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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.4 São Paulo  2009

 

DIÁLOGO

 

Carlos Augusto Calil: entrevista1

 

Carlos Augusto Calil: entrevista

 

Carlos Augusto Calil: interview

 

 

Carlos Augusto Machado Calil é o atual Secretário Municipal de Cultura de São Paulo. Graduado em Cinema pela USP, é Professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes dessa mesma universidade. Foi vice-presidente da Comissão de Cinema da Secretaria de Estado da Cultura (1977-79), diretor e presidente da Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes SA. (1979-86), diretor da Cinemateca Brasileira (1987-92), e diretor do Centro Cultural São Paulo (2001-2005). Realizador de documentários em filme e vídeo, é também autor de ensaios e editor de publicações sobre cinema, iconografia, teatro, história e literatura, dedicados a autores como Blaise Cendrars, Alexandre Eulálio, Paulo Emilio Salles Gomes, Glauber Rocha, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Federico Fellini, Paulo Prado, Vinicius de Moraes, David E. N eves.

RBP: Estamos muito honrados em ter o Calil aqui conosco, ele é um velho amigo da casa e é sempre um prazer trabalharmos juntos.

No próximo ano, a Associação Psicanalítica Internacional completará cem anos e é um bom momento para pensarmos um pouco sobre as instituições. Claro, existem as que dão certo, as que dão errado, as que se mantêm produtivas, criativas, outras que se fossilizam, se esterilizam. Que fatores determinam o destino de cada uma? Pensamos que a IPA, que começou na Europa com a diáspora dos analistas, mesmo com todos os seus defeitos, é uma instituição que deu certo, congregando hoje profissionais do mundo inteiro. Ela é muito criticada, mesmo internamente, mas ninguém a abandona.

Chama nossa atenção o fato de nenhuma criação teórica importante ter crescido fora dela, que, aliás, tem um caráter único, pois é uma instituição que controla a própria reprodução, o que parece até mítico. Imagine uma associação como a Sociedade de Cardiologia que controlasse quem vai ou não ser cardiologista. Você tem a experiência de ter estado em várias instituições em momentos férteis, de ascensão e também de decadência. Gostaríamos de conversar com você sobre esta experiência tão variada.

CALIL: Nosso país é muito pouco institucional. O próprio Presidente da República pratica em excesso a informalidade, o que não coaduna com o cargo que exerce. Vem daí uma ideia de que a informalidade é uma característica nacional. Embora os estrangeiros apreciem muito, acho que muitas vezes nos atrapalha. Só a institucionalização pode levar a um acúmulo de experiência transgeracional, que, se por um lado, pode engessar coisas e inibir o nascimento de outras, por outro, garante uma bagagem mais sólida, o que é fundamental em um país novo como o nosso que não valoriza a experiência. Vou dar como exemplo uma metáfora criada por Aloísio Magalhães, que era Secretário de Cultura do MEC no fim da ditadura militar. Ele era um designer – e eles têm essa habilidade de criar imagens muito pregnantes – e foi ele quem, ao assumir a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional– IPHAN – recuperou o projeto do Mário de Andrade que estava esquecido. Foi muito criticado na época, acusado de ressuscitar um programa anacrônico. Foi então que ele formulou uma bela metáfora: disse que a cultura é como o estilingue, que quanto mais esticado para trás, mais longe atira a sua pedra. Essa questão de recuar para se nutrir de elementos que nem sempre são propriamente contemporâneos, mas constituem certa tradição, me parece muito importante.

O primeiro ponto a salientar, portanto, é que a institucionalização permite acumulação. No nosso país, esquecemos. Paulo Emílio Sales Gomes, que marcou profundamente minha geração, dizia que tínhamos vergonha do passado medíocre e que, portanto, era conveniente negá-lo, sendo que a melhor maneira de fazer isso é reinventar-se o tempo inteiro. Daí nossa insistência em negar as instituições e desconfiar de qualquer tipo de institucionalização, porque elas nos trariam constrangimentos. Paulo Prado, de outra maneira, também diz a mesma coisa: o futuro não poderia ser pior que o passado.

Exageros à parte, este é um país pouco institucional, onde se dá pouca importância às instituições. Recentemente acompanhamos a crise do Senado, onde houve uma degradação enorme da ética pública, e as pessoas passam então a pregar a extinção do Senado quando, na verdade, necessária é a renovação da prática política. Não é a instituição Senado que está acabada, o que está em xeque são os atuais senadores que não estão à altura do Senado da República. O Senado cumpre funções indispensáveis ao governo, e o adequado para a correção de seus desvios seria uma reforma política, não o seu fim, simplesmente.

Portanto, aqueles que no Brasil lutam pelas instituições padecem de profunda frustração. Outra questão que pesa no destino das instituições é o momento em que são criadas. Há momentos mais favoráveis, e outros menos, mas ninguém escolhe a hora de nascer, como não escolhe a hora de intervir na sociedade. Não há como esperar pela hora certa de agir, você faz e aguarda o resultado.

Um artista, um intelectual, às vezes, paga um preço muito alto por falar coisas que ou são inconvenientes num determinado momento, ou que não podem ainda ser compreendidas, o que só será possível no futuro. Com as instituições acontece algo semelhante.

Há um caso que acompanhei de perto, o da Cinemateca Brasileira. Paulo Emílio era um menino muito precoce, bem nascido e muito atrevido, no melhor sentido da palavra. Logo se meteu em confusões políticas, foi preso aos 17 anos, fugiu da cadeia durante o carnaval de 1937 e o pai conseguiu que embarcasse em um navio para a França. Chegou a Paris muito jovem, mal acabara o curso colegial. Logo se desencantou com a política de esquerda, que naquele momento era quase exclusivamente stalinista. Acompanhou os processos de Moscou que foram um banho de água fria em muita gente e, enfim quando voltou ao Brasil, para cursar a Faculdade de Filosofia, havia amadurecido politicamente. Em São Paulo engajou-se na valorização da cultura cinematográfica em pequenos grupos, num regime de corpo a corpo, muito distante da representatividade social que tem a Mostra de Cinema hoje, isso para falar de uma outra instituição que completou 33 anos e está perfeitamente sólida. De repente retorna a Paris, abandonando uma carreira política promissora no Brasil.

Na França se envolve com a Cinemateca Francesa e pesquisa a obra e vida de um dos maiores cineastas locais, Jean Vigo, ainda pouco conhecido na época, sobre o qual escreveu livros que foram recentemente relançados. Em 1954 retorna ao Brasil para participar do Festival Internacional de Cinema.

Voltou com uma ideia fixa, a de criar aqui uma instituição de conservação de cinema e lutou muito por isso. O melhor momento da vida dele, seu momento de grande maturidade intelectual, de certa forma seu auge, foi dedicado a essa instituição que, naquele momento, infelizmente fracassou. Ele esperava que, como em outros países, uma fundação privada pudesse ser amparada pelo poder público e isso não aconteceu. No fim da vida, estava pessimista com o país (em plena ditadura), com o cinema brasileiro e com a sua cinemateca. Terá ele imaginado em algum momento, a Cinemateca Brasileira como ela é hoje? Não que ela esteja concluída, longe disso, mas cresceu de maneira impressionante, tem uma sede das mais bonitas do mundo, e uma institucionalidade assegurada.

RBP: Tem boas verbas, não é?

CALIL: Curiosamente não tem não, o que é mais impressionante! Tem um prestígio enorme e uma grande fragilidade também, seus pés continuam de barro. O Paulo Emílio já muito doente, se aproximando do final, resolveu então passar a instituição para o grupo de discípulos ao qual eu pertencia. Com acesso aos secretários de Cultura do Estado e do Município, ninguém menos que José Mindlin e Sábato Magaldi, solicitou a ambos recursos para de certa forma ressuscitar a Cinemateca. Porém, ao atenderem ao apelo formulado por Paulo Emilio, exigiram a volta dos antigos dirigentes, entre eles intelectuais de prestígio como Antonio Candido e Almeida Sales, pois não podiam apoiar um bando de jovens recém saídos da faculdade. Paulo Emílio ficou profundamente contrariado com isso, mas percebeu que não havia alternativa. Reconvocou os amigos ilustres e manteve-se à frente da Cinemateca para pessoalmente avalizar a transição da geração dele para a nossa. Morreu pouco depois, com a certeza de que fracassara.

RBP: Bem, mas essa era a visão dele, não era, necessariamente, o que ocorria com a instituição.

CALIL: Sim, mas ele percebera que o futuro da instituição passava por sua despersonalização. Enfim, como foi que a Cinemateca sobreviveu? Foi pela capacidade dele de aglutinar, com seu carisma, um grupo de jovens fiéis às suas ideias e ao projeto de instituição que ele havia criado. Hoje me encontro em posição semelhante àquela dos ilustres secretários, entendo a dificuldade que é dar dinheiro a uma instituição dirigida por gente inexperiente.

Até que chegou um momento, no começo dos anos 1980, em que, de novo, a instituição faliu literalmente. O Secretário de Cultura do MEC no governo Figueiredo era o Aloísio Magalhães, mais moço que o Paulo, mas que tinha convivido com ele e com o Mauricio Segall, em Paris no comecinho dos anos 1950. Chegou a frequentar o apartamento do Paulo Emílio, existem fotografias deles nesta época, o Aloísio mocinho e o Paulo já entrado nos trinta. Portanto, tinha respeito pelo projeto dele. Então, o Aloísio propôs uma coisa inédita no Governo Federal: a incorporação da Fundação Cinemateca Brasileira, que era privada, pela Fundação Nacionalpró-Memória, assumindo todos os seus gastos de manutenção. Este era o maior problema naquele momento. Era possível à Cinemateca aprovar algum projeto na Secretaria de Cultura do Estado ou do Município, mas assim que este se esgotasse, ficava sem cobertura das despesas de custeio. Como então seriam pagos a segurança, a eletricidade, os funcionários? A questão foi conduzida no sentido de uma incorporação com autonomia, apesar das muitas dificuldades surgidas então, porque, claro, muitas pessoas ligadas à própria Cinemateca não aprovavam este caminho. Entretanto, não havia alternativa. E o que significou isso? Até hoje, o diretor da Cinemateca Brasileira não é escolhido pelo Ministério da Cultura, mas eleito pelo Conselho Deliberativo e ratificado pelo governo. Não existe nenhuma lista tríplice, é mesmo um nome indicado pelo Conselho que é automaticamente ratificado pelo poder público. Se é impensável hoje, imagine naquela época, em pleno regime militar!

Esta operação, ao mesmo tempo em que transformou a Cinemateca Brasileira em um órgão público, com tudo que isto tem de inconveniente, salvou a instituição. O prestígio do Paulo Emílio, esse carisma que ele manteve mesmo depois de morto, essa capacidade de criar um certo encantamento em torno de uma ideia, que, diga-se de passagem não correspondia absolutamente à realidade, uma pura marca de fantasia, salvou a instituição. Hoje ela está bem posta no Ministério da Cultura, com uma sede de nível internacional, – pouquíssimas têm uma sede como ela –, tão bonita, ampla e interessante. A Cinemateca ainda mantém seu prestígio, mas continua com os pés de barro, porque se a manutenção mínima está garantida pelo Governo Federal, os projetos têm de ser negociados caso a caso, não existe garantia de investimento. As leis de incentivo e a política de governo são muito complicadas, não preciso explicar essas coisas, mas foi assim que a Cinemateca foi salva. Naquela época, Maurício Segall tinha criado o Museu Lasar Segall como uma instituição privada. Como a família tinha recursos, ele impediu que as obras do pai fossem todas vendidas e reunindo um grupo expressivo delas, criou uma associação que durante muito tempo bancou com o próprio dinheiro. Chegou o momento em que percebeu que a manutenção de um museu era um saco sem fundo e era necessária uma solução institucional. Ele esperou a Cinemateca Brasileira passar ao Governo Federal e seguiu o mesmo caminho. O Museu Segall é hoje do Ministério da Cultura. A instituição foi assim preservada, mas a família doou todas aquelas obras para o patrimônio da União, ou seja, abriu mão de um enorme patrimônio.

Essa é uma questão complicada que até nos remete a um problema atual, o do recente incêndio no acervo Hélio Oiticica. A experiência nos mostra que cuidar do legado de um artista não é tarefa para a sua família. Na maior parte das vezes a família não cuida, apenas explora essas obras. Tomar conta de um acervo significa investir recursos e ter alguma vocação museológica, o que raramente acontece. Como exemplo disso, cito o caso do Tempo Glauber, instituição frágil por ser familiar e que vive de recursos públicos. Em contraste, a Fundação Iberê Camargo encontrou um padrinho – a Gerdau – que a adotou, e lhe deu suporte institucional mesmo que se beneficiando eventualmente de incentivos fiscais. Eis um exemplo que deveria se reproduzir, por meio de uma política induzida de governo.

As instituições brasileiras são tradicionalmente muito precárias porque damos pouco valor a elas. O Museu Nacionalé, talvez, a mais importante instituição brasileira na área cultural, à parte o MASP que tem outras características, com obras cuja qualidade é reconhecida no plano internacional. Pensando a cultura brasileira dentro de seus parâmetros, vemos que o Museu Nacionaldo Rio de Janeiro, que fica na Quinta da Boa Vista, hospedando portanto a coleção do Imperador, vive em uma precariedade enorme, ligado à universidade.

O Paulo Emílio pensava inicialmente que a solução para a Cinemateca seria também ligá-la à universidade, mas hoje sabemos que ela não é necessariamente boa gestora de acervos artísticos. Isso demanda especialização. A USP não é boa gestora do MAC. Se fosse, o governo estadual não estaria tão empenhado em dar-lhe outro status institucional, que pode implicar em conflito com a universidade. Tirar o MAC do campus, levá-lo para o pré dio do DETRAN e dar-lhe condições de gestão implica em superar as limitações burocráticas da universidade, sujeita a todas aquelas restrições que se conhece.

Enfim, todos possuem algum grau de fragilidade: o Museu Nacional, apesar do acervo extraordinário, a Cinemateca Brasileira, apesar do recente avanço, o Museu Segall e a Pinacoteca do Estado, apesar do reconhecimento público. Esta ganhou grande musculatura institucional nos últimos anos desde que Emanoel Araújo deu a ela um outro status, que continuou a se desenvolver mesmo depois de sua saída. Quando eu tinha 20 anos, a Pinacoteca era um depósito de quadros obsoletos, escuros, anacrônicos e ninguém a visitava. Hoje é um dos museus mais ativos do Brasil.

Penso que estamos evoluindo muito, aprendendo a dar valor às instituições culturais, mas permanecem várias dificuldades resultantes de uma infeliz tensão entre a produção cultural e a institucionalização. Vou dar um exemplo bem claro: a Bienal.

A Bienal de São Paulo acabou várias vezes, ao longo de sua trajetória. Lembro-me de uma vez em que ela foi salva por Sábato Magaldi. Durante a administração do prefeito Setúbal, Sábato era o Secretário da Cultura, isso deve ter ocorrido entre 1976-1978, ele convocou uma reunião de assessores da sua equipe, da qual eu fazia parte, e comunicou: a Bienal está acabada, vamos deixar que ela morra mesmo ou fazer alguma coisa para salvála? No momento, várias pessoas se manifestaram, inclusive constatando o seu óbito. Era uma instituição personalizada. Sábato decidiu salvá-la e para isso usou verba da Secretaria. Naquele ano o cartaz da Bienal só tinha um patrocinador: a Prefeitura de São Paulo e esse foi o único ano em que isso aconteceu. A Bienal sempre teve altos e baixos, hoje volta a um bom momento. Até seis meses atrás, parecia fadada novamente à falência, em função de políticas personalistas. N inguém de peso queria assumir sua direção. Foi também vítima dos malabarismos de Edemar Cid Ferreira, aventureiro das artes e das finanças, sucedido por um grupo sem muita capacidade de mobilização. Então surgiu inclusive a ideia de estatizá-la como ocorreu com a Cinemateca Brasileira e o Museu Segall, só que os tempos são outros. Agora a Bienal se apresenta muito poderosa, capaz de atrair empresários ambiciosos, mas sabemos que sua fragilidade decorre da descontinuidade. Apesar de cinquentenária, ela não tem ainda uma ancoragem na sociedade, mesmo na paulista que é bastante desenvolvida nesse aspecto, não tem uma legitimidade que assegure apoio institucional permanente. Conhecemos vários brasileiros ilustres, intelectuais, escritores, consultores, professores que são membros e contribuem para a manutenção do MoMA de Nova Iorque, aonde vão uma ou duas vezes por ano usufruir de sua condição de membro mantenedor. Já propus a vários deles o mesmo gesto com a Pinacoteca do Estado que é uma instituição que, aparentemente, paira acima de todas as desconfianças sobre sua qualidade, mas não se interessaram. É mais chique contribuir com uma instituição em Nova Iorque, confiam nas instituições de lá e não nas daqui ou padecem de complexo de inferioridade. Mário de Andrade, Paulo Emílio e N elson Rodrigues já falaram de nosso complexo de inferioridade. Essas mesmas pessoas poderiam contribuir aqui mas preferem contribuir no exterior, mesmo sabendo que o benefício recai em outra sociedade, em outro lugar e para outro público.

RBP: O que é indispensável para uma instituição se manter viva?

CALIL: Para se manter viva uma instituição precisa, no mínimo, corresponder aos anseios de um grupo por sua identidade. No caso da psicanálise, evidentemente, havia um grupo em torno de seu criador que precisava cultivar aquela identidade, condição básica para que um projeto, de início pessoal, se ampliasse.

Pelo fato de Freud ter migrado para a Inglaterra e não à França, teve a sorte – ou sortilégio – de criar e manter esse caráter privado. Na tradição francesa, a institucionalização é governamental e não privada, mas que pode ter apoio do poder público, uma coisa não exclui a outra. Uma instituição pública pode ser governamental ou privada.

RBP: Como você vê uma instituição como Inhotim, por exemplo?

CALIL: N esse caso, o único cuidado é assegurar o acesso livre, já que está situada dentro de uma propriedade privada. Quando falamos que uma instituição é pública queremos dizer que o acesso a ela é público, ainda que sua manutenção seja feita por um organismo privado. O proprietário de Inhotim fez do jardim, do pomar de sua fazenda uma área de exposição ao ar livre. É um homem, certamente, megalômano, com muita vontade de brilhar, que criou uma coisa rara no mundo, uma propriedade rural com obras de arte contemporâneas, o que no fundo é uma estimulante contradição. O que faz a arte contemporânea senão negar o lugar da natureza? E ele a coloca no meio dessa natureza. Não é um museu em um prédio de arquitetura moderna adequada, ao contrário, ele desarquiteturiza completamente o espaço, o que é interessante. Frans Krajcberg tem um sítio com suas obras de arte no sul da Bahia e como não tem herdeiros, é bem capaz de doar aquela propriedade ao poder público ou a um grupo privado que poderia institucionalizar o ateliê/museu como uma fundação. Um caso brasileiro muito bem sucedido, feito com todo rigor, é o da Fundação Iberê Camargo, no Rio Grande do Sul. Um grande empresário, Jorge Gerdau, com prestígio, dinheiro, orgulho de sua naturalidade, investiu em sua cidade, Porto Alegre. Encontrou um acervo relevante do ponto de vista artístico, que a família reteve na íntegra, apela para uma parceria com o governo federal e cria um prédio de grande interesse, com projeto de um importante arquiteto português, Álvaro Siza, erguido à margem da Lagoa dos Patos, cria mecanismo de manutenção institucional adequado, tudo admirável. Mas, sempre paira a dúvida: quanto tempo durará? Sobreviverá a seu fundador? Não tenho dúvidas de que existem medidas previstas para garantir o futuro dessa instituição, mas a morte de um fundador sempre provoca grandes crises. Um exemplo conhecido: a Fundação Raimundo Castro Maya, o Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, foi criada por um colecionador milionário que doou ao museu sua casa, coleções importantes como a de Debret etc. e um patrimônio financeiro significativo para a sua manutenção, que a inflação desembestada da década de 1980 corroeu. A instituição conseguiu manter-se por um tempo mas, de repente viu-se sem condições de se manter e foi estatizada na mesma linha de Cinemateca Brasileira e do Museu Segall.

A Cinemateca não tinha patrimônio próprio, os direitos de seus filmes pertenciam aos produtores; sua estatização, portanto, não trouxe incorporação de patrimônio à União. Já com relação ao Museu Segall e à Chácara do Céu, as famílias doaram à União belíssimas coleções de grande valor material. Quando uma fundação privada se extingue e um museu passa ao Estado, isso implica uma doação significativa. No estrangeiro, graças à estabilidade financeira e à gestão responsável dos fundos, uma fundação raramente desaparece. A Fundação Rockefeller, por exemplo, até hoje se beneficia dos fundos deixados pelos seus fundadores.

Um dos maiores artistas brasileiros, Roberto Burle Marx, criou na periferia do Rio de Janeiro o sítio Burle Marx, um dos museus mais originais do mundo. Diferente da casa de campo de Giverny, onde Monet se inspirava para suas ninfeias, num ambiente privado, o sítio Burle Marx desde sempre se constituiu como um laboratório de espécies vegetais e design orgânico do mais alto nível, muito estimado pelos estrangeiros. Acabou também doado à Fundação Pró-Memória, do Governo Federal, nos anos 1980. Tempos depois, li uma notícia no jornal, que me deixou escandalizado. O diretor do Sítio Burle Marx havia saído muito satisfeito de uma reunião no Ministério da Cultura na qual conseguiu aprovar um pedido de captação de recursos pela lei de incentivo fiscal, isto é, com dinheiro público, para que o museu, que só abria poucas vezes por semana, por falta de meios, pudesse manter- se aberto todos os dias. O caso é emblemático: um museu único do gênero no mundo não recebia do governo federal recursos orçamentários para sua manutenção e tinha de recorrer a leis de incentivo fiscal para cobrir despesas de custeio.

Há uma grande fragilidade na maioria de nossas instituições. Não há autonomia, não se conta com um conselho curador que possa proteger as instituições de desmandos, abandonos, intervenções descabidas etc., embora, às vezes, o conselho proteja demais, criando barreiras à própria renovação. Temos ainda muito a avançar na institucionalização, tanto governamental quanto privada, no Brasil.

RBP: Você foi gestor de várias instituições. Qual sua experiência com esses períodos de gestão?

CALIL: Tive experiências bem e mal sucedidas. Vou dar três exemplos:

Fui diretor da Embrafilme, uma instituição muito polêmica. Não tinha legitimidade entre os próprios cineastas, que nutriam por ela uma relação de amor e ódio, eu diria mais de ódio que de amor. Ao mesmo tempo em que tiravam dela o dinheiro para fazer seus filmes, desqualificavam a empresa. Era penoso para eles reconhecerem que tinham dívida com uma instituição pública, em plena ditadura militar, onde obtinham o dinheiro para fazer seu filme, que era de arte, de esquerda, progressista. Eles tinham vergonha disso, pois não entendiam que havia contradições no processo e que não era bem o General Figueiredo que estava lhes fornecendo os meios para fazer seu filme! Filmes como Cabra marcado para morrer também foram financiados pela Embrafilme, que só não recebeu crédito porque não podia ser descoberta pelo Serviço Nacionalde Informações.

Glauber Rocha podia ter lá os seus defeitos, as incoerências possíveis e imagináveis de um grande artista, mas ele tinha clareza dessa contradição. Só a Embrafilme podia financiar suas experiências e ele não cuspia no prato em que comia. Mas, outros, às vezes tão ilustres quanto ele, faziam de tudo para desqualificar a instituição. E era uma instituição que, apesar dos problemas, tinha lá suas virtudes. Foi extinta por Collor em um ato banal, que não suscitou comoção, porque ela já tinha morrido de fato. Os pedaços que dela restaram resistem ainda aqui e ali. Existe uma nostalgia, vejam que paradoxo, daquela presença do estado na economia, porque era inédita, uma coisa que nunca havia sido feita em nenhum lugar. Era uma empresa que intervinha no mercado e, portanto, contrariava interesses muito bem posicionados, os do cinema americano que explorava e ainda explora o mercado brasileiro, aliás como em todo o resto do mundo. São interesses poderosos, que envolve muito dinheiro. A Embrafilme conquistou mais de 30% do mercado interno, o que significou que as empresas americanas tiveram sua renda diminuída pela ação governamental que, operando no mercado, obtinha renda. Claro que essa instituição tinha inimigos ferrenhos, os quais promoviam intenso lobby.

Aí fracassei. Passei sete anos tentando consolidar essa instituição e fui embora quando trombei com um homem autoritário, o ministro Celso Furtado, determinado a acabar com a Embrafilme, como de fato acabou, pois a considerava ilegítima.

Pouco antes, a Embrafilme firmara um acordo com o National Film Board do Canadá que visava a criação de um centro de formação profissional de tecnologia de ponta, o Centro Técnico Audiovisual, que surgiu da doação de US$ 700 mil do governo canadense. Foram nossos colegas do Itamaraty que nos alertaram para o fato de o Brasil ter adquirido tecnologia de satélite do Canadá e havia um troco, era uma questão de oportunidade.

Montou-se um centro tecnológico inédito. Tínhamos um estúdio de som de nível internacional, até então o som que se praticava no cinema brasileiro era muito precário, investimos na formação técnica dos profissionais, passamos a estimular projetos de animação e isso tudo praticamente se perdeu. A institucionalização para vingar depende do lugar e do momento.

Do ponto de vista concreto, a Cinemateca Brasileira era muito mais frágil que a Embrafilme e, no entanto, seu patrimônio político era muito superior. Atuava como o templo de uma geração, de um certo ideal, e aqui podemos ver o peso do caráter simbólico de uma instituição, fator muito importante para sua sobrevivência.

Mais recentemente dirigi o Centro Cultural São Paulo. Quando cheguei, era um grande cortiço, mas com muita vitalidade. Era tão grande, que eu não sabia como andar lá dentro, um verdadeiro labirinto. Comecei tentando compreender porque tinha sido abandonado pela Prefeitura, mas acima de tudo, queria saber a origem daquela vitalidade toda, já que investimento havia desaparecido há muito tempo.

O Centro Cultural havia sido criado no governo Maluf, sob forte suspeita de superfaturamento. Cá entre nós, não foi a única obra pública onde houve desvio de dinheiro no Brasil. Por causa disso, a partir do momento em que mudou a gestão, foi condenado ao esquecimento.

RBP: E como era a ligação do Centro com a Biblioteca Mário de Andrade?

CALIL: A origem do Centro Cultural é controversa. O projeto inicial da Biblioteca Mário de Andrade previa a construção de duas torres, mas apenas uma foi construída, não sei se por economia ou por uma questão de estilo. Durante a gestão de Sábato Magaldi na Secretaria da Cultura, a EMURB ofereceu uma faixa de terreno, um desvão em declive, que não seria utilizada na construção do metrô, junto à avenida 23 de Maio. Pensou-se então em construir nela a segunda torre da Biblioteca, agora em uma posição deitada, uma vez que a primeira torre estava totalmente ocupada por periódicos há 20 anos. Mas a administração que sucedeu optou por construir o Centro Cultural que, apesar de todos os problemas decorrentes das adaptações ao projeto, manteve a biblioteca no coração do equipamento, que se tornou uma das mais frequentadas de São Paulo.

O Centro Cultural, ao longo de sua existência, acabou protegido do abandono do poder público pelo seu público, formado por adolescentes e pré-vestibulandos. Esse público encontrou naquele lugar uma construção generosa, em que não é possível controlar a entrada nem a saída das pessoas. Um espaço livre do olhar de pai e de professor, ou seja, o lugar por excelência do adolescente. Quando assumi a direção, já era tomado por eles, que faziam pulsar o Centro Cultural. O que fizemos lá foi uma grande arrumação da casa, ocupando adequadamente os espaços ociosos. Havia na entrada da biblioteca um grande vazio. Por quê?, perguntei. – Aqui existiam mesas de consulta e foram retiradas porque os jovens namoravam. Como não tivesse nada contra namoros, mandei recolocar as mesas que foram ocupadas imediatamente, como se nunca tivessem saído dali.

O que quero dizer com isso é que é preciso encontrar a vocação de um espaço a partir de seu uso. O prédio fala. É preciso saber ouvi-lo. Por exemplo: o Centro Cultural Banco do Brasil é um desastre em São Paulo e um sucesso no Rio de Janeiro: qual é a diferença? O prédio do Rio de Janeiro era a sede do Banco do Brasil na Capital Federal, tem um porte monumental que é mais adequado para as intervenções culturais. Aqui, era um escritório regional onde eram recebidos fazendeiros que vinham fazer empréstimos. O espaço é muito acanhado, cheio de salinhas, os quadros das ótimas exposições que se fazem ali se espremem nelas.

O teatro é minúsculo, a sala de cinema tem apenas quarenta lugares, qualquer programação nela fica caríssima! Ali existe um erro grave de avaliação de espaço, claramente não era lugar para centro cultural.

RBP: Então é importante que o grupo que gerencia uma instituição tenha uma percepção adequada não só do espaço físico de que ela necessita, mas do momento, da oportunidade política para as ações requeridas. Essa percepção tem a ver com o gestor?

CALIL: Claro. Após a morte de Paulo Emilio, a Cinemateca foi instalada, modestamente, em duas casas que haviam sobrevivido a uma desapropriação do Metrô, no Parque da Conceição, Jabaquara. Certo dia, li em um jornal que as ruínas do matadouro municipal da Vila Clementino eram um depósito da Light e pedi a meu pai, que havia sido colega de Jânio Quadros, que me levasse até o prefeito. Diante dele, comecei a contar a história da Cinemateca e para minha surpresa Jânio me interrompeu dizendo conhecê-la perfeitamente. Solicitei então a área do matadouro para sede da Cinemateca, ele concordou imediatamente e, no dia seguinte, a autorização estava publicada no Diário Oficial. O que eu não sabia, é que já existia um interesse da Rhodia pelo imóvel, pois pretendiam construir lá o Museu da Moda. A Cinemateca nem tinha ainda os meios para restaurar aquela imensa área, ao contrário da Rhodia, mas no Brasil as coisas acontecem assim. Ainda bem.

RBP: Como você vê uma instituição como a Fundação José Sarney, que tem por objetivo declarado preservar o acervo privado do expresidente, alojado no Convento das Mercês em São Luís, imóvel de grande importância histórica, que recebeu em doação do governo do Maranhão?

CALIL: O Presidente Sarney representa a política arcaica no Brasil. Ele escolheu o belo Convento das Mercês, deu-lhe uma dotação razoável quando era presidente ainda, tudo para criar seu mausoléu, como um faraó. Só que a instituição criada não adquiriu até hoje sustentabilidade e foi assolada pela má gestão, a dos interesses de grupo. Consegue os fundos por meio do tráfego de influência, graças ao poder político.

Também não há legitimidade no uso que se faz daquele prédio para enaltecer um governo, uma família. A incompetência da gestão levou a instituição a essa falência divulgada agora, da qual desconfio. Parece manobra para tentar eximir a responsabilidade pela má administração de recursos públicos, ao mesmo tempo em que retira o seu acervo para, em breve, recriar a instituição em outro formato, quem sabe como OSCIP.

RBP: Com essas experiências positivas e negativas que você teve gerenciando tantas instituições, seria possível encontrar uma forma de garantir um pouco que um trabalho de gestão de boa qualidade não fosse destruído com o tempo, pelas administrações seguintes? Como preservar uma política institucional bem sucedida?

CALIL: Não tenho resposta acabada para isso, mas uma política institucional bem sucedida pode ser preservada por um bom conselho de curadores. Além disso, é importante que se mantenha uma continuidade. Qual a razão do sucesso do SESC em São Paulo? É uma instituição única, diferente da do Rio de Janeiro, da de Minas Gerais e de todos outros estados. O que o define é uma política cultural de 20 anos, bem sucedida. O presidente Abram Szajman e o professor Danilo Miranda montaram lá uma equipe de gente que sabe o que faz, com rigorosa disciplina, que se aprimora há 20 anos!

O SESC hoje é, reconhecidamente, um patrimônio da cidade de São Paulo.

Então, profissionalismo e continuidade são essenciais. Isso é muito difícil de se conseguir no governo, pois a política, brasileira ou não, é muito personalista. Na França, o presidente Mitterrand mandou erguer a pirâmide de cristal do Louvre. Da mesma maneira o presidente Chirac mandou construir o Quai Branli. Antes deles, o presidente Pompidou havia patrocinado o centro que leva o seu nome. Foram absolutamente personalistas. Temos entre nós exemplos semelhantes.

Um conselho de curadores pode ajudar a preservar o espírito original da instituição, desde que não se tornem conselhos apenas formais como o da TV Cultura, onde existe até membro vitalício. A função dos conselhos curadores é garantir sua renovação segundo regras bem definidas, essa rotatividade dos seus membros é indispensável para a preservação da instituição, porque senão ela se fossiliza.

Uma boa maneira de defender as instituições oficiais é criar instituições paralelas, como as sociedades de amigos. A Cinemateca Brasileira tem a Sociedade Amigos da Cinemateca, a mais antiga delas, o Centro Cultural São Paulo tem a Associação Amigos do Centro Cultural São Paulo, a Pinacoteca tem a Associação dos Amigos da Pinacoteca e esse é um caminho.

Em encontros com dirigentes culturais estrangeiros, da Holanda, da França, dos Estados Unidos, a institucionalização é um tema que permeia nossas conversas. O que estamos analisando aqui é voz geral: como as pessoas passam pelas instituições, o problema é como prever sua duração, como assegurar o seu natural desenvolvimento quando seus fundadores a deixarem. Até hoje o MASP se ressente da ausência da figura poderosa do professor Bardi.

As instituições são organismos vivos, envelhecem como as pessoas, são sensíveis ao carisma, à maior ou menor habilidade de seus gestores.

O que devemos ter como horizonte permanente é um grau de institucionalidade de tal maneira amplo e sólido que abrigue as personalidades carismáticas e suas idiossincrasias, mas que possam sobreviver a elas, incorporando a sua energia e sua contribuição como patrimônio. Havia, por exemplo, a ideia de que a Bienal acabaria com o desaparecimento de Ciccillo Matarazzo mas, bem ou mal ela sobreviveu, quer dizer, foi maior do que ele. Na verdade, a Bienal sobreviveu a Ciccillo, assim como a Cinemateca sobreviveu a Paulo Emílio.

RBP: É conhecido o fato de que o Durval Marcondes morreu muito amargurado com a Sociedade em função dos caminhos que ela tomou e de ter se sentido marginalizado no fim da vida pelas novas correntes que surgiram. Vemos que isto se repete em muitas instituições, mesmo entre psicanalistas. Parece que existem movimentos dentro das instituições sobre os quais, em geral, pouco conhecemos, sobre os quais não se tem controle, um pouco como na vida mental. Será que a adoção de um modelo mais democrático ajuda no entendimento destas situações, especialmente nas pequenas instituições?

CALIL: O perigo que existe na grande ou na pequena instituição é o assédio de um grupo determinado a ocupar o poder para fazer uso dele. Temos exemplos recentes disso em São Paulo, o caso do Edemar na Bienal, a situação atual do MASP. E essas situações nem sempre incluem vantagens financeiras para o grupo dominante, às vezes atende a outro grau de necessidade das pessoas envolvidas.

RBP: Você começou a trabalhar em instituições muito cedo, não foi? Como foi sua formação nelas?

CALIL: Basicamente foi feita a partir do convite (talvez tenha sido uma "convocação") das pessoas com quem me relacionava e em seguida com a própria experiência do trabalho com seus acertos e erros. Paulo Emílio foi uma influência fundamental em minha carreira. Sábato Magaldi me ensinou que é preciso respeitar a história das instituições. Quando ele decidiu não acabar com a Bienal foi porque sabia que uma instituição como aquela, que tinha tido um papel tão grande na cultura brasileira desde os anos 1950, não poderia simplesmente desaparecer por inanição.

Às vezes me pergunto o que sou. Não sou escritor, ainda que escreva coisas, e não sou cineasta há muito tempo, para a sorte do público. Um dia ouvi uma expressão em inglês, que se refere a pessoas que constroem e nutrem instituições. Acho que sou um pouco isso. Procuro estruturá-las a partir de seus elementos. É necessário um núcleo inicial, pode ser um acervo, uma memória, um patrimônio tangível ou intangível, que seja importante preservar como um bem da sociedade, um bem público. Essa convicção permite enfrentar as dificuldades para que a instituição vingue, e as eventuais incompreensões que irão surgindo.

A noção do que é um bem da sociedade nem sempre é clara até mesmo para grandes criadores. O N iemeyer é capaz de destruir ou mutilar sua obra com a maior sem cerimônia e ainda teoriza isso, dizendo que a arquitetura moderna é feita para ser destruída. Ele quer mutilar a marquise no Ibirapuera, uma das construções mais graciosas que projetou. Sente-se no seu direito, porque houve um erro na implantação do Auditório Ibirapuera, construído recentemente, que ficou desalinhado da Oca, segundo o plano de 1954. A marquise ficou avançada além do eixo de ligação e, então, ele quer cortá-la para corrigir isso. Mas a marquise tem uma leveza que assim seria afetada. É papel das instituições – no caso o Patrimônio Histórico – velar pelo bem comum, em nome da sociedade. Muita gente acha que é direito do autor, porque a obra é dele. Mas quem disse que direito autoral permite que o artista refaça sua obra em qualquer tempo, a seu bel prazer? A obra pronta não mais pertence ao criador, pertence à sociedade.

RBP: Fale um pouco mais de como se constrói uma instituição, acho que isso é importante para a entrevista.

CALIL: Há muitos aspectos a serem observados, entre eles a importância do que se preserva, e com que objetivo se preserva. Vejam o caso do Museu Segall, por exemplo. Maurício Segall dedicou sua vida à instituição, consciente de que seu pai era um artista importante, com uma obra relevante. Tinha a vantagem de não precisar vendê-la para sobreviver, o que ajuda muito. Fez o museu na casa e ateliê do artista, no próprio bairro onde viveu, concebeu uma instituição atuante naquele meio. Mas por acidente, com a sua incorporação ao governo federal, o que vingou foi o museu de escala nacional. É claro que a obra de Lasar Segall tem porte nacional e internacional. Aparentemente contrariando os desígnios do Maurício, o museu se institucionalizou na dimensão nacional e não na municipal, isso pela magnitude e universalidade da obra do pai.

RBP: Alguém que faz uma instituição de fato tem que perceber que está a serviço daquele objeto e dos recursos de que dispõe?

CALIL: Geralmente você deflagra o processo e depois não o controla mais. A dinâmica das coisas adquire velocidade própria e é prudente respeitar o seu processo de crescimento, impondo mecanismos de acompanhamento e controle. É como gerar um ser vivo. Precisa examinar como esses elementos do DNA institucional evoluem no tempo, como reagem às interações com o meio. Se ela se desviou no caminho, adquiriu uma outra dimensão, é preciso reconhecer isso. Observar a realidade é fundamental. É preciso igualmente considerar o lado de quem frequenta a instituição, ou é beneficiado por ela, ver como as pessoas se apropriam dela. Só quando ela é apropriada por um certo público – não existe um público abstrato e sim um certo segmento –, é que ela se enraíza. Se a Cultura Artística não tivesse seus assinantes, giraria em falso. Se o MoMA não tivesse obtido o reconhecimento pela alta qualidade de suas iniciativas, não teria seus mantenedores, inclusive o apoio dos brasileiros colonizados.

Temos o caso de Alfredo Mesquita, que fundou a Escola de Arte Dramática. Ele a criou porque em torno dele havia um movimento enorme de amadores de teatro, com uma grande vitalidade; percebeu então que precisava institucionalizar aquilo, profissionalizar. Não poderia continuar patrocinando reuniões de grã-finos nos finais de semana e eventualmente até produzindo coisas boas, mas com que propósito? Criou uma instituição onde havia a busca da consagração da arte de interpretar.

A pessoa mais importante no Brasil, em termos de institucionalização, foi Mário de Andrade. Ele via tudo sempre pelo viés da institucionalização. Cuidava de criar meios para isso e, é claro, desgastou-se enormemente. Foi incompreendido, tido como personalista, gastador, malversador de recursos públicos e tudo aquilo que se pode mesquinhamente assacar contra uma personalidade daquela magnitude. Depois de implantar a primeira Secretaria de Cultura do país, em São Paulo, acabou afastado desse trabalho, processado, foi para o Rio de Janeiro praticamente exilado. Tinha vergonha de ficar em São Paulo, onde fora achincalhado. Foi infeliz no Rio, ali não era seu ambiente, ainda que tivesse amigos lá. Foi um intelectual que nos deixou enorme legado em matéria de institucionalização, pensou em todas as vertentes da política pública. O Mário ainda é a matriz institucional mais forte da cultura brasileira.

Para mostrar como a institucionalização da cultura no Brasil é questão antiga, os primeiros passos foram o Departamento de Cultura em São Paulo em 1935 e o Serviço do Patrimônio Histórico Nacionalno Rio de Janeiro em 1938. O pensamento e a ação do Mário estão atrás de ambas iniciativas. Naquela época já previa a questão da preservação dos bens intangíveis que hoje estão começando a proliferar. Aloísio Magalhães já havia retomado esse procedimento no início dos anos 1980, quando tombou o método de extração do vinho do caju. Por causa dessa política pioneira, hoje o ministro Gil pode tombar terreiro de candomblé.

RBP: Calil, nossa conversa foi excelente, como sempre! Agradecemos muito esta sua contribuição à Revista Brasileira de Psicanálise

 

 

1 Entrevista realizada no dia 3.11.2009, por Chulamit Terepins, Leopold Nosek, Maria Ângela Gomes Moretzsohn, Maria Aparecida Quesado N icoletti, Maria Elisa Franchini Pirozzi, Sonia Soicher Terepins, Thais Blucher.

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