórico freudiano está presente desde o começo da psicanálise: como se dá o acesso à realidade enquanto espaço fora de si, lugar da ação específica realizada pelo corpo e pelo eu levando em consideração a percepção do exterior organizada pelo mundo simbólico? Como é possível “que um aparelho psíquico inicialmente dominado pela busca do prazer e pelo registro pulsional, essencialmente imediatista, portanto, venha a acolher em seu interior as limitações impostas pela realidade exterior?” (p. 12). Dois momentos na trajetória freudiana expressam a centralidade desta questão das relações do psiquismo com a realidade e o papel central dos modos de pensamento, das operações lógicas no interior do inconsciente, enquanto inteligência independente da consciência. O primeiro momento é em Projeto para uma psicologia para neurólogos, de 1895, na famosa elaboração do Próton Pseudos, o dito aristotélico que alerta sobre as falsas premissas que levam a conclusões errôneas. Aí aparece o que já vinha sendo afirmado desde Estudos sobre a histeria, “as relações lógicas que organizam os sintomas se estabelecem independentemente de sua organização cronológica e temática” (p. 83). Elementos díspares podem ser tomados como elementos de raciocínios formalmente corretos ainda que sem qualquer relação com a realidade. Um outro momento é o da emergência do conceito de negação, em 1925, como dependendo de registros psíquicos anteriores à linguagem e da possibilidade dela influir sobre o registro pulsional. Freud faz uma “verdadeira genealogia pulsional do juízo de negação que permite entender as junções e separações entre função intelectual e processo afetivo. Aqui, o jogo de forças pulsional aparece como fator determinante das disfunções do juízo de negação e, portanto, das relações com o real. Entretanto, no caso da ‘negação’, tal jogo de forças pulsionais só se realiza por uma enigmática eficácia da estrutura Lógica da linguagem, presente no ‘símbolo do não’” (p. 87). Disso resulta uma espécie de admissão intelectual do recalcado, enquanto que persiste aquilo que é essencial no recalcamento. O que também permite entender o mecanismo da racionalização. É justamente aí que Nelson vê haver uma confusão com a pouca consideração pelos psicanalistas do discurso e da ciência da lógica, condenando-a como racionalização, mecanismo defensivo que eliminaria o afeto. O autor mostra como a Lógica Formal só foi introduzida na psicanálise, em função explicitamente epistemológica, para “libertar os modelos metapsicológicos de seus conteúdos imagéticos, por demais ligados a formas específicas da experiência para permitir o grau de universalidade exigido pela cientificidade psicanalítica” (p. 14). Ora, a função da Lógica no estudo realizado pelo autor vai tomar uma via totalmente distinta, colocando-se claramente como modelo do funcionamento dos processos psíquicos enquanto tais.

É assim que na primeira parte do livro o autor faz um esboço da constituição da Lógica como campo de saber e depois trata das relações da Lógica Formal com a linguagem científica bem como com a linguagem natural. O que interessa a ele é o funcionamento lógico do psiquismo independentemente de seu funcionamento cognitivo. Pois na psicopatologia, “as relações lógicas não apenas não estão a serviço, como agem frequentemente numa direção oposta ao conhecimento do mundo” (p. 16).

Na segunda parte do livro, o autor vai estabelecer as relações entre Lógica, Cognição e Psicopatologia. Ao tomar a elaboração do conceito de posição fóbica central a partir dos estudos sobre os sintomas borderline em André Green, bem como o conceito de implicação significante de Jean Piaget, como processo originário da função cognitiva do psiquismo, o autor aprofunda a senda das descobertas e pesquisas de Zélia Ramozzi Chiarottino. Para ela, dois fatores etiológicos são necessários para a formação do quadro psicopatológico borderline: primeiramente a admissão de uma eventual precocidade da gênese da representação em alguns indivíduos, ou, mais especificamente, das imagens mentais, e sua relação com a formalização do discurso borderline. Em segundo lugar, o papel das implicações lógicas em um tipo de estruturação das fantasias inconscientes impermeável a novas experiências. Assim, o autor pretende ir elaborando um modelo sintático de compreensão da linguagem como acesso à estrutura psíquica global que existiria lado a lado do modelo semântico proposto por Freud. A questão do autor é estudar as operações que organizam a forma dos pensamentos com uma relativa independência do conteúdo dos mesmos. Aí, a repetição no discurso de uma análise, se apresentaria pela insistência ou evitamento de certas analogias, “a repetição segue assim uma espécie de sintaxe, isto é, regra a priori de relação para um conjunto virtualmente ilimitado de conteúdos discursivos.” (p. 17). Ele retoma a situação analítica como a origem e a finalidade, por excelência, de todo o trabalho de teorização metapsicológica, tratando de demonstrar “a pertinência das relações lógicas para a escuta psicanalítica” (p. 17), levantando o longo silêncio “a respeito das relações sintáticas dos processos psíquicos” (p. 81). É essa a lacuna que o autor busca preencher, ao realizar a aproximação entre o pensamento de Piaget e o campo psicanalítico, sobretudo através do conceito de implicação significante elevado ao estatuto de modelo no final de sua vida. Ele chamou de implicação significante uma inferência ligada a um referente. No “interior da linguagem natural, tais sistemas de significação não lógica participam ampla e intensamente dos processos nos quais o afeto está em primeiro plano, como na criação poética e nas construções normais e patológicas em torno das relações amorosas” (p. 100). Este conceito é considerado como equivalente ao conceito de implicação significativa elaborado por André Green a partir de seus trabalhos com pacientes borderline. Nelson vai tecendo suas hipóteses entre os dois autores mediados pelas pesquisas de Chiarottino constituindo um trabalho novo e original para a clínica e teorização psicanalíticas.

O autor se apóia na formulação da patologia dos estados-limites ou borderline, como um novo paradigma da psicanálise. Eles constituiriam “verdadeiramente um conjunto de patologias à parte, onde é a própria questão dos limites intrapsíquicos que se manifesta segundo modalidades clínicas não contempladas pelos modelos da neurose, psicose e perversão. É nesse sentido que os estados-limites exigem, segundo André Green, a construção de uma nova categoria no interior da nosologia psicanalítica.” (p. 101). Nos processos inconscientes e no contexto psicopatológico, as implicações significativas podem ser compreendidas a partir de um funcionamento argumentativo da imagem a nível inconsciente, coincidente com a própria estruturação das associações. As implicações significativas seriam perceptíveis, em certos casos borderline, como um evitamento particularmente tenaz do paciente em aproximar-se de grupos específicos de conteúdos, daí a descrição por Green, de um posição fóbica central, disposição psíquica de base fóbica, onde há um movimento centrífugo do discurso em relação aos grupos de conteúdos que domina a totalidade dos processos associativos do sujeito, que se encontra frequentemente no tratamento de certos estados-limites, mas que difere da fobia pelo grau de simbolização da angústia presente, pois aparece de modo muito mais difuso e pouco articulado à linguagem do que no quadro fóbico neurótico. Green chama a atenção de que as crises fóbicas dos quadros neuróticos não surgem durante as sessões, ao passo que a posição fóbica central é um “funcionamento fóbico durante a sessão” (p. 102). O sintoma fóbico não basta para circunscrever o conflito. A posição fóbica central se manifesta na sessão como evitamento de certos conteúdos e como manifestação da angústia, implicando uma inibição ampla do ego e um isolamento cada vez maior. De maneira diferencial com a fobia também, a erosão radical da inteligibilidade na comunicação durante a situação psicanalítica é uma forma de proteção da estrutura egóica enquanto tal e não um distanciamento daquilo que é incompatível com o superego. A multiplicidade de temas traumáticos pode representar por si só um elemento extremamente perigoso para a própria estrutura do aparelho psíquico. A ressonância mútua entre os núcleos traumáticos traz perigo para a organização do ego. Green coloca que é preciso conceber na comunicação com o paciente “as condensações daquilo que se apresenta enquanto placas giratórias, enlouquecedoras, pois elas se tornam o nó de encontros onde se entrecruzam diferentes linhas traumáticas.” (p. 104). A defesa desse paciente consiste em evitar sistematicamente toda e qualquer ligação entre conteúdos psíquicos que é sentida como uma invasão angustiante por forças incontroláveis. As ligações de sentido possuem uma potencialidade patógena específica e a experiência egóica é de extremo desamparo e angústia. A origem da posição fóbica central é uma ameaça interna e traria um desinvestimento generalizado da palavra e um refluxo ao narcisismo, o que implica no caráter rarefeito do discurso e o recurso a mecanismos automutilantes para o pensamento para se opor a perigos de desabamento. É aí que André Green aponta os limites da compreensão do funcionamento da associação livre pelo modelo semântico, apoiado nas determinações geradas por intersecções e coincidências dos significantes, responsáveis por grande parte dos sintomas neuróticos. Se “o papel de determinação por via do significante é uma condição necessária da formação do sintoma”, há, contudo, “ocasiões onde as coincidências entre significantes não são suficientes para a compreensão clínica orientada pela escuta psicanalítica.” (p. 109)

É aqui que Nelson faz o elo entre as suas pesquisas atuais sobre a implicação significante e a elaboração de um modelo sintático de compreensão das operações psíquicas e as suas pesquisas anteriores sobre a formulação da negatividade como operação de uma hermenêutica aberta. Na posição fóbica central, “o trauma só é suscetível de reconstrução se, aos deslocamentos metafóricos for acrescida uma rede de relações de implicação. A reconstrução pode ser considerada, nesse sentido, como oriunda da negatividade da escuta analítica, como estrutura do sentido com origem na ausência de sentido, como operação de uma hermenêutica aberta, onde a ausência de relações convida a presença destas últimas.” (p. 112). A partir da reflexão de Green, ficam postuladas duas relações morfológicas entre significantes: o modelo semântico de Freud baseado na justaposição semântica entre os significantes e o modelo sintático proposto por Green, por um processo inferencial, através da lógica das implicações. Em ambos se afirma as relações de substituição entre representações conscientes e inconscientes.

Mas é o aparecimento da imagem mental que se constitui na função psíquica que possibilita a distinção entre significante e significado, tal como postulado por Piaget, o turning point para a compreensão do que se passa nos quadros borderline. As imagens mentais representam o principal suporte das inferências conscientes e inconscientes do sujeito. Mas como as imagens mentais podem se articular no interior das implicações inconscientes? Para Piaget, a imagem mental representa o mundo em que vivemos não como simples cópia ou evocação, mas sim como resultado de nossas ações, do que vimos e realizamos nesse mundo. Elas não são, portanto, apenas um prolongamento da percepção, mas sim construções do indivíduo que se constituem nos “significados figurativos do mundo” (p. 119). A imagem mental é o fundamento da semântica na linguagem natural. Segundo Piaget, as imagens mentais reproduzem não percepções puras, mas percepções tornadas possíveis pelas ações do sujeito, no interior de seus esquemas sensório-motores. Para Piaget, o caminho natural das construções cognitivas, que ele chama de creodos, indica que a aquisição da função semântica se dá após as primeiras experiências sensório-motoras de construção do real, isto é, após a construção das noções de espaço, tempo e causalidade, no período denominado por ele de coordenação dos esquemas secundários, em torno do oitavo mês de vida do bebê. Isso garante que os futuros raciocínios da fase do pensamento formal trabalhem a partir de referentes concretos, raciocínios formais e abstratos podendo encontrar seus limites nas leis físicas do mundo real. Para Piaget, portanto, a eficácia do raciocínio lógico-matemático depende de se percorrer um caminho natural e necessário no desenvolvimento do sujeito no qual ele primeiramente deveria desenvolver a contento seus esquemas motores para em seguida dar continuidade as suas interações com o mundo através da função semiótica. Só então “as inferências lógicas do sujeito poderão ampliar seu universo de um modo inédito até então para a criança.” (p. 121)

A partir desta retomada piagetiana, finalizando seu livro, o autor apresenta a novidade das pesquisas de Zélia Ramozzi - Chiarotino em torno da patologia borderline. Para ela, nem sempre aquilo que Piaget chamou de caminho natural e necessário acontece. Às vezes, a capacidade de representar poderia aparecer antes da construção do real, ou seja, das noções de espaço, tempo e causalidade. Para ela, lá onde as crianças normais formam quadros sensoriais, os borderline formam quadros imagísticos, mentalmente representados por meio de imagens que não se transformariam ao longo da existência. A criança borderline seria, para ela, aquela que muito precocemente construiu as estruturas mentais (orgânicas) e adquiriu a capacidade de construir imagens muito precocemente e antes da construção do real. O comportamento borderline seria resultado de uma quebra da sequência necessária das construções endógenas responsáveis pelo ato de conhecer.

Para Nelson, “na ausência dos referentes físicos implicados no exercício dos esquemas motores, o pensamento só pode utilizar as palavras de modo puramente convencional. Observe-se, contudo, que se trata aqui de uma convenção autóctone e privativa a cada sujeito” (p. 123). A antecipação da capacidade de representar geraria uma semântica anômala não na estrutura formal dos signos, mas na carência de referentes de tais signos na experiência sensório-motora do sujeito. Nesse sentido, “as implicações significantes acabam funcionando de modo privilegiado segundo as regras de coerência que vigoram de modo absoluto na Lógica Formal e não segundo a causalidade inerente às expectativas físicas do sujeito.” (p. 124) Há uma inversão do Creodos. A cena traumática é integrada pela criança em um sistema lógico formado por imagens, deixando de ser um quadro sensorial do período sensório-motor. “O caráter doloroso das primeiras implicações construídas a partir do trauma sofrido, se articula então àquele da primeira dor sofrida, constitutivamente inacessível à palavra” (p. 125). Tudo o que possa trazer à tona essas relações entre os núcleos de inferências passa a ser evitado pelo sujeito sob o risco de uma desestruturação egóica. “O discurso organizado a partir da posição fóbica central se constituiria de modo inverso, porém homólogo a tais implicações arcaicas.” (p. 125) Essa é uma modalidade de repetição do discurso inconsciente paralela à associação livre. O retorno aqui não é o das mesmas representações deformadas, mas das mesmas relações, o que aponta para uma determinação sintática do discurso.

O autor conclui apontando que sua intenção foi demonstrar a pertinência das determinações lógicas como um fator determinante não só de alguns casos borderline, mas da própria estrutura do aparelho psíquico. O interesse na introdução do ponto de vista lógico permite redefinir todo um campo de problemas para a psicanálise e dessa maneira ele corrobora a ideia de Green de que a patologia borderline constitui um novo paradigma em psicanálise e, portanto, um elemento importante para seu progresso conceitual.

O ineditismo da conjunção da psicanálise de Freud e Green com a epistemologia genética de Piaget, trazendo novas aberturas para a compreensão do sofrimento psíquico e da constituição mesma deste psíquico remete ao início do trabalho prático e teórico de observação dos processos de pensamento da criança por Piaget, formado e influenciado pela psicanálise, através de sua psicanalista - depois colega e pesquisadora - Sabina Spielrein, sendo o campo psicanalítico um dos seus primeiros públicos.

 

 

1 Renata Udler Cromberg, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, doutora pelo IPUSP, formada em filosofia e psicologia na USP, autora dos livros Paranóia e Cena Incestuosa, da coleção Clínica Psicanalítica da Casa do Psicólogo.

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