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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.4 São Paulo  2009

 

INTERCÂMBIO

 

Algumas ideias a respeito da IPA 100 anos após a sua fundação

 

Algunas ideas sobre la API 100 años después de su fundación

 

Some ideas regarding the IPA 100 years after its foundation

 

 

Stefano Bolognini 1

Sociedade Psicanalítica Italiana SPI

Endereço para correspondência

 

É uma honra poder participar deste debate e trazer uma contribuição, cujo resultado, espero, seja não convencional, uma vez que nasce da troca de ideias com colegas de vários continentes durante esses ricos anos de encontro e trabalho conjunto na IPA. Considero um privilégio fazer parte da nossa associação internacional, e na segunda parte desta comunicação explicarei por que penso assim; mas primeiramente desejo revisar alguns dos aspectos da situação atual da psicanálise para descrever de modo geral a condição em que operamos como profissionais singulares, pesquisadores científicos e membros de uma comunidade de colegas.

Não tenho dúvidas de que o momento histórico em que estamos é crucial: a psicanálise está vivendo desenvolvimentos contraditórios, em parte muito positivos e em parte muito inquietantes.

Do meu ponto de vista, os aspectos positivos são dados por:

• a efetiva internacionalização da comunidade psicanalítica, sempre mais rica de contatos e de trocas científicas férteis entre analistas de diversas nações e escolas;

• a extensão de nossas perspectivas clínicas a novos tipos de patologia, agora abordáveis por instrumentos psicanalíticos mais articulados, graças à expansão do campo teórico cujas consequências são extremamente úteis para a clínica;

• a ampla mudança do clima das discussões no ambiente científico, no interior de nossa comunidade científica: um clima que hoje é muito mais aberto, compreensivo e tolerante do que já foi no passado no tocante à diversificação.

• a aceitação da pluralidade dos modelos de formação, substanciados em decisões tomadas pelo Board da IPA, reconhecendo a existência de diversas escolas e linhas de desenvolvimento formativo – porém, no âmbito de Standards compatíveis – no interior das várias áreas continentais e nacionais;

• a diminuição de tendências a idealizar e monopolizar este ou aquele autor, com mais consciência da riqueza proporcionada pela cultura da "família ampliada" e com menos pretensão a aderir de modo militar ou para-religioso a um modelo preferentemente a outro;

• e pela progressiva difusão da psicanálise em áreas geográfico-culturais nas quais até há poucos anos teria parecido ficção científica falar de nossa disciplina…

Creio que uma parte notável desses progressos deve ser atribuída à política de verdadeira internacionalização, dinâmica e respeitadora das diversas identidades, conduzida nestes anos pelo Executivo da IPA dirigido por Claudio Eizirik, que prosseguiu a política reformista iniciada por Daniel Widlocher e incrementou-a com novas iniciativas, com aberturas intercontinentais verdadeiramente inovadoras.

Fazemos votos para que os próximos Presidentes também caminhem nesta direção.

Os aspectos inquietantes, ou até mesmo negativos, são por sua vez constituídos por:

• a diminuta influência da psicanálise sobre a cena cultural de muitos países desenvolvidos, devido a vários fatores (modas, competições por parte de outros grupos terapêuticos), mas, sobretudo, a fenômenos temporais de rejeição generalizada à dependência profunda e prolongada inerentes a uma verdadeira relação de cura;

• o forte investimento, por parte das estruturas sanitárias e universitárias, em terapias biológico-farmacológicas e em terapias breves superficiais (cognitivistas, behaviouristas etc.) que iludem os administradores quanto à possibilidade de economizar orçamentos, e os pacientes quanto à possibilidade de conseguir mudanças rápidas, com pouco gasto e quase nenhuma interdependência de um objeto emocionalmente importante, como é um analista (para quem a crescente dificuldade de motivar os pacientes para um tratamento analítico autêntico e genuíno, chamando-se atualmente de "análise" a qualquer tipo de tratamento psicoterápico e de "analista" a qualquer tipo de terapeuta que tenha um divã).

• do perigo, sempre presente, que no interior da IPA se verifique um refluxo tradicionalista- normativo, uma espécie de efeito reativo às mudanças e às aberturas desses últimos anos, restaurando modalidades e critérios rígidos de valorização e gestão dos eventos e dos procedimentos comunitários e, na realidade, sabotando o reconhecimento da pluralidade e das diferenças, e a produção de desenvolvimentos e transformações na psicanálise.

A IPA demonstrou, nesses últimos anos, a tendência intrínseca de evoluir como um organismo científico, profissional formativo inteligente, não rígido, capaz de reconhecer mudanças internas e externas em curso e de acolher seus aspectos positivos.

Essa capacidade evolutiva não deve ser perdida de forma alguma.

A IPA é a sede institucional na qual a identidade analítica, em mudança contínua e inevitável, poderá ser transformada, também no futuro, de acordo com os tempos, as mudanças culturais e os desenvolvimentos científicos; e confirmada mesmo, graças à sua dimensão organizativa mundial, que a caracteriza em relação a todas as outras associações concorrentes.

A diferente atmosfera de trabalho nos panels dos últimos congressos da IPA demonstrou que, em nosso interior, as coisas estão mudando para melhor: há um tempo, cada speaker "cantava a sua canção" de modo isolado e ignorava ostensivamente aquilo que era dito por outros speakers; agora não é mais assim; e, na maior parte dos casos, cada panel abriga um verdadeiro debate interativo entre os participantes (amiúde três, e de diversas áreas geográficas), algo que no passado raramente era visto.

Além disso, nesses anos, a IPA reconheceu cada vez mais também a sua relação com a IPSO, ou seja, com a fonte direta do futuro da psicanálise: sem bajulações sedutoras e sem arrogância superegoica, trabalhando em conjunto para tornar melhor e mais harmonioso o processo de formação de novos analistas e, sobretudo, para estimular desde o início a sua capacidade de coparticipar e colaborar em um ambiente científico comunitário.

Em suma, é a IPA que reduziu progressivamente o provincianismo dos narcisismos locais, colocando em contato os analistas de todo mundo com seus colegas e induzindo-os a um intercâmbio que – superada a ferida narcísica inicial de não serem, cada um deles, o "centro do mundo" – enriquece-os abrindo-lhes novas perspectivas.

A mesma ferida narcísica resguardou o problema dos diversos modelos de Educação: e nisso, também, a IPA teve o mesmo mérito que às vezes reconhecemos em nossos pacientes, quando eles demonstram capacidade de reconhecer e superar cisões e denegações da realidade. A IPA saneou uma situação esquizoide crônica que existia em seu estatuto, superando a denegação de uma realidade complexa que operava há muito tempo, a existência real dos diversos modelos de formação.

Eu estava no Board quando esse difícil processo se desenrolou e tenho orgulho de ter participado ativamente desse evento integrativo e restaurador. Creio que quem dirige a IPA deva ter como característica principal, saber não possuir a verdade, e desejar ser mais o intérprete de uma rede muito ampliada de perspectivas do que de um "lobby" mais ou menos selecionado: a IPA é composta de 12.000 analistas ligados a diversas escolas teórico-clínicas, com modelos formativos diferentes, com culturas nacionais muito específicas e com realidades político-profissionais igualmente diversificadas.

Toda e qualquer pretensão de um grupo prevalecer monopolizadoramente sobre outro leva a desequilíbrios, desarmonia e profunda insatisfação.

Permitam-me insistir neste aspecto, que definirei como o aspecto implícito na "regulação da homeostase narcísica": desejo evidenciar como a afiliação ativa à nossa Associação contribui, por um lado, para alimentar de modo legítimo o senso de uma boa confirmação coletiva da qualidade de nossa formação e da nossa vida científica (garantindo, em certo sentido, um nível adequado de "narcisismo saudável e necessário", precioso para o sentido de si mesmo do analista); por outro, pelo confronto constante com os colegas, com a sua competência e cultura, e por meio da confirmação da pluralidade comunitária, que desmente a nossa "unicidade", nos vacinamos contra as ilusões de sermos onipotentes, de sermos "gurus", de podermos dar crédito às projeções idealizadoras dos pacientes etc.: sermos membros ativos e participativos de uma associação funciona como um poderoso regulador do narcisismo patológico, e bem sabemos como um analista isolado torna-se mais exposto ao risco de extravios megalomaníacos, enquanto quem se confronta habitualmente com os colegas recupera mais facilmente o senso dos próprios limites e evolve de modo mais harmônico e realístico.

No que tange às relações com o mundo externo, creio mesmo que a IPA deva se esforçar para também ser conhecida fora de seu âmbito, e para garantir a presença e trabalho dos analistas em várias situações: terapêuticas, no debate cultural, na pesquisa científica. Eu simplesmente penso: "SE O OBJETO N ÃO SE APRESENTA, O SUJEITO (O PACIENTE EM POTENCIAL, OS INTERLOCUTORES MÉDICOS, SOCIAIS E CULTURAIS) N ÃO PODEM RECONHECÊ- LO E ALCANÇÁ-LO": este é, do meu ponto de vista, um dos problemas de base da psicanálise moderna, e que a IPA poderia ao menos parcialmente remediar por meio de uma maior presença e autoapresentação no mundo externo.

Creio que em muitos países a IPA tem se encarregado especificamente nessa direção, facilitando um tipo de contato útil e correto com os potenciais pacientes, com os seus terapeutas, com as fontes públicas de informações: é incrível quanta confusão ainda existe, também entre as pessoas de cultura médio-superior, quanto à diferenciação entre um verdadeiro psicanalista e os terapeutas de vários tipos e que se distanciam mais ou menos da psicanálise, naquela multicolorida e confusa "psicogaláxia" que, de fato, iguala as figuras mais diversas sob uma única e prestigiosa qualificação profissional, frequentemente imprópria.

Desejo concluir especificando, como disse antes, os motivos pelos quais creio ser um genuíno privilégio poder pertencer à IPA e poder usufruir das potencialidades desta organização científica, profissional e educativa. Como todos, conheço uma quantidade de psicoterapeutas que fizeram boas análises pessoais e que complementaram sua instrução básica com supervisões desenvolvidas junto a analistas qualificados e confiáveis.

Estes terapeutas, bem diferentes em termos de seriedade e qualidade dos analistas "selvagens" de uma época, carecem, no entanto, daquela suplementação científica continuada, diversificada e culturalmente complexa que deriva da frequência habitual a um ambiente plurigeracional e internacional como aquele fornecido pela nossa IPA. História, tradição, estrutura formativa e qualificadora, educação permanente, informação e trocas congressuais, interatividade em seminários periódicos e amplidão das fontes de origem das contribuições fazem de nossa Associação, difundida em todo mundo e articulada em uma extraordinária rede de conexões científicas, uma realidade única que não tem comparação possível com outras organizações, em geral mais recentes, menos organizadas e menos ricas de contribuições e contatos estáveis.

É um privilégio ser formado neste contexto e poder crescer nele.

Às vezes, esquecemos disso, e em muitas ocasiões, nesses anos, isso me foi apontado por quem – por contraste – não pode usufruir das mesmas condições.

Mais uma vez, e a um século de distância, creio que podemos ser gratos a Sigmund Freud e sua ideia visionária: dentre as tantas coisas que ele nos deixou, existe essa também – e além de qualquer questão teórica ou técnica sofisticada – creio que não seja a menos importante.

Quando eu era um jovem candidato, foi uma grande emoção visitar Bergasse 19. Assim como eu, meus companheiros de curso também experimentaram um sentimento de intensa comoção ao ver os aposentos onde nasceu a psicanálise e as primeiras edições dos textos freudianos; anos depois, a visita a Broomhills renovou estes sentimentos ao ver os objetos da vida cotidiana de Freud e ao sentir quanta história (e quantas estórias…) se condensavam naqueles ambientes carregados de significados.

Mas, uma emoção não menor eu também experimentei aqui, certamente, como muitos outros colegas – quando nos anos seguintes tive a sorte e o prazer de visitar as outras "casas da psicanálise", as sedes das atuais sociedades psicanalíticas, algumas antigas e outras mais recentes, algumas grandes e prestigiosas (penso nos institutos de Buenos Aires e São Paulo, de Londres e Paris, de Boston e Roma), além de outros menores e em estado nascente, como em certos países do Leste europeu ou em outros países em vias de desenvolvimento.

Em todos estes "casos" pode-se perceber um dado comum, que é o grande amor pela psicanálise; e em todos há sinais explícitos de plena pertinência A UMA REDE INTERNACIONAL QUE OS UNE.

O PSICANALISTA IPA que viaja e é acolhido com amizade e interesse em todos esses casos, pode escutar e interrogar: um direito concreto, explicitado formalmente que contém, na realidade, um profundo significado simbólico, relacional e interpsíquico.

 

 

Endereço para correspondência
Stefano Bolognini
[Sociedade Psicanalítica Italiana SPI]
Via Dell’addadia 6 Bologna
40122 Italy
e-mail: fef8279@iperbole.bologna.it

 

 

Tradução de Ester Hadassa Sandler
1 Analista didata da Sociedade Psicanalítica Italiana SPI, foi Diretor Cientifico N acional da SPI, co-fundador do Comitê Patologias Graves da SPI (1992), ex-presidente do Centro Analítico de Bologna. Na IPA foi Board Representative for Europe 2003-2007, co-chair for Europe CAPSA Commitee; chair IPA 100 Anniversary Commitee.
2
Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Membro do Departamento de Psicanálise da Criança, Instituto Sedes Sapientiae.
3
Tradução livre do texto em alemão, quando a referência em português é ESB. Apresento entre parêntese o termo em alemão e mantenho a tradução para o português da ESB da palavra Spaltung e Dissoziation.
4
De escotoma – mancha cinzenta ou escura que se estende por parte visual, por enfermidade da retina, Novo Dicionário Aurélio. Freud (1927) no texto "O fetichismo" (p.164) também se refere a uma escotomização de um fato da Realidade externa, usando-a como sinônimo de renegação da Realidade nesse texto, pertencendo a uma das correntes psíquicas no caso do fetichismo, que se opõe à outra corrente que reconhece a Realidade; sendo assim o Eu abarcaria ambas simultaneamente por meio do fetiche. A escotomização é, então, precisamente o processo de renegar ou "denial" da realidade como o diz Klein nesse texto.

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