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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.4 São Paulo  2009

 

TEMÁTICOS

 

A SPMS e a IPA: sonhos, encontros e desencontros1

 

La SPMS y la API: sueños, encuentros y desencuentros

 

The SPMS and IPA: dreams, convergence and divergence

 

 

Gleda Brandão Coelho Martins de Araújo 2

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho a autora relata as relações entre a Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul (SPMS) e a Associação Psicanalítica Internacional (IPA), percorrendo uma linha transversal na história da sociedade desde o período "pré-psicanalítico" até os dias atuais. Divide o percurso em três tempos: o período sem a presença da IPA, o período da presença indireta da IPA e, finalmente, o período em que a relação direta com a IPA se estabeleceu.

Palavras-chave: psicanálise; história; movimento psicanalítico; instituição psicanalítica.


RESUMEN

En esta obra la autora relata la relación entre la Sociedad Psicoanalítica de Mato Grosso do Sul (SPMS) y la Asociación Psicoanalítica Internacional (API) a lo largo de una línea transversal en la historia de la sociedad desde el periodo "pre-psicoanalitico" hasta los dias atuales. Divide el recorrido en tres etapas: el período sin la presencia de la API, el período de la presencia indirecta de la API y, finalmente, el período en que se estableció la relación directa con la API.

Palabras clave: Psicoanálisis; historia; movimiento psicoanalitico, institucion psicoanalitica


ABSTRACT

In this paper the author talks about the relationship betweeen Mato Grosso do Sul Psychoanalytical Society (SPMS) and International Psychoanalytical Association (IPA) following a transversal line in the society history since the "pre-psychoanalytical" period until the current days. She divides this description into three different periods: the period without IPA, the one with the indirect existence of IPA and finally the period in which the direct relationship with IPA was established.

Keywords: psychoanalysis; history; psychoanalytic movement; pscyhoanalytic institution


 

 

Virar esse mundo
Cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão.

(Sonho Impossível, Joe Darion, Mitch Leigh, versão em português de Chico Buarque)

 

Para falar sobre as relações entre a SPMS e a IPA faz-se necessário traçar a história do movimento psicanalítico em Campo Grande desde o período pré-psicanalítico até os dias atuais. Pode-se localizar o início da atual sociedade com a chegada da dra. Marila Teodorowic a Campo Grande, em 1971, após longo período de estudos no Rio de Janeiro, de onde retornou psiquiatra e psicanalista formada pela SPRJ.

No início dos anos 1970, período anterior à divisão do Estado, Campo Grande ainda era um município do Estado de Mato Grosso que, em decorrência de sua excelente localização, no centro do Estado, havia crescido e prosperado com o comércio de gado, pois daqui partiam comitivas levando boiadas para o Triângulo Mineiro, Paraná, São Paulo e Paraguai, o que criou possibilidades de intercâmbio comercial. Esse intercâmbio foi ampliado para outros Estados e para a Bolívia com a chegada, em 1914, da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, incrementando a vocação agropecuária do município.

Outra consequência da integração e do desenvolvimento promovidos pela Estrada de Ferro foi a chegada à Campo Grande de contingentes de imigrantes provenientes de outros Estados e de outros países, destacando-se a imigração libanesa e japonesa. Essa diversidade de povos e culturas deu à cidade características peculiares, tanto que nesse período era conhecida como uma ilha de "turcos" cercada de japoneses por todos os lados, pois os imigrantes libaneses, fixados na região urbana, dedicavam-se preferencialmente ao comércio, e os japoneses, tendo se estabelecido no entorno da cidade, cultivavam frutas e hortaliças.

No entanto, a primeira instituição de ensino superior começou nos anos 1960, as Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (FUCMT), atualmente Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). N a mesma década foi criada a Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT), com um de seus campi instalado em Campo Grande com cursos nas áreas de saúde e ciências exatas. Após a divisão do Estado a UEMT foi federalizada, tornando-se a atual Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Foi nesse cenário, uma cidade de raízes agropecuárias, com uma organização social patriarcal e distante geográfica e culturalmente dos grandes centros, que a dra. Marila começou sua jornada profissional em Campo Grande, portanto, num aparente "impossível chão", à primeira vista impróprio para se fazer germinar a psicanálise. Convidada para assumir a cadeira de Psicologia Médica, na então UEMT, surgiu a oportunidade de apresentar a psicanálise no meio científico, que na época não era conhecida na região nem pelos profissionais de saúde mental. Em um trabalho por ela apresentado em 1999, durante o Congresso Brasileiro no Rio de Janeiro disse:

Era impossível fazer apenas psicanálise. Eu tinha entrado numa terra virgem, cheia de preconceitos, onde os próprios colegas nos tratavam à distância, onde as situações eram sexualizadas e, principalmente, onde ninguém falava a minha língua. A psiquiatria ainda era vista como algo só para loucos; psicanálise ninguém sabia o que era. Os próprios pacientes nos pediam um horário ao entardecer, uma vez que não queriam ser vistos entrando no consultório de um psiquiatra.

O início do curso de Psicologia, em 1977, na Faculdade Católica representou um marco na difusão do pensamento psicanalítico, visto que a dra. Marila assumiu várias disciplinas como Psicologia Social, Teorias da Personalidade e Teorias e Técnicas Psicoterápicas. Além disso, abriu vagas de estágio em psicologia em uma clínica psiquiátrica, o que atraiu acadêmicos interessados em conhecer e se aprofundar no conhecimento das teorias psicanalíticas.

Originou-se daí um grupo de estudos sobre Freud, com discussões semanais de casos clínicos. O interesse que não foi demonstrado pelos acadêmicos de medicina pôde ser visto entre os estudantes de psicologia, que demonstraram grande avidez e entusiasmo pela psicanálise.

Gradativamente os integrantes do grupo foram tendo a noção do que era uma formação psicanalítica e da necessidade de submeterem-se a uma análise pessoal. Essas questões foram gerando algumas tensões por vezes difíceis de serem contornadas, mas que não impediram que o grupo de estudos evoluísse para um curso de psicoterapia de base analítica, fato que foi facilitado com a vinda do dr. Fábio Leite Lobo, membro da SPRJ, para Campo Grande, em 1980.

Sendo o dr. Fábio analista didata, pareceu naquele momento que uma formação dentro dos padrões da IPA poderia se realizar, e ele propôs à SPRJ encampar a ideia de um grupo formador em Campo Grande, obtendo uma negativa como resposta. Obstinado, o dr. Fábio buscou outros caminhos, mas, infelizmente, faleceu no início de 1981, sem realizar seu sonho e de muitos. Em seguida, chegou a Campo Grande outro analista da SPRJ, dr. Clodoaldo Frizon, que para cá se mudara por questões pessoais e, portanto, sem compromisso com os anseios do grupo. O dr. Clodoaldo aceitou para análise vários componentes do grupo de estudos, que na época já tinha uma identidade – CESMAPPID.

Nesse momento a dra. Marila entrou em contato com a SPRJ sondando a possibilidade de essa sociedade iniciar um núcleo em Campo Grande, mas também recebeu uma negativa, pois seriam necessários dois analistas didatas residindo em Campo Grande, o que na época era pouco provável de se conseguir. Assim, a distância de mil e poucos quilômetros dos centros formadores multiplicava-se pelos incontáveis obstáculos, transformando a distância quilométrica em uma distância astronômica, tornando o sonho de uma formação standard cada vez mais longe, inatingível.

Paralelamente, outros grupos de estudos de orientação psicanalítica foram surgindo: grupo de estudos sobre infância, sobre grupos e sobre casal e família. Somando-se a tudo isto havia o fato de Campo Grande ter se tornado, desde 1979, capital do recém-criado estado de Mato Grosso do Sul, atraindo novos investimentos e proporcionando um grande crescimento para a cidade, com o incremento e criação de novas universidades e oportunidades de trabalho.

Esse grupo pioneiro manteve-se firme no propósito de encontrar uma instituição que lhe desse filiação e propiciasse uma identidade psicanalítica. Diante das seguidas negativas da SPRJ, bem como de outras tentativas frustradas de reconhecimento, o grupo procurou o Círculo Mineiro de Psicanálise, tendo inclusive recebido a visita de seu presidente. Se, por um lado, a afiliação ao Círculo Psicanalítico daria uma identidade por tantos anos almejada, por outro, parecia ao grupo uma identidade "menor", tanto que havia uma brincadeira: "já que não era possível ter uma bicicleta, ter-se-ia um patinete".

Mas a identificação com os pioneiros estava cobrando maiores esforços e o sonho de uma formação psicanalítica, tradicional e legítima, sob a chancela da IPA, acalentado por diversos integrantes dos grupos existentes ia sendo elaborado: o desejo de sermos reconhecidos também como herdeiros de Freud. (Araújo e Araújo, 2000)

Possivelmente, pelo temor da perda de algo que nem sequer havia se constituído, a SPRJ se mostrou nesse momento complacente ao desejo do grupo e ao novo pedido da dra. Marila e, com apoio de diversos membros daquela sociedade, em agosto de 1989 o dr. Antonio Dutra Jr. veio a Campo Grande para encontrar-se com os interessados em uma formação psicanalítica. N aquele mesmo ano, abriram as inscrições e foi feita a seleção. Em janeiro de 1990, com o patrocínio do Instituto de Psicanálise da SPRJ, foi fundado o Núcleo Psicanalítico de Mato Grosso do Sul, com 17 candidatos selecionados e 3 analistas em função didática, além da dra. Marila que aqui residia, se fixaram em Campo Grande a dra. Geny Hazan e o dr. José Izaí.

Portanto, a partir desse marco, a IPA deixou de ser um sonho distante e impossível, mas ainda era uma relação indireta, já que chegava até o núcleo por meio da sociedademãe. Tinha-se certeza da presença da IPA por se acreditar que a formação aqui oferecida seguia os critérios estabelecidos e aceitos pela Associação Internacional.

A primeira comissão coordenadora do Núcleo, presidida pelo dr. Antônio Dutra Jr., tomou ciosamente a tarefa de organizar e desenvolver o Núcleo. Para tal, essa comissão achou por bem vetar aos analistas didatas as funções administrativas, cabendo aos candidatos recém-selecionados exercer não só as tarefas administrativas locais de secretaria e tesouraria, como também as tarefas científicas, coordenar a Comissão de Assistência Psicológica e a Comissão Científica. Cabia também aos candidatos todo o ônus financeiro da manutenção do Núcleo. Essa atitude, que teve como objetivo primordial preservar as análises, cobrou seu preço e novas tensões e conflitos surgiram. A condição de filhos-parentais vivida pelos candidatos impôs uma dor difícil de tragar para todos os implicados no processo de constituição da instituição.

As condições precárias de pioneirismo incrementaram, sem dúvida, a intensidade das angústias vividas por todos do grupo. A tarefa de desbravar interna e externamente regiões novas e desconhecidas impõe uma cota de sofrimento a mais. Por outro lado, constata-se que as crises fazem parte da formação psicanalítica e são a ela inerentes. A própria psicanálise não pode ser entendida fora da dimensão do conflito. Desejo e possibilidade de realização estão sempre presentes. (Araújo e Araújo, 2000)

A identidade e a afiliação tão almejadas e tenazmente buscadas pareciam tão distantes quanto sempre estiveram. O solo, que em um primeiro momento de euforia, parecera fértil, ameaçava continuar um "chão impossível" de germinar qualquer coisa. O grupo se via invadido por angústias catastróficas e ameaças de aniquilamento diante de qualquer fato novo.

A insegurança era potencializada pela vivência narcísica onipotente de que os candidatos eram "autossustentáveis" e se bastavam. A todo instante uma ameaça por vezes velada e por outras vezes explícita da SPRJ fechar o Núcleo surgia. Como agravante para essa insegurança, o Núcleo não tinha uma sede e a sociedade-mãe se fazia presente apenas pelos diferentes coordenadores dos seminários e pelas reuniões semestrais com o coordenador do Núcleo. Estando a primeira geração à parte, para manter as análises pessoais preservadas, o grupo societário ficava com dificuldades de discernir os modelos parentais, com a ideia inimaginável de uma sociedade que poderia ser gerada por partenogênese.

O grupo de candidatos dedicou-se com afinco à formação, e os seminários eram repletos de discussões teóricas infindáveis e estéreis, pois ao mesmo tempo a criatividade estava bloqueada, e a produção científica era muito pobre, quase inexistente. Todo o investimento do grupo era canalizado para manter a coesão grupal e cumprir a tarefa de levar a cabo a formação, pelo menos em seus aspectos formais. Sem uma noção clara de como funcionava uma instituição psicanalítica, o grupo de candidatos se mantinha a procura de modelos societários, além do que a sociedade-mãe se encontrava a quase 2000 km de distância, o que propiciava mais um modelo idealizado e persecutório da sociedade-mãe.

Em fevereiro de 1992, uma nova crise institucional foi deflagrada com a saída de uma analista didata que tinha sob sua responsabilidade a análise de vários candidatos. Essa crise redundou na renúncia da Comissão Coordenadora da época e na instalação de uma Comissão de Ética. Uma nova comissão coordenadora, presidida pelo dr. Carlos Roberto Saba, assumiu, tendo como objetivo claro a reestruturação do Núcleo, estabelecendo limites necessários para que os candidatos assumissem o papel de candidatos.

Como a nova Comissão Coordenadora retirou dos candidatos parte das funções administrativas e passou a realizar reuniões com os analistas didatas, a segurança e a confiança foram restabelecidas no grupo. Como resultado desta função estruturante, houve a intensificação das atividades do Departamento Científico e do Departamento de Assistência Psicológica, agora dirigidos pelos membros da Comissão Coordenadora, que se voltaram para fora da sociedade, com o objetivo de divulgar a psicanálise.

Assim, tornou-se possível aos candidatos dedicarem-se à formação, e iniciarem suas supervisões oficiais com a vinda da dra. Galina Schneider e do dr. Antonio Dutra Jr. na função de supervisores.

Em 1994, abriram-se inscrições para a segunda turma de formação e 12 candidatos foram selecionados. No mesmo ano, a psicanalista Márcia Câmara afiliou-se ao Núcleo e, após ter obtido o direito de exercer a função didática, pôde conduzir a análise de candidatos.

No final de 1995, os agora 15 candidatos da primeira turma do Núcleo Psicanalítico de Mato Grosso do Sul concluíram sua formação e requereram sua entrada na SPRJ como membros associados, sendo referendados na Assembleia Geral daquela sociedade em janeiro de 1996.

Fazendo uma avaliação desta jornada, pudemos reconhecer nossa afiliação à SPRJ e sermos por ela reconhecida. A Instituição possibilitou elementos que favoreceram a integração do N PMS, dando um sentido real ao significado da formação. (Araújo e Araújo, 2000)

Nesse momento, uma grave crise se abateu sobre a SPRJ que, chamada a prestar contas de seu passado, teve que enfrentar diversos fantasmas que a assombravam. Novamente o clima de insegurança e terror foi vivenciado pelo Núcleo, pois seu reconhecimento pela IPA se dava por meio da sociedade-mãe que, ameaçada de sofrer uma intervenção com desdobramentos imprevisíveis, não poderia dar mais ao Núcleo a sustentação necessária para continuar sua caminhada rumo ao crescimento.

Em 1996, o Núcleo, compôs sua primeira diretoria local, embora ainda não tenha sido de maneira democrática pelo voto, mas por consenso entre os analistas didatas que pertenciam ao NPMS.

Desta forma, mesmo mantendo a ligação com a sociedade-mãe, apesar de mais distante naquele período, houve um grande empenho por parte de todos, e sobretudo da dra. Galina Schneider, de que o NPMS solicitasse à IPA o status de Grupo de Estudos. Foi feita a solicitação no final do ano de 1996 e, em abril de 1997, o NPMS foi visitado por uma comissão designada pela IPA da qual faziam parte o dr. Heitor Gunther Perdigão o dr. Rodolfo Moguillansky, que tinham como objetivo avaliar as condições locais e os recursos do grupo que agora teria a longa e árdua tarefa de se estruturar e se organizar para vir a ser sociedade componente da IPA.

Finalmente, em julho de 1997, no Business Meeting do XL Congresso Internacional em Barcelona, o NPMS mudou de status e passou a ser Grupo de Estudos Psicanalíticos de Mato Grosso do Sul – GESP-MS. Após a passagem oficial a Grupo de Estudos, embora os membros tivessem que permanecer afiliados à SPRJ, o contato com a IPA finalmente se fazia de forma direta e, em novembro, o GESP-MS recebeu o primeiro site visit sendo o Sponsoring Committee formado pelo dr. Heitor Gunther Perdigão (chair), de New Orleans, dr. Pablo Cuevas Corona, da Cidade do México e dr. Rodolfo Moguillansky, de Buenos Aires.

O Sponsoring Committee deixava em parte o grupo livre para seguir seu caminho e se desenvolver ao seu modo, apenas a Comissão de Ensino, se mantendo estreitamente ligada ao comitê nas tarefas e deliberações referentes à formação psicanalítica da segunda turma. A Comissão de Ensino era dirigida por um analista didata com o auxílio de dois membros associados.

Possivelmente pelo tipo de organização que imperava no GESP-MS, e também pelas diferenças e rivalidades entre os didatas, as divisões dentro do grupo que antes ficavam veladas e eram fortemente negadas pela própria ilusão grupal de uma coesão que havia sido necessária no passado, passaram a ser explicitadas, e novamente o clima persecutório tomou conta do grupo. As visitas do Sponsoring Committee perderam parte de seu caráter normativo e organizador para se tornarem quase disparadores de uma batalha campal com acusações de todos os lados.

Tal clima chegou ao ápice quando, em maio de 1998, o Sponsoring Committee retirou a função didática de uma analista, o que redundou no afastamento de outro analista didata. O Comitê também convidou quatro membros associados, que dirigiam o Departamento de Assistência Psicológica, a assumirem a função de supervisores ad hoc e também a dirigirem a Comissão de Ensino, com a ajuda das duas analistas didatas remanescentes. Foi criado um grupo especial para estudar supervisão, objetivando apoiar os membros recéminstituídos nessas funções didáticas.

A nova Comissão de Ensino trabalhou bravamente, tentando adaptar as necessidades locais e a produção que já havia sido realizada à criação de um programa formal de ensino, considerando útil a contribuição de professores reconhecidos em outras instituições da Associação Brasileira de Psicanálise, para favorecer o intercâmbio com outros modelos identificatórios. Nossas identidades profissionais também foram colocadas à prova. Em um curto espaço de tempo fomos promovidos ou convidados a cuidar de candidatos enquanto ainda tentávamos criar, ou dispor em uma nova ordem, o que havíamos herdado da SPRJ que, como tentamos mostrar acima, também nos constituiu dentro das possibilidades e circunstâncias da época. (Araújo e Araújo, 2000)

Se, por um lado, as deliberações do Sponsoring Committee protegeram o grupo e permitiram que a formação dos candidatos não fosse interrompida, por outro, impôs diferenças entre os colegas, aumentando as cisões e a desconfiança. As angústias aterrorizantes de aniquilamento e a desagregação pareciam ter chegado ao limite do insuportável.

Alguns movimentos grupais puderam ser percebidos: o grupo que estava na direção da instituição, que também era cindido, buscava caminhos opostos, acirrando rivalidades e aumentando as cisões internas e ainda alguns membros se afastaram de toda e qualquer atividade societária.

O clima beligerante era perene e perpassava por todas as relações institucionais, muito embora as contendas se dessem por situações corriqueiras, encobriam um conflito de gerações com lutas pelo poder e diferenças marcantes entre as premissas que embasavam o trabalho institucional.

Mesmo assim o grupo continuou cumprindo com suas funções e com as atividades de ensino e transmissão da psicanálise, tanto dentro como fora da instituição. Em 1999, houve uma mudança no Sponsoring Committee, com a saída do dr. Moguillansky e a entrada do dr. Marcos Gheiler, do Peru. Outro aspecto importante é que vários membros do GESP-MS começaram a se interessar e buscar a progressão institucional e, assim, em 1999, foram aceitos como efetivos seis membros, sendo gradualmente seguidos pela maior parte dos associados.

Foi de fundamental importância o papel do Sponsoring Committee em proporcionar uma abertura de horizontes, com ampliação do conhecimento psicanalítico e a inserção da instituição no meio político, além de terem oferecido alternativas para organizá-la, colocando- a em uma posição de vanguarda, com vários aspectos inovadores.

Este fato, além de fortalecer a instituição, levou alguns membros a participarem de atividades tanto em nível nacional como em nível latino-americano, sentindo-se assim reconhecidos por seus pares, sentimento esse que era partilhado por todo o GESP-MS. Vale ressaltar o papel fundamental que teve a Federação Brasileira de Psicanálise (na época ainda ABP) pelo apoio e pela presença em Campo Grande nos simpósios bianuais.

No final de 2000, três membros efetivos solicitaram ao Sponsoring Committee, a função didática, apresentando trabalhos clínicos e sendo aprovados para tal função. A esses se seguiram vários colegas interessados em continuar a ter uma participação mais ativa e presente no Instituto.

Como uma das consequências dessa abertura e das progressões dos membros, parte deles foi se dando conta que um processo democrático que proporcionasse aos membros a oportunidade de se exporem, de votarem e serem votados, seria um passo crucial na caminhada para vir a ser uma sociedade plena. Como era de se esperar a reivindicação gerou uma nova crise levando à renúncia da presidente. O Sponsoring Committee mostrou-se pouco continente aos anseios dessa parte significativa do corpo societário e, certamente para evitar uma desagregação, indicou um novo presidente e propôs uma comissão para estudar a possibilidade das eleições. N o final de 2002, o GESP-MS realizou suas primeiras eleições, que ocorreram durante um dos site visits.

Essa mudança foi fundamental na história da instituição, e mesmo com algumas dificuldades, divergências e afastamentos, o grupo entrou em um período de tranquilidade, com aumento das atividades científicas e de ensino. Uma seleção havia sido feita em 2001 e duas turmas estavam iniciando o processo de formação. É importante salientar, também, a mudança no clima dos site visits, já que as questões institucionais internas eram debatidas nas reuniões do Conselho Diretor, sendo apresentados ao Sponsoring Committee apenas os resultados e as soluções. O site visit passou a ser um momento utilizado para reuniões de trabalho, com projetos e planos de futuro, além de atividades científicas.

O GESP-MS já estava maduro para solicitar mudança de status, e após um árduo trabalho na preparação e envio de currículos e de relatórios de atividades de todos os departamentos, foi recebida a notícia da aprovação do pedido. No Business Meeting do XLIV Congresso Internacional de Psicanálise no Rio de Janeiro em 2005, a então presidente do GESP-MS, Leila Tannous Guimarães, recebeu das mãos do presidente da IPA, dr. Daniel Widlöcher, o certificado de Sociedade Provisória.

Por decisão da IPA o Liaison Committee foi composto pelos mesmos membros que haviam participado do Sponsoring Committee. A partir desse momento as visitas foram anuais, e na realidade foram feitas apenas duas, pois como a Sociedade estava funcionando plenamente, com um número de membros associados, efetivos e em função didática dentro dos parâmetros exigido pela IPA, foi possível solicitar, em 2006, a passagem a Sociedade Componente, solicitação aprovada e, no Business Meeting do XLV Congresso Internacional de Psicanálise em Berlim no ano de 2007, a presidente da SPMS (provisória), Gleda Brandão de Araújo recebeu das mãos do presidente da IPA, dr. Claudio Eizirik, o certificado que atestava que a SPMS era agora uma Sociedade Componente da IPA.

Fundar uma instituição, fazê-la funcionar, transmiti-la, tudo isso só pode ser sustentado por organizadores inconscientes que trazem consigo desejos que a instituição permite realizar. (Kaës, 1988)

Fiel ao compromisso assumido ao tornar-se uma Sociedade Componente, a SPMS agora mais independente e forte, vem podendo estender seu raio de ação, com propostas e planos de transmissão da psicanálise para fora das fronteiras do Estado. Tem buscado o diálogo com outras áreas do saber e vem desenvolvendo projetos arrojados e inovadores, visando o aprimoramento de seus membros e instrumentalizando-os para lidar com os crescentes desafios que a psicanálise vem enfrentando nos dias atuais.

Este historial percorreu os mais de vinte anos do percurso da psicanálise em Mato Grosso do Sul, que partiu de um pequeno movimento organizado amadoristicamente até sua institucionalização e amadurecimento. Ele pretendeu, dentre tantas coisas, dar um testemunho da luta heróica e persistente de um grupo de pessoas que acreditou em seus sonhos, e com o apoio primeiramente da SPRJ, sociedade-mãe, e posteriormente da Associação Psicanalítica Internacional, conseguiu seu objetivo maior. As palavras do poeta, também sul mato-grossense, certamente poderão exprimir melhor as pretensões deste artigo:

Escrever nem uma coisa Nem outra –
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar –
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

(Manoel de Barros, 1989)

 

Referências

Araújo, G. & Araújo, L. (2000). A construção de um Instituto de Ensino. Trabalho apresentado no IV Encuentro Latinoamericano de Institutos de Psicoanálisis, Caracas, 19-20/5/2000.         [ Links ]

Barros, M. (1989). Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada. In: O guardador de águas. São Paulo: Civilização Brasileira, 1989.         [ Links ]

Canale, A. et al. (1995). O movimento psicanalítico em Campo Grande, MS: História de uma formação ou a formação de uma história. Trabalho apresentado como Tema Livre no XV Congresso Brasileiro de Psicanálise, Recife.         [ Links ]

Darion, J. & Leigh, M. Sonho impossível. Versão em português de Chico Buarque. Disponível em: http:// letras.terra.com.br/chico-buarque/86054/        [ Links ]

Guimarães, L. & Rezende, S. (2005). Presidency and Secretary Report.         [ Links ] Kaës, R. (1988). Realidade psíquica e sofrimento nas instituições. In: A instituição e as instituições: estudos psicanalíticos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989.         [ Links ]

PortalMS. História de Campo Grande. Disponível em http://www.portalms.com.br/canais/Historia-de- Campo-Grande/        [ Links ]

Teodorowic, M. (1999). História do movimento psicanalítico em Campo Grande – Mato Grosso do Sul. Trabalho apresentado no XVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro.

 

 

Endereço para correspondência
Gleda Brandão de Araújo
[Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul SPMS e Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro SPRJ]
Rua General Odorico Quadros, 605
79020-260 Campo Grande, MS
e-mail: gleda@terra.com.br
Tel: 67 3326-3594

Recebido em 4.11.2009,
aceito em 10.11.2009

 

 

1 Este trabalho foi feito com o auxílio de vários outros que foram escritos por alguns membros da SPMS no decorrer desses anos, e mesmo sendo citados nas referências os considero coautores do presente trabalho. São eles: Marila Teodorowic; Ângela Maria Lobo Sollberger; Lenita Osorio Araujo; Leila Tannous Guimarães; Maria Fernanda Marques Soares; Márcia Regina Mendes; Sandra Lucia Barsaglin Rezende. Gostaria de fazer um agradecimento especial a Maria Fernanda Marques Soares pelas sugestões e auxílio na realização do artigo.
2 Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul SPMS e da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro SPRJ. Analista em função didática do IP da SPMS.Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ. Representante no Board da International PsychoAnalytical Association, um dos eleitos da América Latina.

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