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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.4 São Paulo  2009

 

TEMÁTICOS

 

A instituição psicanalítica como matriz simbólica – vicissitudes de uma formação auto gerida1

 

La institución psicoanalítica como matriz simbólica – vicisitudes de una formación autoregulada

 

The psychoanalytic institution as a symbolic matrix – Vicissitudes of a formation self managed

 

 

Alfredo Naffah Neto2

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo define a instituição psicanalítica como uma matriz simbólica, que compreende um conjunto de prescrições mínimas definidoras da disciplina psicanálise e do profissional psicanalista. Em seguida, descreve as vicissitudes de uma formação auto gerida, discutindo as vantagens e desvantagens da mesma. Por fim, descreve a forma de inserção da psicanálise na universidade.

Palavras-chave: instituição psicanalítica; matriz simbólica; formação psicanalítica; universidade.


RESUMEN

Este artículo define la institución psicoanalítica como una matriz simbólica, que abarca un conjunto de prescripciones mínimas definidoras de la disciplina psicoanálisis y de la profesión psicoanalista. Entonces, describe las vicisitudes de una formación autoregulada, examinando las ventajas y desventajas de la misma. Finalmente, describe la forma de inserción del psicoanálisis en la universidad.

Palabras clave: institución psicoanalítica; matriz simbólica; formación psicoanalítica; universidad.


ABSTRACT

This article defines the psychoanalytic institution as a symbolic matrix, which comprehends a group of minimal prescriptions that defines the branch of knowledge named psychoanalysis and the profession named psychoanalyst. Then, it describes the vicissitudes of a formation self managed, discussing its advantages and disadvantages. Finally, it describes the form psychoanalysis finds its insertion in university.

Keywords: psychoanalytic institution; symbolic matrix; psychoanalytic formation; university.


 

 

1) A instituição psicanalítica e as associações psicanalíticas

Penso que a instituição psicanalítica, no sentido forte do termo, constitui algo distinto da entidade empírica que corporifica – por meio de uma estrutura social, cultural e jurídica –, uma associação ou organização psicanalítica (ligada ou não à IPA), cuja função seja congregar e formar profissionais.

Não quero dizer com isso que essas entidades não tenham a sua importância e utilidade para todos aqueles que buscam uma formação psicanalítica regular e sistemática e, ao mesmo tempo, almejam pertencer a uma organização que lhes favoreça a troca entre colegas, a conquista de títulos e funções didáticas, a continuidade de formação e aperfeiçoamento ao longo do tempo etc.

É verdade que já ouvi inúmeros senões que perpassam várias delas: por exemplo, o comentário de que algumas entidades lacanianas exigem quase nenhuma análise para que o sujeito se torne um psicanalista; bastaria, quando muito, uma "experiência de inconsciente", o que quer que isso queira dizer. Mas não sei, de fato, o quanto disso tudo é verdadeiro e em que extensão. Também já ouvi inúmeras críticas à análise didática, exigida pelas sociedades ligadas à IPA. O último caso que me foi contado, meio em surdina, num restaurante, foi de alguém que teria passado praticamente os 5 anos de análise didática conversando e discutindo futebol com o seu analista, apenas para efeito curricular, já que a análise verdadeira já se encerrara algum tempo antes de se iniciar a "análise didática". Também não fui (nem teria como) conferir a verossimilhança da fofoca. Fato é que, como não pertenço nem me formei em nenhuma dessas organizações, não posso falar delas em primeira pessoa.

Pretendo, pois, falar sobre a minha experiência pessoal de formação que se processou à margem de qualquer entidade empírica credenciada, mas, nem por isso, exterior à instituição psicanalítica. Pois esta última designa, no meu entender, uma matriz simbólica, distinta de qualquer entidade empírica, que compreende um conjunto de prescrições que definem condições mínimas, teórico-técnicas, para que um procedimento terapêutico possa ser chamado de psicanálise e o profissional nele implicado de psicanalista3.

Ao refletir, aqui, sobre a minha formação pessoal e as vicissitudes que a engendraram, pretendo lançar alguma luz sobre esse tipo de formação marginal: suas vantagens, desvantagens, riscos e preciosidades. Sem idealizações nem preconceitos.

Como desdobramento desse tema, pretendo falar brevemente sobre a psicanálise que se ensina e se discute na universidade, já que como professor titular da PUCSP, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, venho trabalhando, há muitos anos, na orientação de dissertações e teses que versam sobre temas psicanalíticos (na sua maior parte, clínicos).

 

2) A instituição psicanalítica como matriz simbólica

Grosso modo, pode-se dizer que para que uma forma determinada de psicoterapia possa ser chamada de psicanálise, ela necessita apresentar algumas características singulares: 1) realizar uma pesquisa sistemática das formações inconscientes que subjazem aos sintomas e a toda representação consciente do paciente; 2) considerar que a sexualidade e a agressividade/destrutividade, originárias dos impulsos instintivos (ou pulsionais), formam as experiências mores que moldam a psique humana, além dos fatores hereditários e dos cuidados ambientais4; 3) Trabalhar terapeuticamente por meio da interpretação (e do manejo) da transferência5.

Por sua vez, poderá se autodenominar psicanalista aquele que: 1) tiver sido analisado num tempo suficiente, que lhe tenha possibilitado conquistar uma maturidade como ser humano, e abrir canais para os processos inconscientes, podendo sustentar o contato com eles sem grandes angústias; 2) tiver estudado profundamente o campo psicanalítico em uma ou mais de suas linhagens teórico-clínicas6; 3) Tiver realizado análises inteiras de pacientes (com começo, meio e fim) e passado por supervisões, num nível suficiente para elaborar seus pontos cegos e interiorizar os diferentes manejos e formas de interpretação da transferência (em função das diferentes psicopatologias psicanalíticas).

Esse inventário não pretende ser exaustivo nem absoluto. O que pretendo aqui é simplesmente evidenciar que o que denomino instituição psicanalítica é justamente a matriz simbólica que compreende esse conjunto de prescrições ou condições definidoras da atividade psicanalítica e do profissional psicanalista.

Evidentemente, ela engloba outros desdobramentos que não desenvolvi aqui como, por exemplo, aqueles que definem os usuários passíveis de usufruir da terapêutica psicanalítica (ou seja, quem são os pacientes analisáveis). Além de muitos outros.

Como a profissão de psicanalista não é regulamentada por lei federal (como, por exemplo, a de médico ou a de psicólogo), existem diferentes tipos de formação psicanalítica, desde aquela regulamentada pela IPA e realizada pelas sociedades a ela filiadas e credenciadas para tal, até aquelas oferecidas por um sem número de entidades independentes e/ ou filiadas a escolas dissidentes (como a lacaniana, por exemplo), além de uma enormidade de aberrações que aparecem frequentemente, dentre elas entidades que se proclamam psicanalíticas e oferecem cursos, sem apresentarem o menor credencial para tal (muitas vezes, sem ter sequer noção do que seja psicanálise).

E há psicanalistas de formação auto gerida, como é o meu caso.

 

3) Vicissitudes de uma formação auto gerida

Tornei-me psicanalista após ter passado cerca de 20 anos trabalhando com psicoterapia psicodramática em suas várias modalidades (individual, grupal, de casal). Tendo passado por uma formação regular em psicodrama em uma das entidades existentes em São Paulo, na época, cheguei mesmo a galgar todos os degraus ligados a essa modalidade profissional e me tornado um didata, além de ter escrito vários livros sobre o meu trabalho clínico e as minhas investigações teóricas na área. Nessa época cheguei a trabalhar com quase 40 pacientes simultaneamente, distribuídos em 3 grupos, além das sessões individuais, de casal etc.

Mas a vida dá voltas inesperadas e uma delas me pegou de surpresa. Como necessitasse de psicoterapia, numa certa época de vida, e não houvesse ninguém mais na minha área de trabalho que pudesse ser meu terapeuta (já que eram todos meus colegas e, na maior parte, conhecidos ou amigos), fui encaminhado a um psicanalista que, por acaso, era um didata de uma entidade ligada à IPA. E lá passei cerca de 10 anos, os primeiros 3 numa frequência de 3 sessões por semana, os últimos 7 com 2 sessões por semana (já que, num certo momento, tive de diminuir o número de sessões para poder pagar uma análise para meu filho). Meu analista dizia assim: "O que se faz numa análise de 4 vezes por semana, pode-se fazer também numa de duas; apenas, leva mais tempo."

Essa era uma época em que eu já andava em crise com o método psicodramático e as suas limitações, o que me levou gradativamente a abandoná-lo7. Entretanto, o intervalo entre ocupar o lugar de analisando e tornar-me um psicanalista envolveu uma longa maturação, em grande parte devida ao meu namoro com a filosofia.

Esse namoro já começara com o mestrado em filosofia, realizado na USP, sob orientação de Marilena Chauí, mas se tornara um quase casamento quando me apaixonei pela filosofia de Nietzsche e passei cerca de 20 longos anos estudando o filósofo alemão, uma parte deles enquanto ainda trabalhava como psicodramatista, e uma segunda etapa quando, tendo abandonado o psicodrama, tentei criar uma psicoterapia de fundamentação nietzschiana, a partir de um diálogo entre a obra de Freud e a de Nietzsche, tendo publicado três livros nessa direção (Naffah N eto, 1985, 1992, 1994).

Quando avalio essa empreitada hoje, penso que houve aí, certa dose de pretensão aliada a alguma imaturidade, apesar de, no todo, ser uma tentativa bastante corajosa da minha parte. Acontece que a filosofia de Nietzsche, se pode constituir uma excelente ferramenta crítica na interlocução com a psicanálise, não possui estofo suficiente para a constituição de uma clínica eficiente, especialmente quando se trata de pacientes difíceis, tipo borderline, por exemplo. E isso eu pude comprovar na prática.

Por isso, essa tentativa esgotou-se no prazo de alguns anos, ao longo dos quais acabei sendo intimado pelos próprios acontecimentos da minha clínica a assumir, de fato, a metodologia psicanalítica e a manter Nietzsche apenas como um interlocutor sagaz, capaz de me ajudar a realizar uma crítica dos valores dominantes e a me indagar sobre o tipo de subjetividade que venho produzindo na minha prática clínica. Desvio desnecessário? Perda de tempo?

Tudo tem seus prós e seus contras. Se nesse período tivesse optado por entrar numa sociedade psicanalítica e realizar uma formação regular, teria provavelmente evitado esse desvio e caminhado mais diretamente para o que vim a me tornar depois. É possível que essa decisão tivesse poupado meus pacientes das minhas experimentações e desvios de rota, tornando seus processos terapêuticos mais regulares e estáveis. Tenho de confessar que atravessava um período em que me sentia bem desnorteado nas questões técnicas, tendo realizado várias experimentações, inclusive na área de terapia corporal8. É que, nessa época, já não contava mais com o método psicodramático, nem resolvera assumir a técnica psicanalítica e trabalhar centrado na transferência.

Mas, sou obrigado a reconhecer, se tivesse entrado para uma formação psicanalítica regular, isso teria me privado de duas riquezas. A primeira delas é o que ganhei ao longo desse estudo profundo da filosofia nietzschiana, tanto como visão crítica do conhecimento, quanto como saber aguçado desse animal chamado homem. A segunda, talvez a mais importante, é que fui me tornando psicanalista paulatinamente, de dentro para fora, por meio de um longo processo de amadurecimento e à medida que a própria clínica me solicitava certas posições a assumir.

Pode parecer caricato para quem vê a situação de fora, mas quando, finalmente, me vi obrigado a assumir a psicanálise com método de trabalho, a primeira coisa que fiz foi providenciar um divã. Pois, acabara de ter uma relação terapêutica que evoluíra para uma forma de transferência negativa bastante complicada e concluíra que o uso de divã poderia ter evitado alguns desenlaces desnecessários.

Nessa época minha análise já caminhava do meio para o fim e eu acumulara um longo estudo teórico de Freud, além de algum conhecimento de Klein e Bion (em função da linhagem do meu analista). Meti-me na empreitada e como, nessa época, não tivesse supervisor, levava os meus casos para as sessões de análise, a fim de elaborar meus pontos cegos.

Logo em seguida formei, junto com outros colegas psicanalistas, um grupo de seminários teórico-clínicos, para o qual, nos primeiros anos, trazíamos psicanalistas experientes para supervisionar nossos casos. Então, a partir das questões clínicas mobilizadas, montávamos nossos seminários teóricos, percorrendo diferentes autores: Bion, Winnicott, Balint, Searles, Ogden etc. Esse grupo ganhou o nome de Grupo Terceira Margem, em homenagem a Guimarães Rosa e ao seu conto "A terceira margem do rio" (Guimarães Rosa, 1962) e também numa clara alusão à nossa condição de analistas marginais. Com a passar dos anos, deixamos de trazer analistas de fora e o próprio grupo passou a supervisionar os casos clínicos de seus membros, numa gama variada de perspectivas psicanalíticas, já que o grupo reunia (e até hoje reúne) analistas de diferentes linhagens teórico-clínicas9. Embora tantos ângulos de visão diferentes possam deixar o analista supervisionado um pouco atônito, algumas vezes, a depuração posterior dos comentários variados tem se mostrado de grande riqueza.

Também procurei desenvolver, por mim mesmo, outros estudos psicanalíticos, indo além daqueles que esse grupo me proporciona; nos últimos anos, tenho me concentrado na pesquisa e desenvolvimento da obra teórico-clínica de Donald Winnicott. Entretanto, isso representou uma outra guinada de direção na minha formação psicanalítica, que já relatei em outro artigo.

(Quando me tornei psicanalista), reuni tudo o que estudara de Freud, Klein e Bion ao longo da vida a essa longa experiência de análise pessoal para instrumentar o meu trabalho clínico (…). De Winnicott, algum conhecimento vago, quase nada…

Mas o mundo dá voltas inesperadas e, algum tempo depois, tornei-me – por questões circunstanciais – orientador da tese de doutorado de Elsa Oliveira Dias, cujo tema era a teoria das psicoses de Winnicott. Então, por razões alheias à minha vontade, fui levado a um contato longo, extenso e minucioso com a obra winnicottiana. Era a primeira vez que ela adentrava o meu mundo profissional, trazida por um sopro de acaso. Mas, confesso que me interessou bastante tudo o que pude aprender e problematizar na orientação dessa tese.

 

Algum tempo depois – não sei dizer quanto –, recebi no consultório o que considero, hoje, o meu primeiro caso difícil na condição de psicanalista. Tratava-se de uma paciente de 40 anos, terceira geração de uma família libanesa imigrante, de religião católica ortodoxa grega, casada e mãe de dois filhos pequenos, de dez e oito anos de idade. A sua queixa básica: nada fazia sentido na sua vida. Casara-se com um homem da colônia, bastante apreciado por seus pais, mas muito pouco valorizado por ela própria, e sua vida era basicamente atender às expectativas do mundo ao seu redor, do marido, dos filhos e dos pais, que moravam no mesmo prédio e controlavam a sua vida nos mínimos detalhes: a que horas chegara em casa no dia anterior; que comida fizera no almoço; se estava ou não sendo uma boa mãe etc. Sentia-se, literalmente, como um peixe fora d'água ou como uma atriz que tivesse entrado na peça errada, como se aquela não fosse a sua vida. E eu me lembro de ficar muito impressionado com a total falta de afetividade e de apego que ela demonstrava por todos, inclusive pelos filhos.

Seu único interesse afetivo – num nível bastante idealizado – era um antigo namorado de adolescência, que reencontrara recentemente e de quem se tornara uma amante circunstancial, já que ele era casado como ela e, além disso, morava em Lima, no Peru, só vindo a São Paulo muito ocasionalmente. Mas funcionava para ela como uma espécie de príncipe encantado, propiciandolhe alguma esperança de realização pessoal diante da vida familiar sem sentido, à qual se sentia escravizada. Era uma gata borralheira sonhadora: a tônica de suas sessões alternava-se entre uma lamúria ressentida, ininterrupta, implacável – que jorrava de sua boca quase que como por costume, de forma monótona e enfadonha – e momentos de extrema idealização, quando falava do amado distante e inacessível. E eu me sentia, também, como um peixe fora d'água, já que qualquer tentativa de interpretação era imediatamente rejeitada, como se eu estivesse falando com uma muralha de pedra, incapaz de entender o meu idioma.

Nessa época, meu referencial teórico levava-me a entender essa reação da paciente como um ataque ao vínculo analítico e era assim que eu interpretava isso. Mas sempre que lhe falava do seu "ódio à realidade", do seu ataque às minhas interpretações, reduzindo-as a pó de traque, ela me olhava como se eu fosse um sádico, literalmente incapaz de entendê-la (já que, nessa época, as sessões eram face a face, dada a sua impossibilidade de usar o divã). Mais do que isso: não conseguia reconhecer nenhum ódio em si própria e a interpretação, mais uma vez, caía no vazio. Hoje, olhando retrospectivamente, posso reconhecer que, mesmo dentro de um referencial bioniano, talvez eu fizesse interpretações excessivamente saturadas, incapazes de contemplar as condições emocionais da paciente; mas isso só vim a entender muito mais tarde, quando li os excelentes seminários clínicos de Antonino Ferro na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP [França e Petricciani (orgs.) 1998 e 2003] e pude perceber que não era só eu quem cometia esse erro, mas também a grande maioria dos psicanalistas supervisionados por ele (…) N esse caso, sem dúvida nenhuma, a minha inexperiência – de analista iniciante – era a responsável por todo esse desencontro com a paciente.

De qualquer forma, a sensação de impotência acabou levando-me a mudar de direção na condução dessa análise. Um tanto macaco velho na clínica (ainda que minha experiência fosse, predominantemente, como psicodramatista), após tantos anos de trabalho, incluindo uma mudança radical de rumo –, eu já me guiava, nesse momento, por um certo pragmatismo, avesso a qualquer ideia de universalidade. Nietzsche ensinara-me a crítica radical da noção de verdade e a ideia de que todo conhecimento é perspectivo e eu aplicava esse perspectivismo à psicanálise: via as diferentes correntes psicanalíticas como originárias de diferentes perspectivas ou ângulos de visão e de interpretação da realidade, incluindo aí, obviamente, os referenciais epistemológicos adotados.

Então, comecei a perceber que sempre que eu conseguia emoldurar as reações emocionais da paciente por acontecimentos da sua história de vida, que emergiam por associação livre – e que, quase sempre, resvalavam pela falta de continência dos pais, a característica intrusiva da mãe e coisas afins –, a sua angústia se reduzia consideravelmente e ela se sentia mais compreendida e aceita por mim. Mas, para seguir esse rumo com alguma consistência teórica, eu teria de me aprofundar em Winnicott, já que os temas de suas associações livres eram maciçamente winnicottianos.10 Assim, afinal, por força das circunstâncias, o psicanalista inglês fazia a sua segunda entrada significativa na minha vida profissional e, de novo, por razões alheias à minha escolha. Só que, agora, a questão era mais séria, pois se tratava da clínica (Naffah N eto, 2005, p. 434-7).

Essa mudança de direção aconteceu já no final da minha análise e, por mera coincidência, eu sabia de alguém que tinha sido analisado pelo mesmo profissional e que, de forma análoga à minha, afastara-se dos referenciais teóricos do analista para se aprofundar na obra de Winnicott. Então, numa das sessões, disse, de forma meio provocativa: "Não é curioso que duas pessoas analisadas por você, que tem uma maneira de trabalhar tão claramente calcada na tradição Klein-Bion, se tornem winnicottianos?" Ao que ele me respondeu de forma firme e serena: "A função de uma análise não é criar cópias do analista, mas produzir indivíduos autônomos". É claro que eu pensava da mesma forma que ele, mas foi muito importante para mim – talvez como um filho que pede a benção ao pai (no âmbito transferencial) – saber que ele referendava a minha autonomia.

Após essa análise de 10 anos, passei por uma outra mais curta, de pouco menos de 2 anos, a fim de elucidar um lado nebuloso que sobrara da primeira experiência analítica (eles sempre sobram…). Quis o acaso que o analista escolhido trabalhasse numa vertente lacaniana – já que o critério que norteara a sua escolha não fora esse, teórico –, mas isso tornou essa experiência sui generis, extremamente diferente da primeira. Tão diversa que, dentro de mim, reluto o tempo inteiro em chamar as duas pelo mesmo nome: psicanálise. E me pergunto, inúmeras vezes, qual é a unidade real dessa nossa disciplina tão multifacetada.

Mas a análise lacaniana não me tirou do rumo winnicottiano; pelo contrário, desde então, tenho explorado esse novo veio de inúmeras formas11. O fato de ser professor universitário e lecionar num curso de pós-graduação, permite-me transformar os meus seminários semestrais em verdadeiros laboratórios de investigação e escolher, como tema, assuntos que quero investigar mais a fundo e que, em geral, me são sugeridos pela atividade clínica. Isso tem gerado artigos diversos, que tenho publicado em diferentes revistas de psicanálise: escrevi sobre a singularidade da perspectiva winnicottiana, quando comparada a outras abordagens psicanalíticas, mobilizado pelas mudanças ocorridas na minha prática clínica (Naffah Neto, julho-dezembro 2005; julho-dezembro 2007b). Por outro lado, a análise de casos de tipo borderline levou-me a investigar a problemática do falso self nesse tipo de patologia (Naffah N eto, 2007c) e a usar a trajetória de vida da cantora Maria Callas para aprofundar o estudo (Naffah Neto, janeiro-junho 2007a)12. Ainda no âmbito do trabalho clínico com esse tipo de patologia, já investigara o uso do divã e do holding nos processos de regressão psicanalítica (Naffah Neto, 2003) e desdobrei essa pesquisa num estudo minucioso da análise de Margareth Little, realizada por Winnicott (Naffah N eto, 2008b). Casos de neurose obsessiva (e também de histeria), noutra vertente, mobilizaram-se a pesquisar esse tema na obra de Winnicott e revelar lados de sua obra muito pouco conhecidos (Naffah Neto, 2008a). Isso além de artigos suscitados pela própria atividade de pesquisa psicanalítica (Naffah Neto, 2006).

Esse é o lado em que a universidade tem contribuído para a minha formação: permitindo uma dialética (sem síntese) entre a experiência clínica e a elaboração teórico-técnica, numa trajetória de mão dupla, percorrida o tempo todo.

 

3) A psicanálise na universidade

É preciso se dizer, de uma vez por todas, que a universidade não produz psicanalistas, nem tem como fazê-lo, já que essa formação pressupõe uma experiência iniciática (de passar por uma análise), que está totalmente fora do âmbito universitário. Ao contrário disso, um mestrado ou um doutorado em psicanálise pressupõe, como condição sine qua non, uma formação psicanalítica já realizada. Exceção à regra são os casos em que a psicanálise é usada como ferramenta de interpretação da cultura, ou no tipo de pesquisa teórica que se debruça sobre a obra de um autor (psicanalista, no caso), para problematizá-la ou revelar seus pontos obscuros. É que essas duas modalidades de pesquisa requerem competência nas tarefas implicadas (boa capacidade para interpretação de texto, fundamentação filosófica etc), mas não uma formação psicanalítica.

Afora esses casos, quando alguém busca uma pós-graduação em psicanálise ou bem está querendo problematizar a sua prática clínica ou bem está buscando aprofundá-la em alguma direção específica: no estudo de uma patologia singular, de um manejo técnico etc. Entretanto, se a universidade não produz psicanalistas no sentido de capacitação clínica, ela pode, sem dúvida, contribuir bastante para o que poderíamos chamar de formação continuada, oferecendo um rico espaço de reflexão e de pesquisa. Ou seja, tenho observado que os psicanalistas que entram para realizar um mestrado ou um doutorado sob minha orientação – quando conseguem realizar o percurso completo –, saem profissionais mais maduros e competentes.

Entretanto, há algumas pedras no caminho. A primeira delas é que, muito frequentemente, o tema escolhido pelo pesquisador guarda vínculos inconscientes com os seus conflitos psíquicos e isso pode gerar grandes complicações no processo de orientação, já que ocorrem transferências que não podem ser interpretadas ou manejadas clinicamente. Quando isso acontece, o quanto antes o orientador perceber e notificar o seu orientando, seja indicando-lhe uma análise, ou bem propondo uma mudança temática (quando isso é possível), mais facilmente se poderá sair do terreno pantanoso. A segunda pedra no caminho é a aquisição da capacidade de escrita psicanalítica, na qual muitos clínicos competentes encontram grandes dificuldades. Uma coisa é analisar um paciente; outra coisa, bastante diferente, é traduzir isso tudo em pensamento e linguagem escrita. Entretanto, posso testemunhar que quem enfrenta o desafio sai da experiência bastante satisfeito, pela conquista de uma ampliação da capacidade de pensar, clinicamente falando.

 

4) À guisa de conclusão

O que posso concluir, nesse final de percurso, é que a instituição psicanalítica, tal qual a entendo, possui vida própria, independente de qualquer entidade associativa que possa se constituir como seu porta-voz. Tendo se formado inicialmente pelas propostas de Freud, foi ganhando corpo ao longo de mais de um século de psicanálise, por meio das obras de todos aqueles que o sucederam. N ão constitui, nem poderia constituir, algo pronto e acabado, mas um ente que se transforma continuamente ao longo do tempo, muito embora possua um arcabouço estrutural relativamente estável13.

Quanto às vantagens e desvantagens de uma formação regular, por meio de uma associação qualquer, ou de uma formação marginal como a minha, afora aquelas que experimentei e descrevi nesse percurso, penso que são relativas às expectativas e características de cada um. Há pessoas que necessitam, mais do que outras, de uma direção e de um abrigo no seio de uma comunidade profissional formada; para elas, a formação regular será a mais indicada, sem dúvida nenhuma. Mas há aqueles como eu que, quando optei pela psicanálise, já era "macaco velho", um tanto avesso às mazelas organizacionais de entidades constituídas e que preferi uma formação auto gerida. O mais importante disso tudo, no meu modo de ver, é a responsabilidade profissional com que se encara a tarefa, já que a formação psicanalítica é trabalho para uma vida inteira.

 

 

Referências

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_____ (1998). Outr'em-mim – ensaios, crônicas, entrevistas. São Paulo: Plexus.

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_____ (2004). A escuta musical como paradigma possível para a escuta psicanalítica. Percurso – Revista de Psicanálise, ano XVII, n. 33, p. 53-60.

_____ (2005). Winnicott: uma psicanálise de experiência humana em seu devir próprio. Natureza Humana – Revista de Filosofia e Psicanálise, v. 7, n. 2, p. 433- 454.

_____ (2006). A pesquisa psicanalítica. Jornal de Psicanálise, Instituto de Psicanálise – SBPSP, v. 39, n. 70, p. 279-288

_____ (2007a). A função do falso self na produção de uma diva: o caso Maria Callas. Natureza Humana – Revista de Filosofia e Psicanálise, v. 9, n. 1, p. 09-28.

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_____ (2007c). A problemática do falso self em pacientes de tipo borderline – revisitando Winnicott. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 41, n. 4: Metáforas, p. 77-88.

_____ (2008a). Contribuições winnicottianas à clínica da neurose obsessiva. Percurso – Revista de Psicanálise, ano XXI, n. 41, p. 17-36.


_____ (2008b). O caso Margareth Little: Winnicott e as bordas da psicanálise. Jornal de Psicanálise. São Paulo: Instituto de Psicanálise SBPSP, v. 41, n. 75, p. 107-121.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Alfredo Naffah Neto
[Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP]
Cons.: Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 309, cj. 73 –Vila Olímpia
Tel: 11 3045-3082
04544-000 São Paulo, SP
e-mail: naffahneto@gmail.com

 

Recebido em 1.10.2009,
aceito em 27.10.2009

 

 

1Este artigo contou com a leitura inicial do colega e amigo Luis Cláudio Figueiredo, a quem agradeço as sugestões.
2 Psicanalista, Mestre em Filosofia pela USP, Doutor em Psicologia Clínica pela PUCSP, Professor Titular da PUCSP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, autor de vários artigos e livros sobre psicanálise e música, principalmente.
3 Estou falando aqui da psicanálise compreendida como uma disciplina que implica, ao mesmo tempo, um corpo teórico e um conjunto de técnicas terapêuticas. Pois a teoria psicanalítica, entendida como ferramenta teórica de interpretação da sociedade e da cultura, está disponível para quem dela quiser fazer uso: filósofos, artistas, críticos de arte etc. Para tanto, não é necessário tornar-se um psicanalista.
4 Mesmo autores como Winnicott, que pressupõe que a sexualidade humana não existe desde o início de vida, mas necessita se constituir ao longo do desenvolvimento infantil – na medida em que o self do bebê vá se apropriando dos impulsos e sensações eróticos e dos impulsos agressivos (que, num primeiro tempo, seriam vividos com exteriores ao mesmo) – não negaria tal postulado. Pois, para ele, ainda que os primeiros tempos da vida do bebê sejam basicamente regidos por suas necessidades biológicas (acolhidas e sustentadas por um ambiente suficientemente bom), uma das metas básicas do desenvolvimento infantil é a apropriação e fusão dos impulsos eróticos-agressivos na constituição de uma sexualidade infantil. Ele nos diz: "Não há nenhuma possibilidade, em qualquer sentido, de que uma criança cujo ambiente é insuficientemente adaptado às suas necessidades – próximo ao início de vida –, possa alcançar um estado de fusão entre a agressividade (que faz com que as relações objetais sejam vividas como reais e produz a externalidade dos objetos em relação ao self) e os desejos eróticos (que carregam a capacidade para a satisfação libidinal)" (Winnicott, 1959-1964, p. 127). Ou seja, sem a apropriação e fusão dos impulsos eróticos-agressivos pelo self, as relações objetais não serão vividas como reais, não se conseguirá diferenciar um mundo interno de um mundo externo, nem constituir a experiência do prazer.
5 A interpretação da transferência constitui, por assim dizer,a ferramenta mor da técnica psicanalítica padrão. Há, entretanto, autores como Lacan ou Winnicott que propõem, por diferentes razões, manejos transferenciais. Os lacanianos usam, muito frequentemente, o que denominam ato analítico, que não constitui uma interpretação, mas uma espécie de ruptura de campo capaz de produzir ressonâncias que ampliam o escopo associativo do paciente. Já Winnicott propõe um manejo transferencial sempre que o paciente necessita constituir, via transferência, experiências que ficaram truncadas ou impedidas na sua história original, em função de um ambiente pouco acolhedor. N esse caso, o mais importante é que o ambiente analítico possa fornecer holding para que essas experiências possam acontecer, sendo a interpretação supérflua.
6 Há inúmeras linhagens teórico-clínicas que atravessam o campo psicanalítico, com várias ramificações. À guisa de exemplo, cito algumas delas: Freud-Lacan-Mannoni ou Dolto ou Aulagnier; Freud-Abraham-Klein-Bion; Freud-Ferenczi-Klein-Winnicott; Freud-Klein/Bion/Winnicott/Lacan-Green etc.
7 Já expus, num outro texto, essas limitações e, por essa razão, não pretendo entrar aqui no seu mérito, já que elas não têm a ver com a temática do presente artigo. A quem possa interessar, indico o meu texto "Do psicodrama à psicanálise: o sentido de uma trajetória" (Naffah N eto, A. 1998).
8 Esse foi um período em que trabalhava numa clínica basicamente de terapeutas corporais (de linhas neorreichianas) e achei que o trabalho que Reich realizava com os pacientes, nos primeiros tempos, por meio de massagens, desbloqueando tensões corporais, poderia me ser útil. Por sorte, realizei essa experiência somente com 1 ou 2 pacientes, pois vim a perceber que ela criava situações transferenciais de difícil manejo. Na verdade, eu tentava levar em conta, no plano da técnica, a importância que N ietzsche dava ao corpo na constituição do psiquismo. Mais tarde, pude descobrir que Winnicott considerava a dimensão corporal numa importância equivalente, sem que se necessitasse trabalhar diretamente com ela, por meio de manipulações.
9 Hoje, o grupo já funciona há cerca de 15 anos e tem a seguinte composição: Luis Cláudio Figueiredo, N elson Coelho Jr., Eveline Alperowitch, Olga Pires de Camargo, Marianna Schontag, Mauro Meiches, Octavio Souza, Paulo de Carvalho Ribeiro, Patrícia Gertlinger, Marion Minerbo, Ignácio Gerber e Daniel Kupermann, além da minha pessoa. Que eu saiba, somente 03 desses membros são filiados a alguma entidade psicanalítica: Marion Minerbo e Ignácio Gerber à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e Daniel Kupermann, à Formação Freudiana do Rio de Janeiro. Por outro lado, temos aí presentes diferentes linhagens teórico-clínicas.
10 Aí, embora, por um lado, eu tivesse de recorrer a Winnicott – já que o material psíquico trazido pelas associações livres da paciente me levava a ele, sem nenhuma sombra de dúvida –, por outro, recuperava o procedimento clássico freudiano de me guiar pelas associações livres da paciente, método do qual já fora um tanto quanto afastado pela escola kleiniana (que sempre remete tudo à transferência). Isso provavelmente tornou-me, como psicanalista, mais aberto e sintônico às necessidades da paciente.
11 A obra de Winnicott é uma obra inacabada – portanto, que demanda pesquisa – em, pelo menos, dois sentidos. Primeiramente, porque a morte veio privá-lo de dar uma forma teórica mais delineada ao desenvolvimento das suas concepções psicopatológicas que permaneceram, em parte, em estado embrionário; em segundo lugar, porque elas encontram-se espalhadas ao longo de toda a obra e é preciso um longo trabalho para reuni-las e darlhes um sentido coerente. Em função disso, Winnicott, é muitas vezes tomado erroneamente como um grande clínico com uma teoria pouco consistente. Nada poderia ser menos verdadeiro do que isso; é que os seus textos – que operam por meio de uma lógica do paradoxo – geralmente enganam o leitor que – habituado que está à racionalidade aristotélica –, pensa que entendeu tudo quando, grande parte das vezes, não entendeu nada.
12 Uma segunda linha de pesquisas que tenho desenvolvido envolve temas articulando psicanálise e música, em várias dimensões. Isso devido ao fato de ter um grande interesse musical, especialmente ligado à música popular a ao canto lírico. Também tenho publicado ensaios ligados a essas questões (Naffah N eto, 2004; Gerber & N affah Neto, 2007).
13 Por exemplo, a interpretação da transferência, muito embora continue sendo a pedra angular da técnica psicanalítica, foi ganhando novas formas e novos contornos a partir dos autores que continuaram o trabalho de Freud, como Ferenczi, Paula Heimann, Winnicott etc. É evidente, nesse sentido, que o uso (ou não) da contratransferência como fonte de informações na produção da interpretação analítica sofreu problematizações diversas, desde então, que alteraram sobremaneira o estatuto dessa questão no âmbito da instituição psicanalítica.

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