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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.1 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Da intercorporeidade à co-corporeidade: elementos para uma clínica psicanalítica1

 

De la inter-corporeidad a la co-corporeidad: elementos para una clínica psicoanalítica

 

From intercorporeality to co-corporeality: elements for a Clinical Practice of Psychoanalysis

 

 

Nelson Ernesto Coelho Junior2, São Paulo

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo procura estabelecer os elementos básicos de uma clínica psicanalítica fundada na experiência de uma co-corporeidade. A noção de corporeidade é definida como um tecido material e energético, móvel e instável, movido por forças pulsionais, em sua remissão aos objetos e marcado por interferências de intensidades internas e externas, constituindo um campo de forças e protossentidos. Propõe-se que não há como expulsar a dimensão pulsional da corporeidade, tampouco o Eu e o inconsciente. Mas também não há como negar a dimensão relacional, propriamente intersubjetiva da situação analítica. Com isso, sublinha-se a necessária tensão permanente entre as dimensões intrapsíquicas e as dimensões intersubjetivas na clínica e na teorização psicanalíticas. Sublinha-se, também, a preferência pela noção de co-corporeidade com relação à de intercorporeidade, já que se entende que a ênfase não deve se situar no "entre" corporeidades, mas sim na ideia da copresença de duas corporeidades que já trazem em si o Eu e o outro.

Palavras-chave: Corporeidade; intersubjetividade; campo analítico; metapsicologia.


RESUMEN

Este artículo busca establecer los elementos básicos de una clínica psicoanalítica fundada en la experiencia de una co-corporeidad. La noción de corporeidades definida como un tejido material y energético, móvil e inestable, movido por fuerzas pulsionales, en su remisión a los objetos y marcado por interferencias de intensidades internas y externas, constituyendo un campo de fuerzas y proto-sentidos. Se propone que no hay cómo expulsar la dimensión pulsional de la corporeidad, tampoco al Yo ni al inconsciente. Pero tampoco hay cómo negar la dimensión relacional, propiamente intersubjetiva de la situación analítica. Con eso, subrayase la necesaria tensión permanente entre las dimensiones intra-psíquicas y las dimensiones intersubjetivas en la clínica y en la teorización psicoanalíticas. Subrayase, también, la preferencia por la noción de co-corporeidad con relación a la de inter-corporeidad, ya que se entiende que el énfasis no debe situarse en el "entre" corporeidades, pero sí en la idea de la co-presencia de dos corporeidades, que ya traen en si al Yo y al otro.

Palabras clave: corporeidad; intersubjetividad; campo analítico; metapsicología.


ABSTRACT

This paper intends to establish the basic elements of a clinical practice of psychoanalysis based on the experience of co-corporeality. The notion of corporeality is defined as a material and energetic fabric, both mobile and unstable; it is moved by driving forces, with its remission to the objects and marked by interference of internal and external intensities, constituting a field of forces and proto-meanings. It is proposed that the driving dimension cannot be expelled from corporeality, nor can the ego and the unconscious. However, the relational dimension (the proper intersubjective dimension of the analytical situation) cannot be denied either. Thus, the necessary permanent tension between intersubjective and intrapsychic dimensions is emphasized in clinical and theoretical psychoanalysis. A preference for cocorporeality over intercorporeality is also stressed, because the emphasis should not be placed on the idea of "between" corporealities, but on the idea of the co-presence of two corporealities, which carry within themselves the ego and the other.

Keywords: corporeality; intersubjectivity; analytic field; metapsychology.


 

 

Iniciarei retomando algumas ideias que expus em um texto publicado há mais ou menos dez anos (Coelho Junior, 2000). Nesse texto, procurei demarcar um campo de experiências definidor da clínica psicanalítica e que na época apresentei da seguinte maneira:

A psicanálise que reconheço é aquela que cada vez mais toma o corpo como setting. Propor a ideia de que o corpo é o setting não é tomar o corpo como objeto, nem como a "moldura" da psicanálise. Não é fazer da psicanálise uma nova técnica de massagem ou fazer a psicanálise voltar-se para a neurologia, retornando pela porta dos fundos ao lugar de onde saiu há cem anos para se tornar um saber específico. (p. 97)

O texto continua, retomando a noção de identificação projetiva:

A porosidade própria de nossos corpos é a condição de possibilidade, embora não a condição suficiente, de todo trabalho analítico. É com nosso corpo que apreendemos afetos, que somos penetrados por introjeções e que realizamos projeções. Não é simplesmente o mundo mental que projeta. Não é exatamente algo "interno" que projeta. É com o corpo, através de sua porosidade, que projetamos e introjetamos e assim, talvez, nem caiba mais falar em projeções e introjeções sem aspas, já que são as próprias noções de interno e externo que precisariam ser transformadas. A noção fundamental de identificação projetiva, por exemplo, precisaria ser pensada para além de um ato ou mecanismo mental. (p. 101)

No final do texto afirmei:

Proponho que passemos a entender a situação analítica como campo de intercorporeidade, e não apenas como campo intersubjetivo. Situação analítica onde o corpo é o setting. É também nesses termos que tenho passado a pensar a enigmática formulação freudiana de uma comunicação entre inconscientes. Comunicação que se faz possível através da porosidade original de nossos corpos e através do fato de sermos, na análise, órgãos de uma só intercorporeidade. (p. 106)

A noção de intercoporeidade, proposta por Merleau-Ponty, foi apresentada em um ensaio de 1959, "O filósofo e sua sombra", tendo como ponto de partida a clássica referência ao encontro da mão esquerda com a mão direita no toque. Merleau-Ponty (1960) procura formular a possibilidade de compreensão da relação entre eu e o outro, não mais através da intersubjetividade, mas da intercorporeidade:

Minha mão direita assistia ao surgimento do tato ativo em minha mão esquerda. Não é de maneira diversa que o corpo do outro se anima diante de mim quando aperto a mão de outro homem, ou quando o olho somente. (…) Minhas duas mãos são "copresentes" ou "coexistem" porque são as mãos de um só corpo; o outro aparece por extensão desta copresença. Ele e eu somos os órgãos de uma só intercorporeidade. (pp. 212-213)

Para Merleau-Ponty a noção de intercorporeidade é fundamental na transformação de uma tradição filosófica marcada pelo privilégio das representações, em direção a uma filosofia voltada para a investigação do campo de intensidades sensíveis, solo primeiro de nossas experiências vividas.

Decidi insistir na dimensão intercorpórea do campo analítico na tentativa de enfatizar, por outro ângulo, a grande interdependência dos funcionamentos psíquicos de pacientes e analistas durante o processo de análise. Com isso, procurei também me referir a formas de comunicação e não comunicação que permeiam e sustentam os trabalhos analíticos. São estímulos basicamente não verbais e pré-verbais (mas que também podem ser verbais) que operam por meio de um plano primordial de contato e experiência do outro, que é a intercorporeidade. No texto de 2000 procurei apresentar também a temática da intercorporeidade a partir da ideia de que as percepções e as sensações trazem em si a possibilidade de atribuição de sentidos/significados. A questão que eu propunha, era se a dimensão intercorpórea, por si mesmo, em sua estrutura sensorial enquadrante pode, para além de ser polo receptivo, produzir significação.

Não recuso essas ideias propostas há dez anos, ao contrário, nesses últimos meses, ao retomar o tema, vi-me assolado pela incerteza de ser capaz de escrever algo além, algo a mais do que já havia escrito. Percebi, no entanto, ao reler o texto, os riscos embutidos em minha argumentação, que possui as qualidades e os defeitos do desejo de alertar os leitores para a importância de certa ideia, naturalmente usando como "escada" certas posições mais consensuais que precisavam ser, no mínimo, relativizadas. Mas, como procurarei apresentar logo a seguir, se não recuso essas primeiras ideias, tenho novas ideias para acrescentar. O primeiro acréscimo é uma nova definição de corporeidade, que procura avançar com relação à noção anterior de intercorporeidade, basicamente constituída a partir das ideias de Merleau-Ponty.

Proponho a seguinte definição como referência inicial, ainda que incompleta: a corporeidade é um feixe sensorial e energético de intensidades heterogêneas e aleatórias que possui a potência de produzir protossentidos, como parece sugerir o filósofo Michel Bernard (2002, p. 524), a partir das concepções psicanalíticas de Anton Ehrenzweig. Ou, ainda, de forma menos condensada, a corporeidade é um tecido material e energético, móvel e instável; é movida por forças pulsionais, com sua remissão aos objetos (pulsões mensageiras, como sugere Roussillon) e marcada por interferências de intensidades internas e externas, constituindo um campo de forças e protossentidos.

Com isso, o que proponho hoje, de modo simplificado, é que tomemos o conceito de corporeidade como alternativa para designar um campo específico de experiências sensoriais, afetivas e significantes, mesmo que protossimbólicas. Corporeidade de paciente e analista, co-corporeidade, plano originário de relação em que processos transferenciais e contratransferenciais são vividos e sentidos. Corporeidade do analista em suas respostas à corporeidade do paciente, que podem incluir experiências de sonolência, tédio, desejo sexual, tristeza, raiva, impulsos agressivos ou sádicos etc.

Gostaria de explicitar que a definição do tema desta mesa como "Intersubjetividade e Corporeidade" respeita o que para mim é uma necessária distinção entre a noção de corpo e a de corporeidade. Marcado pela tradição que opõe corpo a mente, o corpo ocupa um lugar determinado por uma série de inflexões ideológicas. Seja de forma desvalorizada, seja de forma hipervalorizada, o corpo carrega, como conceito, a carga de suas posições na história de nossa cultura. Nos aspectos mais próximos aos processos de subjetivação, aparecem as oposições "somos um corpo" ou "temos um corpo", que refletem o difícil lugar, ora de sujeito ora de objeto, que o corpo ocupa em nossa cultura. Nesse contexto, o corpo aparece como uma unidade destacada e plenamente constituída, em suas funções orgânicas, espaciais e temporais. Ao ser oposto à mente (ou psiquismo), constituiu-se como elemento identificável, com identidade própria e lugar garantido nos mais diferentes discursos e práticas, do âmbito das ciências naturais ao das ciências humanas. Na tradição do pensamento moderno, como bem demonstrou Figueiredo (1995), a distinção corpo-mente, na sua forma original, é a "de uma mente executiva impondo-se a um corpo disciplinado" (p. 143). A psicanálise não ficou isenta dessas determinações, o que coloca aos analistas a exigência de considerá-las antes de qualquer nova aproximação que possamos fazer do tema. Concordo com Figueiredo (1995) quando sugere que a psicanálise, embora herdeira da tradição moderna, criou e consagrou noções que transformaram em certa medida esse cenário:

Noções psicanalíticas como as de um "inconsciente anímico" e, mais ainda, de pulsão como "conceito fronteiriço entre o anímico e o somático" mostram que para a psicanálise nem o corpo nem a mente podem conservar as acepções que tinham (…) Temos então uma mente que, por assim dizer, ganha a espessura, a opacidade e a dinâmica de um corpo, e um corpo que, em contrapartida, mentaliza-se. (p. 144)

Diante dessas considerações, entendo que é preciso demarcar e explicitar alternativas a essas noções excessivamente sobrecarregadas de corpo e mente (ou psiquismo). Nesse sentido considero um avanço a solução de Figueiredo (1995, p. 144) de uma "mente corporalizada" e de um de um "corpo mentalizado", embora reconheça que indiretamente pode manter-se a aparência de um dualismo, que traz consigo as ressonâncias de nossa tradição moderna, seja ela de vertente racionalista seja de vertente romântica.

Proponho, assim, a noção de corporeidade como uma alternativa à clássica oposição corpo-mente (ou psiquismo), ou seja, entendo que a corporeidade é também psíquica, como gênese de possibilidades, como potência geradora de elementos propriamente psíquicos. Não oponho à corporeidade uma natureza que seria exclusivamente psíquica, embora reconheça uma distinção de níveis e dimensões, com especificidades que precisam ser levadas em conta. Entendo que somos de ponta a ponta corporeidades (o que inclui a dimensão psíquica da corporeidade). A corporeidade é, ao mesmo tempo, interna e externa. É a presença irrecusável das pulsões e abertura permanente para o mundo, para os outros.

Continua existindo aqui, não posso negar, a sombra da fenomenologia husserliana, em sua recusa de conceber a corporeidade como puro objeto da natureza. Para Husserl (1929), a corporeidade traz em si a presença imediata do Eu e dos outros, fazendo com que corpo e espírito formem uma unidade compreensiva. Mais do que isso, a corporeidade é presença imediata no mundo e por isso garante sua potencialidade produtora de sentidos. Nessa mesma linha, Merleau-Ponty irá afirmar que a corporeidade é o elemento constituinte de nossa experiência.

Reconheço, também, que acompanho Piera Aulagnier em sua tentativa de recriar um pensamento do corpo e a partir do corpo em psicanálise. Como base para sua original noção de metabolização, Aulagnier afirmava que a vida psíquica se inscreve em uma teoria de conjunto do vivido, como um aspecto específico, mas não separado dos fenômenos do organismo inteiro. Como ela afirma em A violência da interpretação (1975):

Partimos da hipótese de que a vida do organismo tem como fundamento uma oscilação contínua entre duas formas elementares de atividade, que nomeamos: "guardar dentro de si" e "expulsar para fora de si". Essas duas atividades se acompanham de um trabalho de metabolização do que foi "guardado" [dentro de si], que o transforma em material do próprio corpo, sendo que os resíduos desta operação são eliminados do corpo. (p. 54)

Aulagnier dá como exemplos mais simples desses processos a respiração e a alimentação, mas avança para o plano das sensações em suas tentativas de guardar o que é prazeroso e expulsar o que gera desprazer. Esse é o modelo inaugural para as primeiras representações psíquicas, mas, acima de tudo, é a base para uma metapsicologia que não separa o corporal do psíquico, seguindo os caminhos abertos por Freud. Importante notar, entretanto, como relembra Miller (2001), que mesmo que a noção de metabolização tenha feito com que Aulagnier ancore e enraíze o psíquico no somático, isso não a conduz a um ponto de vista biologizante, no sentido reducionista. A partir de preocupações semelhantes, a psicanalista Liana Melo Bastos (2006) sugere que "apenas na segunda tópica, com o Id como psiquismo originário ligado ao corpo e com a segunda teoria pulsional, na qual a afetividade é originária e ambivalente, é que o homem pode ser pensado dentro da natureza sem a ela se reduzir" (p. 151). É uma nova concepção das relações entre corpo e psiquismo, entre natureza e cultura, que se inaugura e que tem no texto O eu e o id, como veremos a seguir, um momento privilegiado na obra de Freud.

A necessidade de avançar com relação ao texto publicado em 2000 tem também como intenção indicar o risco presente em noções como a de intersubjetividade, intercorporeidade, campo analítico, relação bipessoal e outras do mesmo tipo em psicanálise. Entendo que o risco é o de fazer praticamente sumir de vista a experiência singular de dois sujeitos, definidos psicanaliticamente a partir do inconsciente, das pulsões e das dinâmica conflitivas, em nome de uma experiência indiferenciada vivida pelo par analítico. Ou seja, ao substituir o suposto solipsismo freudiano, o registro da investigação exclusivamente intrapsíquica, como mostrou Green (2000, p. 1-39), pelo plano intersubjetivo, pelas noções de uma psicologia de duas (ou três) pessoas, corremos o risco de continuar cegos (só que agora do outro olho) para a complexidade da experiência clínica psicanalítica que, se quisermos, é necessariamente intrapsíquica e intersubjetiva, simultaneamente. Entendo que meu texto anterior sofre um pouco desse mal. Entusiasmado com as noções de intercorporeidade e de campo analítico, como proposto pelo casal Baranger (1969), querendo enfatizar uma dimensão que eu via ter sido deixada de lado por muitos analistas, desconsiderei uma certa dimensão da corporeidade, que agora pretendo reincorporar. Ao adotarmos a riqueza teórica trazida pelas noções de campo analítico, de intersubjetividade, de intercorporeidade, não podemos correr o risco de perder de vista a sexualidade, as forças pulsionais, os registros inconscientes, a dinâmica conflitiva, o mundo interno e os objetos que o povoam e o assombram.

Para isso, entendo que é preciso insistir nas concepções freudianas e recuperar o lugar da corporeidade na teoria e na clínica de Freud e, em particular, recuperar a relação entre corporeidade e Eu. Trata-se de dar relevo, inicialmente, ao que Freud indicou como o nascimento do Eu, ou seja, uma diferenciação com relação ao Id, uma protosseparação com relação às pulsões e à dimensão propriamente somática. Mas esse momento inicial é também, seguindo diferentes proposições psicanalíticas, o momento da separação do corpo (ou da corporeidade) da mãe que, no entanto, se faz presente por meio dos processos identificatórios primários. É nesse plano que apareceria o que poderíamos chamar de marcas no corpo, elementos constitutivos que não são imagens nem representações, mas operações que deixam marcas e cicatrizes no "corpo identificado", constituindo-se, talvez, como a base para o que já se denominou como "memórias corporais". As duas separações (do Id e do corpo da mãe) que possibilitam o surgimento do Eu não são, por outro lado, exclusões definitivas dessas duas figuras da corporeidade. Difícil imaginar o Eu em seu projeto de autonomia podendo prescindir das forças pulsionais e das marcas identificatórias que o constituíram. As posições de Freud sobre o Eu em O eu e o id ampliam a possibilidade de compreensão das determinações da corporeidade. Como procurarei demonstrar, Freud abre as possibilidades para a compreensão da simultaneidade das dimensões internas (pulsões – a partir do Id e das percepções endopsíquicas) e externas (realidade, outros – a partir da percepção externa). Freud sugere que funções inconscientes do Eu são responsáveis pela percepção interna dos processos dos pensamentos e dos afetos. Não temos consciência das determinações, apenas dos seus efeitos. Trata-se da explicitação do campo das percepções endopsíquicas. Essas percepções foram descritas como uma espécie de percepção inconsciente dos processos internos, que influencia as possibilidades de interpretação sobre o mundo e sobre as próprias funções do Eu. De outro lado, é o próprio sistema Percepção, com suas funções de mediação com o mundo externo, que Freud considera um elemento central na constituição do Eu. Mas não é o único elemento decisivo. Como afirmou Freud,

Contudo, além da influência do sistema P., outro fator parece também ter importância no processo de formação do Eu e na sua diferenciação do Id. Refiro-me ao nosso próprio corpo, sobretudo sua superfície, de onde podem partir tanto percepções internas quanto externas [äussere und innere Wahrnehmungen ]. Embora ao vermos nosso próprio corpo, ele se nos apresente como se fosse um objeto, ao tocá-lo, notaremos que ele produz dois tipos de sensações táteis, das quais uma pode ser equiparada a uma percepção interna. (…) Além do tato, também a dor parece desempenhar um papel na formação do Eu. (…) (1923, p. 294)

Assim, o Eu é sobretudo um Eu corporal, mas ele não é somente um ente de superfície [Oberflächenwesen]: é, também, ele mesmo, a projeção de uma superfície. (1923a, p. 38)

Esta passagem, sempre citada, permite diferentes níveis de interpretação. Para mim, é claro, chama a atenção a semelhança com muitas passagens de Merleau-Ponty sobre a experiência sensível do corpo, que é precondição para a sua formulação da intercorporeidade como marca inaugural de nossas relações eu-outro. Mas em termos propriamente psicanalíticos podemos enfatizar que a emergência do Eu no e pelo corpo abre inúmeras possibilidades para se pensar a constituição da subjetividade a partir de um modelo que não se reduza ao do binômio percepção-representação. Para Freud, os órgãos de percepção são veículos de mediação e formam o núcleo de origem do Eu. O próprio Eu vincula-se ao inconsciente e possui, em parte, características inconscientes. E mais, como explicita Freud (1923ª), "... o Eu não está nitidamente separado do Id; há uma zona de transição em que ele se interpenetra com o Id situado abaixo dele até o ponto em que ambos se fundem" (p. 37).

Aqui reside o que mais me interessa: se, de um lado, precisamos reconhecer o papel da percepção externa na constituição do Eu, em sua diferenciação do Id, de outro, não há como recusar a presença do Id como elemento presente, de forma constante, no Eu. Ou seja, a origem do Eu (tanto em sua constituição quanto em sua presença como instância já constituída no aparelho psíquico) revela sua dupla face, abertura por meio da percepção externa ao mundo, aos outros e, ao mesmo tempo, imbricação no Id, o nosso caldeirão de pulsões. As três forças que exigem trabalho do Eu (Id, Super Eu e mundo externo) são assim explicitadas por Freud. Para nosso tema, interessa ver como elas comparecem em uma leitura do campo analítico que procure levar em conta intersubjetividade e corporeidade. Acho que, com o que já foi exposto, posso afirmar que não consigo mais opor as dimensões ditas "intrapsíquicas" (aparelho psíquico, objetos internos, pulsões – o Id como caldeirão –, instâncias psíquicas) às ditas "intersubjetivas" (relação com o outro, o ambiente, o objeto externo etc.). Há simultaneidade dessas dimensões no âmbito da corporeidade. A corporeidade é, ao mesmo tempo, interna e externa. É a presença irrecusável das pulsões e abertura permanente para o mundo, para os outros.

O que para mim é a corporeidade ganhou o nome de "corpo-sujeito" para Liana Melo Bastos (2006), formado a partir da relação inicial entre corpo e Eu, o corpo-sujeito é uma "unidade plural, conflitiva, sempre ameaçada…" (p. 185). Segundo ela, "o corpo e o psiquismo, o fora e o dentro, o individual e o social, a natureza e a cultura deixam de ser oposições. Elas se interrelacionam no engendramento da complexidade humana. Somos um corposujeito" (p.187). Como veremos, na clínica, essa unidade plural ganha maior complexidade, gerando o que passo a chamar de co-corporeidade.

Gostaria ainda de enfatizar que, por tudo isso já exposto, tendo a concordar com Thomas Ogden (1982) quando ele afirma que "a teoria psicanalítica sofre em função da pobreza de linguagem e de conceitos que possam descrever o interjogo entre o fenômeno na esfera intrapsíquica e o fenômeno nas esferas da realidade exterior e das relações interpessoais" (p. 11). Ogden, como se sabe, propôs algumas novas noções, entre elas a de terceiro analítico e a de uma posição autista-contígua, ambas de certa forma relacionadas com a temática que estou procurando desenvolver. A posição autista-contígua está associada a um modo específico de se atribuir sentido à experiência, na qual dados sensoriais predominam na formação de conexões pré-simbólicas entre diferentes impressões sensoriais, gerando superfícies com fronteiras e delimitações. É nessas superfícies que a experiência do Self tem origem. Ogden lembra a passagem clássica em que Freud afirma que o Eu é primeiro um Eu corporal, para insistir na ideia de que o Eu é derivado de sensações corporais, aquelas que emanam da superfície do corpo. Ogden sugere que na posição autista-contígua é a experiência da sensação, da sensorialidade, em particular da superfície da pele, o principal meio para a criação de sentido psíquico e para os rudimentos iniciais da experiência de um Self. A contiguidade sensorial da superfície das peles, ao lado do elemento da ritmicidade, são bases fundamentais para o estabelecimento daquilo que podemos chamar de relações objetais infantis. É pelo toque, pela sensorialidade da pele, em relações de contiguidade sensória (o rosto do bebê no seio da mãe), que a organização de um rudimentar sentido de "eu-dade", de "si-mesmi-dade", pode se estabelecer, gerando paulatinamente o sentido de uma superfície sensória de fronteira, que permitirá ao sujeito uma experiência de si, aquilo que Winnicott denomina de "o lugar em que se vive". Trata-se de um lugar em que o bebê sente, pensa e vive, em contiguidade com a presença viva da mãe; um lugar que tem forma, dureza, frieza, calor e textura, que são o início das qualidades que fazem com que alguém seja. Entendo, com Ogden, que esse nível de experiência, embora constitutivo, não deixa de estar presente em formas mais elaboradas e diferenciadas de relação, cronologicamente posteriores. Já a noção de terceiro analítico refere-se a um modo particular de conceber a relação das dimensões intersubjetivas e interpsíquicas na situação analítica, conceito que já tive a oportunidade de discutir em outro texto (Coelho Junior, 2008), ao qual remeto o leitor interessado. Acrescento, apenas, que se pensarmos como Ogden, a partir das funções do terceiro analítico, teremos a corporeidade do setting (como sugiro que se nomeie esse recorte da situação analítica) como possibilidade simultânea de percepções internas e externas de cada uma das corporeidades da situação analítica e também da própria situação composta pelas duas corporeidades, a co-corporeidade.

René Roussillon, em seu mais recente livro, Lê jeu et l'entre-je(u) (2008), em um artigo que tem por título "A pulsão e a intersubjetividade", afirma: "Acho pessoalmente muito lamentável que o conceito de intersubjetividade esteja ameaçado de ser confiscado por certas correntes de pensamento que fazem de sua utilização seu emblema e que, ao subscrever definições restritivas do termo, freiam a exploração metapsicológica e psicanalítica" (p. 1). Insiste, a seguir, que o conceito de intersubjetividade só deveria ser utilizado em psicanálise se estivesse referido a uma concepção psicanalítica da subjetividade, ou seja, uma concepção que integre a existência de uma dimensão inconsciente, atravessada pelas questões da pulsão e do sexual. É exatamente essa a minha posição, agora revista, com relação à noção de intercorporeidade, que prefiro atualmente denominar co-corporeidade. Reconheço que a noção de intercorporeidade possui grande valor em nosso contínuo trabalho de enfrentar a série de impasses determinados pelos excessos da noção de representação no campo da psicanálise e os riscos de um mundo intrapsíquico que pudesse resvalar para o solipsismo. Mas, ao mesmo tempo, reconheço que é preciso que suas "virtudes" venham acompanhadas de uma definição de corporeidade que reconheça as marcas das pulsões, do inconsciente e da sexualidade.

Como se sabe, Ogden e Roussillon são, cada um à sua maneira, dois dos representantes atuais mais destacados de uma mudança de ênfase na psicanálise que se iniciou, segundo André Green (1995), com o texto de Winnicott sobre a regressão, publicado em 1954. Ela já poderia ser reconhecida, entretanto, em Ferenczi e seguramente nos textos de Balint, desde a década de 1940. A mudança de ênfase seria caracterizada, de um lado, por transformações na técnica clássica (ganha relevância a alteridade do analista como objeto, há a inclusão da dimensão contratransferencial, ocorrem transformações no trabalho interpretativo etc.); e, de outro, por novas formulações teóricas que passaram a incluir conceitos que indicavam, entre outras coisas, a necessária inclusão do objeto (externo) como elemento constitutivo do psiquismo, as formas de comunicação não verbal em análise, as angústias e limites de pacientes borderline e a atenção aos períodos pré-verbais da infância.

Mas essa mudança de ênfase não incluiu, necessariamente, a tematização da corporeidade na psicanálise tal como acabo de propor. Embora alguns dos autores que passaram a trabalhar com essas novas ênfases tenham dado especial atenção aos processos perceptivos, às sensações, às formas de comunicação pré e não verbais, em poucos deles aparece explicitamente uma referência ao lugar da corporeidade na situação analítica. Ou seja, mesmo nos autores que mais diretamente tomaram como foco de seu trabalho o que podemos chamar de relações intersubjetivas, a tematização do papel da corporeidade na análise não está garantida.

Entre os autores precursores dessa mudança de ênfase, à qual Green se referiu, destaco Michael Balint (1952, p. 235), que a partir de uma ideia do psicanalista John Rickman, sugere que o que se passa em uma situação analítica é basicamente uma situação de dois corpos. Trata-se da recusa ao que foi chamado de psicologia de um só corpo (a dimensão solipsista, intrapsíquica). Willy Baranger (1994), comentando essa passagem do texto de Balint, escreve:

Uma psicologia "de dois corpos", dizia Balint, e com isso procurava evitar várias dificuldades ao manter-se no nível mais evidente (duas pessoas em uma sala de consultório), "bipessoal" – para designar o campo –, mas não evita dificuldade alguma, já que o mais imediato e fundamental que se desdobra neste campo é uma situação de três, ou triangular. (…) Não se trata nem de dois corpos nem de duas pessoas, mas sim de sujeitos divididos, cuja divisão é resultado de uma triangulação inicial. (p. 369)

Nesse trecho de Willy Baranger, reconheço não só uma crítica ao movimento do qual Balint é um dos pioneiros e que tem seu caminho retraçado ao pioneirismo de Ferenczi, mas uma crítica aos próprios limites de sua noção de campo analítico. Como se sabe, em um artigo originalmente publicado 1961, o casal de analistas franceses Willy e Madeleine Baranger (1969), radicado na Argentina e depois no Uruguai, afirmaram o seu incômodo com a unilateralidade daquilo que chamaram de "as primitivas descrições da situação analítica como uma situação de observação objetiva" (p. 129) por parte do analista. Defenderam que a situação analítica é mais bem descrita como uma "situação de duas pessoas extremamente ligadas e complementares e envolvidas no mesmo processo dinâmico" (p. 129). Propuseram, então, o conceito de campo dinâmico, tal qual utilizado na psicologia da Gestalt e na obra de Merleau-Ponty, como adequado a ser "aplicado à situação criada por analisando e analista – ao menos no plano descritivo – sem que isso implique a intenção de traduzir a terminologia analítica em outra" (p. 129). Para eles, a situação analítica pode ser descrita como tendo uma estrutura espacial e temporal, estando orientada por linhas de força e dinâmicas determinadas, tendo suas leis e finalidades próprias. "Este campo é nosso objeto imediato e específico de observação. A observação do analista sendo simultaneamente observação do analisando e auto-observação correlata, só pode ser definida como observação desse campo" (p.130). Embora já nesse texto os autores procurassem ir além da definição da situação analítica como uma estruturação terapêutica bipessoal, restava o problema de como fazer conviver em um mesmo plano teórico uma noção como a de campo dinâmico e as singularidades dos mundos intrapsíquicos de analisando e analista.

São esses impasses, acima de tudo, que me fazem hoje preferir a noção de co-corporeidade às de campo analítico, intersubjetividade e mesmo intercorporeidade. A necessidade de reconhecer, simultaneamente, as dimensões intrapsíquicas e intersubjetivas, impõe a opção por noções que contemplem essa simultaneidade. Considero que o difícil abandono desse dualismo, assim como o difícil abandono dos impasses que envolvem a oposição clássica entre corpo e psiquismo, é o que ainda impede que a psicanálise possa encontrar um lugar definitivo para a experiência e o conceito de corporeidade (tal como defini), tanto em termos metapsicológicos como em termos clínicos.

Sugiro, portanto, que passemos a pensar o fundamento do campo analítico como uma co-corporeidade, um tecido material e energético, móvel e instável, movido por forças pulsionais mensageiras e marcado por interferências de intensidades internas e externas, constituindo um campo de forças e protossentidos. Não há como expulsar a dimensão pulsional da corporeidade, tampouco o Eu e o inconsciente. Mas também não há como negar a dimensão relacional. Prefiro co-corporeidade a intercorporeidade porque entendo que a ênfase não deve se situar no "entre" corporeidades, mas sim na ideia da copresença de duas corporeidades, que já trazem em si o Eu e o outro. Co-corporeidade que não é uma unidade indiferenciada, mas a presença de duas corporeidades em que cada uma é mais do que uma unidade fechada em si, é sempre a simultaneidade do dois e do um, de certo nível de diferenciação e de indiferenciação.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Nelson Ernesto Coelho Junior
[Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo]
Al. Lorena, 1.359/52
01424-001 São Paulo, SP
e-mail: ncoelho@usp.br

[Recebido em 09/09/2009, aceito em 14/01/2010]

 

 

1Texto originalmente apresentado no Simpósio Internacional Dimensões da Intersubjetividade, organizado pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) e pelo Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo (USP), em junho de 2009. Agradeço a Marion Minerbo, Luís Cláudio Figueiredo e Patrícia Getlinger pela leitura e pelos importantes comentários e críticas a uma primeira versão deste trabalho.
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Psicanalista, doutor em psicologia clínica, professor e pesquisador no Instituto de Psicologia da USP.