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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.1 São Paulo  2010

 

DEBATE

 

Cem anos depois

 

Cien años después

 

One hundred years later

 

Claudio Rossi,1 São Paulo

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Há cem anos Freud tinha ideias claras a respeito do objeto e objetivos da Psicanálise. De acordo com o espírito da época, acreditava que a Medicina e a Psicanálise atingiriam um alto nível de precisão e eficiência. Hoje se sabe que as coisas são muito mais complicadas e assim ficaram pela expansão dos conhecimentos psicanalíticos, assim como, pela ampliação de sua proposta de trabalho.

Palavras-chave: Psicanálise; técnica; objeto; objetivos; cura; eficiência; precisão.


RESUMEN

Hace cien años, Freud, en conformidad con el espíritu de la época, creía que el Psicoanálisis llegaría a alcanzar un alto nivel de precisión y eficiencia. Tenía en ese entonces, ideas claras sobre el objeto y los objetivos del Psicoanálisis. Hoy sabemos que las cosas son mucho más complicadas debido a la acumulación de conocimientos psicoanalíticos y como consecuencia de la ampliación de su propuesta clínica.

Palabras clave: Psicoanálisis; técnica; objeto; objetivos; cura; eficiencia; precisión.


ABSTRACT

One hundred years ago, Freud had clear ideas about the object and objectives of Psychoanalysis. In accordance with the way of thinking of his time, he believed that Medicine and Psychoanalysis would reach a high level of accuracy and efficiency. Today we know that things are much more complicated, due to the enlargement of psychoanalytic knowledge and because of the widening of its clinical project.

Keywords: Psychoanalysis; technique; object; objectives; cure; efficiency; accuracy.


 

 

Há cem anos Freud solicita a atenção dos médicos sobre o que ele chama de "a nossa terapia" que luta contra as neuroses. As neuroses são claramente o objeto da Psicanálise naquele momento e seu objetivo é curá-las. Ele cita as dificuldades em atingir esse objetivo médico – a cura – e procura mostrar que o futuro trará melhores e mais eficazes recursos para a obtenção de bons resultados. Fala para médicos e usa o modelo médico. Há um mal a tratar, há tratamento e busca-se a cura. Não se nota em seu discurso, dúvidas ou ambivalências sobre isso. Quem consegue curar, fica entusiasmado, quem não consegue, fica deprimido.

Cada avanço no conhecimento, diz ele, significa um acréscimo em nosso poder terapêutico. O conhecimento do inconsciente por parte do médico permitirá que ele dê ao cliente mais ideias antecipadoras conscientes facilitando que o paciente ache, com mais facilidade, as ideias reprimidas em si mesmo. Outro recurso mais poderoso ainda, seria o emprego da transferência.

Discorre, ainda, sobre o conhecimento do simbolismo, outro recurso importante, e em sua argumentação fica claro que reconhece significados universais para os símbolos que menciona. As suas associações livres sobre as escadas, acompanhadas de argumentações lógicas e alguns fatos linguísticos, são para ele a prova de que elas significam relações sexuais e, assim, a prova, também, que os sonhos têm uma significação sexual oculta.

Na mesma linha, continua, a seguir, afirmando que o conhecimento de casos semelhantes permitirá maior facilidade de diagnóstico e prognóstico. O conhecimento acumulado iria permitindo a discriminação de características típicas que seriam comuns a um certo conjunto, de tal maneira que ao se reconhecer alguns aspectos poder-se-ia deduzir os restantes. Novamente é o modelo médico que é aplicado sem alterações ou adaptações.

Hoje existem muitas discussões sobre todas essas questões e posturas assumidas por Freud nesse artigo e diferentes maneiras de pensar sobre elas. Há quem continue pensando em diagnóstico, prognóstico e valorizando a forma médica de acumulação de conhecimentos. A Psicanálise continua sendo vista por muitos como uma forma de terapia, como um procedimento que usa técnicas visando ao combate de patologias bem definidas e caracterizadas. Para outros, o modelo médico deve ser abandonado. Os conhecimentos acumulados, sejam sobre símbolos ou sejam sobre características típicas que levariam a definição de quadros clínicos, a experiência sobre a evolução dos pacientes que permitiria a previsão prognóstica e a escolha de técnicas e procedimentos mais adequados, tudo isso mais atrapalharia do que ajudaria a sua prática.

Afirmações como a de que um dos objetivos da técnica psicanalítica seria "dar ao paciente o mais irrestrito acesso ao seu inconsciente" soam ao ouvidos atuais como bastante problemáticas. O conceito de inconsciente mudou bastante e nas concepções atuais, majoritárias, é impensável um "acesso irrestrito" a algo que não pode ser reificado.

É indiscutível que os conhecimentos psicanalíticos nesses cem anos evoluíram muito e se acumularam de maneira significativa. Não menos importante, porém, que esse progresso, foi o fato de o objeto e o objetivo da Psicanálise terem se complicado muito. Freud naquele momento sabia o que deveria tratar, sabia onde queria chegar. Hoje são intermináveis as discussões e inúmeros os eventos nos quais se procura definir o objeto e os objetivos de nossa especialidade. A cura tão almejada naquela época tornou-se, atualmente, um conceito tabu. Definir os critérios de um término de análise é uma tarefa bastante complexa e não raramente promove discordâncias radicais e irreconciliáveis. O que um psicanalista julga ser um bom trabalho, com resultados respeitáveis, outros podem considerar um enorme equívoco. Quem esteve presente na abertura do congresso de Chicago em 2009 pôde constatar isso com bastante clareza.

Se não está claro, pelo menos como consenso entre os psicanalistas, qual o objeto e quais os objetivos da Psicanálise, como concordar a respeito de critérios e técnicas? Como avaliar resultados? Para muitos, a simples ideia de avaliar resultados, revela que quem a teve nada sabe a respeito do que vem a ser a Psicanálise. Enquanto isso, são promovidos e financiados cursos de epistemologia e metodologia científica para serem aplicados na pesquisa clínica.

Ao mesmo tempo em que se defende a tese de que a Psicanálise nada tem a ver com a Psiquiatria e com a Medicina, luta-se para que os convênios e os órgãos de saúde pública a financiem como tratamento útil e necessário para diferentes doenças e quadros sintomáticos.

Freud era feliz em 1910, as coisas eram muito mais simples. Grande parte das contradições, dúvidas e questões que temos hoje em dia se devem ao fato de a Psicanálise ter alargado o espectro de casos e situações das quais cuida. No começo do século XX os psicanalistas somente tratavam das neuroses. Hoje um grande número de colegas nem sequer faz diagnósticos e aceita para o trabalho quem se apresenta em seus consultórios. Neuróticos, psicóticos, portadores de estruturas perversas, caracteropatias variadas, psicopatas e muitos "normais" com problemas circunstanciais, existenciais e relacionais são os pacientes. Com tão variada clientela, com tão diversos objetivos, com tão diferentes maneiras de entender o próprio trabalho, os psicanalistas têm muitas dificuldades de se entenderem entre si. Esforços vêm sendo feitos na busca de common grounds, de "especificidades da terapia psicanalítica", de "quais teorias estariam por trás dos procedimentos clínicos" etc. Tudo indica, porém, que os conhecimentos que Freud julgava que iriam facilitar as coisas e tornar o trabalho mais simples e confortável, pelo contrário, criaram uma espécie de alagamento no qual nos afogamos. Se é tão difícil conversar com os próprios colegas, dentro de nossas próprias fileiras.

Se é tão difícil, mesmo entre nós, sentirmo-nos autorizados a trabalhar e a fazer o que fazemos. Se temos tanta ansiedade em apresentar casos clínicos e discutir nossas maneiras de pensar e trabalhar com nossos pares por sabermos que é muito difícil nos entendermos e nos sentirmos compreendidos, pode-se imaginar que não será fácil obtermos a autoridade diante do grande público, que Freud julgava ser um importante coadjuvante na obtenção de resultados psicanalíticos, tanto nos pacientes individuais como na cultura.

No presente, não apenas nos parece excessivamente otimista a declaração de que "o nosso procedimento clínico alcançará grau de precisão e certeza de sucesso que se hão de encontrar em todo campo especializado da medicina", como, também, não seria exagero dizer que se Freud a proferisse numa de nossas reuniões científicas atuais obteria uma grande quantidade de sorrisos benevolentes e algumas sugestões para que procurasse uma nova análise. Assim como essa precisão teórica e técnica nos parece hoje inalcançável e até mesmo pouco compatíveis com nosso objeto, a esperança de que obteríamos tanta autoridade social que as neuroses deixariam de existir por ficarem desmistificadas pelos conhecimentos e resultados psicanalíticos, nos parece distante e inverossímil. Em cem anos de existência a IPA tem menos de 15.000 membros no mundo todo. Metade desse número foi a frequência do último Congresso Brasileiro de Psiquiatria, no qual a Psicanálise foi mais combatida ou ignorada do que prestigiada. Lá estavam, porém, vários de nossos colegas, levando nossas experiências e pontos de vista.

Apesar de tudo, aqui estamos. Não obtivemos a precisão e a eficiência tal como sonhou Freud em 1910. Nosso prestígio social, mantidas as proporções, é menor do que naquela época. A oposição ao nosso trabalho e à Psicanálise continua enorme. A imensa maioria da humanidade nada sabe sobre ela e, em geral, quando ouve falar dela é como algo curioso e antigo, como os dinossauros. Continuamos com a fama de sermos elitistas e inacessíveis. Quem sabe se com a desistência de darmos "acesso irrestrito ao inconsciente" sejamos capazes de convencer as pessoas de que é possível terem acesso, pelo menos, a nós psicanalistas.

Assim como no trabalho clínico, segundo Freud, existem duas fases para aqueles que são principiantes, a do entusiasmo e a da depressão, acredito que isso acontece, também, no movimento psicanalítico. Em 1910 ele começava a se desenvolver de forma mais organizada e hoje, com apenas cem anos, continua a ser um principiante. As dificuldades eram maiores do que se imaginava e, na maior parte, vieram de dentro e não de fora como se esperava. Vieram do próprio desenvolvimento da Psicanálise, de sua ampliação de horizontes e do impacto provocado pelas suas próprias descobertas.. A multiplicação de correntes que foi necessária para que as diferentes hipóteses e linhas de pesquisa teórica e clínica pudessem se desenvolver, provocou um enorme enriquecimento dos conhecimentos e técnicas, mas, causou uma "babelização" do campo. A expansão das modalidades de atendimento, as flexibilizações do setting, as participações e interações com a Filosofia e inúmeros ramos das ciências humanas, o diálogo permanente com as ciências e com as artes resultaram numa quantidade de problemas que, provavelmente, levaremos mais cem anos para, apenas, equacionar.

Aqueles que construíram a Torre de Babel foram punidos porque desejavam chegar ao céu, espero que os deuses se apiedem de nós já que nosso objetivo, embora tão ambicioso quanto, é mais humilde e razoável. Só queremos nos entender melhor. Só queremos aprender a nos relacionar de forma mais frutífera e significativa com nossos semelhantes. Almejamos conhecer e conviver melhor com nossa mente e com nossos próprios desejos. Acreditamos com Freud que a Psicanálise pode ajudar bastante nisso tudo. Pode ser que as profecias que fez em 1910, apesar de tudo, não sejam nem otimistas demais nem ingênuas. Afinal, ele não falou em datas e não fez nenhum cronograma.

A causa de nossos piores problemas é também a nossa maior riqueza. As nossas contradições acontecem por convivermos com as diferenças, por não termos pressa em eliminá-las. Aprendemos a ter paciência e a esperar. Ao atender a todos os que nos procuram colocamos peso demais em nosso "caminhãozinho". Mas, vamos caminhando, devagar e sempre, sem saber claramente o caminho, mas, sem nenhuma vontade de abandoná-lo. Assim é a Psicanálise. Difícil, frustrante, complicada, imprevisível, cara, cansativa, irritante, mas, imperdível! Fascinante, apaixonante, impossível desistir dela. Se Freud tivesse falado sobre todas as dificuldades que nos assolam, em 1910, talvez os pioneiros tivessem desanimado e não estaríamos aqui hoje. Acho que, pensando bem, ele foi esperto e sábio!

 

 

Endereço para correspondência
Claudio Rossi
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo]
Rua Diogo Moreira, 132/2105, 21º andar – Pinheiros
05423-010 São Paulo, SP
e-mail:
clrossi@terra.com.br

[Recebido em 19/2/2010, aceito em 22/3/2010]

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Ex-presidente da FEBRAPSI.