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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.4 São Paulo  2009

 

DIÁLOGO

 

Fracassos e sucessos na vida institucional e sua lógica paradoxal: comentário à entrevista de Carlos Augusto Calil

 

Faltas y éxitos en la vida institucional y su lógica paradoxal Comentario a la entrevista de Carlos Augusto Calil

 

Failures and successes in institucional life and its paradoxical logic Comment to the interview of Carlos Augusto Calil

 

 

Luís Claudio Figueiredo1

Universidade de São Paulo
Pontificia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tanto as situações de impasse e fracasso como os casos relativamente bem sucedidos da vida das e nas instituições exigem que se pense em termos de paradoxos ou, em uma linguagem filosófica, segundo a lógica da suplementaridade. O grande desafio para os que participam da vida institucional e, principalmente, se responsabilizam pelas instituições é o de desenvolver a arte de apreender estas dinâmicas paradoxais e operar com elas

Palavras-chave: instituição; paradoxo; suplementaridade.


RESUMEN

La intelección de todas las situaciones de la vida institucional requiere un pensamiento basado en los paradojos, una lógica paradoxal, o de la suplementaridade. El gran desafío para los que participan y, aún más, conducen las instituciones es el de operar con la lógica de los procesos complejos.

Palabras clave: institución; paradojo; suplementaridade.


ABSTRACT

The understanding and handling of every institutional dynamics requires a shift from the formal and Aristotelian logic to the paradoxical logic developed by psychoanalytical thinkers and prevalent inside this tradition.

Keywords: institution; paradox; supplementary.


 

 

Nas diversas situações a que fomos apresentados na entrevista de Carlos Augusto Calil foram emergindo algumas questões que nos parecem expressar algo de essencial na condição humana e, portanto, algo de essencial da vida dos indivíduos e suas instituições (ou, quem sabe, seria melhor dizer: das instituições e seus indivíduos?).

Estas questões envolvem sempre pares de polos em aparente oposição: a força da vida institucional e a força das personalidades (criadoras, fundadoras ou continuadoras; carismáticas ou meramente afiliadas; sócios ou apenas usuários); os espaços (físicos e simbólicos) e os processos; o imóvel e os movimentos vitais – com as transformações que produzem; o passado (a tradição) e o futuro (os projetos); o idêntico e o diferente; o contínuo e o inovador; o coletivo e o particular (nos termos da civilização ocidental moderna, o público e o privado); a preservação e a criação (incluindo os momentos de destruição necessária).

Em nenhum caso um dos polos pode estar em falta e, principalmente nos exemplos mais bem sucedidos, o bom sucesso – sempre relativo, jamais definitivo e algo milagroso – sempre depende da manutenção destas polaridades, posto que mediadas. Não se trata de mediações que eliminem as oposições, ou que sucumbam a elas, deixando-se paralisar em um dos polos. Nem se trata também, apenas, de formas de "equilíbrio" entre as polaridades, menos ainda de uma "média", o que certamente seria desastroso. As oposições se mantêm, mas, ao mesmo tempo, cada polo, além de estabelecer limites e contenção para seu oposto, também é indispensável para sua conservação e desenvolvimento. É, por exemplo, notável a relação paradoxal entre o imóvel do enquadre analítico (uma micro-instituição na qual se imobilizam aspectos importantes dos psiquismos do paciente e do analista) e a mobilidade desejada dos processos analíticos implicados no tratamento, tal como magistralmente analisada pelo psicanalista Jose Bleger (1967), aliás, um pioneiro da psicanálise institucional com quem ainda temos muito que aprender. A estas mediações que participam ativamente do que de melhor se cria na vida social, mas, igualmente, de nossas maiores dificuldades e fracassos, chamaremos de mediações paradoxais, e, como se verá adiante, a lógica do pensamento psicanalítico nos facilita sua apreensão.

O que caracteriza tais formas de relação mediada é o fato de que o elemento antagônico é também indispensável para a sustentação de seu oposto: um não pode viver sem o outro sem se autodestruir e esterilizar pelos excessos e pelos extravios.

Tomemos, por exemplo, o caso curioso da relação do arquiteto Niemeyer com o parque do Ibirapuera e com a famosa marquise, tal como relatado na entrevista. Por ele, a marquise vinha abaixo, mas a cidade já a adotou e dela não abre mão, para o desespero do arquiteto. Mas poderia ser o caso de Paulo Emílio Sales Gomes com a Cinemateca Brasileira, ou… o de Freud com a psicanálise e com o movimento psicanalítico mundial. Aliás, em relação ao pai da psicanálise, certamente nosso movimento e nossas instituições teriam perdido muito se a vontade do mestre houvesse prevalecido na questão dos seus manuscritos não publicados2, e destinados por ele ao lixo e ao esquecimento. Também teria sido uma imensa perda (para a história e mesmo para a teoria) se tivesse ocorrido o que ele desejava em relação às cartas trocadas com o amigo Fliess, arrematadas e salvas in extremis pela princesa Bonaparte. Elas já não eram mais apenas uma parte da privacidade de Freud, mas pertenciam ao movimento freudiano em sua dimensão coletiva e pública. Enfim, é importante que as instituições ganhem alguma autonomia em suas dinâmicas evolutivas diante daqueles que as conceberam e fundaram; tornam-se assim patrimônio social, coletivo, vão além do que havia sido projetado, embora não possam se separar totalmente de suas origens, com o risco de desvirtuamento e descaracterização. Aliás, tanto Freud como Niemeyer, sabemos, ao mesmo tempo em que foram capazes de destruir parte do que fizeram (ou projetar sua destruição), desenvolveram imensos esforços, na direção contrária, para preservar suas obras diante das ameaças de degradação.

Em contrapartida, são inúmeros e evidentes em toda parte os estragos causados pela hipertrofia do peso institucional quando escasseiam as condições para a livre expressão das personalidades do criador e do fundador (eventualmente, refundador criativo), ou dos continuadores e beneficiados em geral (pois o usuário também é um criador, que cria ao se apropriar à sua maneira e no seu ritmo do que lhe foi oferecido; mas, às vezes, o reverso está sempre presente, este mesmo usuário destrói, estraga e vandaliza, nesta "apropriação", um bem público). O mesmo enquadre, por exemplo que, segundo Bleger, é a condição de possibilidade do processo analítico, pode-se tornar, mesmo quando funciona bem e se mostra adequado, um impeditivo para o prosseguimento do trabalho analítico e precisar, ele mesmo, ser integrado e parcialmente dissolvido pela análise (no entanto, mesmo aí, algo de imóvel precisa ser sustentado para que algo se mova e transforme… e assim por diante).

O risco do excesso e do extravio está sempre por perto, em ambas as direções de todas as polaridades a que aludimos acima, e não há remédio perfeito ou fórmula mágica. Talvez a arte dos que assumem a responsabilidade pela vida institucional, em todas as regiões da prática e da existência (o que inclui as Sociedades de Psicanálise), seja o de fortalecer o polo momentaneamente mais fraco, para que o mais forte não opere sem limites e possibilidades de transformação, extraviando-se e se autodestruindo. Isso gera, entre muitos outros, um problema de difícil solução, principalmente nas instituições tocadas pelos valores da democracia: embora os dirigentes sejam eleitos pela maioria, uma das suas funções importantes será a defesa e garantia das posições e ideias minoritárias, vale dizer, a preservação da diferença contra a identidade que ele mesmo, dirigente, encarna e personifica. Exigir isso de alguém, convenhamos, é contrariar nossa velha e insistente humana natureza, o que torna a democracia quase impossível e sempre sujeita às piores deturpações.3

Em relação à lógica paradoxal que rege estas dinâmicas e relações, a psicanálise se encontra em uma posição privilegiada, embora, evidentemente, tais riscos nos afetem e afetem nossas instituições tanto quanto quaisquer outras. O que temos, porém, mesmo que nem sempre o saibamos usar em nosso próprio proveito nas questões de prática institucional, é uma base teórico-metodológica para apreender o x do problema.

Analisando detalhadamente o que foi elaborado por Freud em "Além do princípio de prazer" (1920/1996), acho que consegui demonstrar (Figueiredo, 1999) que o que parece à primeira vista um simples dualismo entre Pulsões de vida e Pulsões de morte, é na verdade uma relação muito mais complexa entre estas polaridades. N estas relações, cada polo funciona como oposição e, não só isso, mas ao invés disso, como suplemento do outro: a vida dura enquanto se sustenta esta lógica paradoxal ou, como dizia, seguindo Derrida, segundo a lógica da suplementaridade. Voltando ao caso das democracias, por exemplo, seria correto dizer que o governo da maioria precisa tremendamente das minorias porque é nelas que se pode concentrar o mais autêntico espírito democrático. Em psicanálise, diríamos: trata-se de dar voz ao recalcado, deixar vir o inconsciente, iluminar os bastidores.

Sabemos que coube a Winnicott dar o máximo relevo, expansão e elaboração ao paradoxo, seja no plano dos processos psíquicos (individuais e coletivos), seja no plano de sua teorização psicanalítica, mas toda a psicanálise foi construída sobre estes "alicerces" lógicos (Figueiredo, 2009) e todo o pensamento de Freud, Ferenczi, Melanie Klein, Lacan e Bion, entre tantos outros, não se deixa apreender se a lógica formal aristotélica prevalecer sobre a lógica paradoxal e a noção de suplementaridade. N a verdade, ambas as lógicas precisam ser reconhecidas e praticadas, paradoxalmente.

O que estou aqui sugerindo é que as tensões e impasses da vida das instituições e nas instituições só podem ser enfrentados quando nos capacitamos a pensar os paradoxos, e que cada uma das questões a que Carlos Augusto Calil nos apresentou, através dos exemplos provenientes de sua rica trajetória profissional, como pensador, administrador e político, exige um pensamento, se não psicanalítico, ao menos instruído pela psicanálise.

Mas, como é bem sabido, casa de ferreiro, espeto de pau… Mais um paradoxo para nossa lista.

 

 

Referências

Bleger, J. (1967). Psicanálise do enquadramento psicanalítico. In Simbiose e Ambiguidade. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1985.         [ Links ]

Figueiredo, L. C. (1999). Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Figueiredo, L. C. (2009). Três teses sobre o paradoxo em psicanálise. Ressonâncias. In As diversas faces do cuidar. Novos ensaios de psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freud, S (1996). Más allá del princípio de placer. Obras psicologicas completas de Sigmund Freud. Trad. José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu, vol. XIX. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luís Claudio Figueiredo
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Alcides Pertiga 65, Cerqueira Cesar
05413-100, São Paulo, São Paulo, SP
lclaudio@netpoint.com.br

 

Recebido em 15.1.2010,
aceito em 26.1.2010

 

 

1 Psicanalista, professor da USP e da PUC-SP.
2 Cf. o "Projeto de uma Psicologia", de 1895, e o texto de 1914-15, "Neuroses de transferência: uma síntese" outros textos metapsicológicos dessa época, infelizmente, não se salvaram e tiveram o destino projetado por Niemeyer para marquise do Ibirapuera: viraram pó.
3 Em consequência, a democracia torna-se a pior forma de governo já inventada, com exceção de todas as outras.

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