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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.1 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Noite: escuridão sem tempo1

 

Noche: oscuridad sin tiempo

 

Night: timeless darkness

 

 

Maria Celina Anhaia Mello2, São Paulo

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Por meio da análise do material clínico de uma criança de quatro anos e de uma jovem de vinte e quatro, procuro desenvolver ideias a respeito das representações da noite e seus desdobramentos: insônia, pesadelos, terrores noturnos, angústias de morte. Analisando por um lado, a produção gráfica da criança e por outro, os sonhos da jovem, procuro estabelecer uma equivalência entre as diferentes formas de expressão que ambas encontram. Questões referentes ao tempo e atemporalidade do mundo psíquico são abordadas. Evidenciam-se situações de rivalidade fraterna, ataques ao corpo materno e configurações edípicas, vistos ora pelo prisma da menina, ora da moça, como se ambas teatralizassem a mesma personagem em momentos diferentes da existência.

Palavras-chave: tempo; representação; sonhos; terror noturno; processo primário; processo secundário.


RESUMEN

La autora, por medio del análisis del material clínico de una niña de cuatro años y de una joven de veinticuatro, busca desarrollar ideas al respecto de las representaciones de la "noche" y sus desdobles: insomnio, pesadillas, terrores nocturnos y angustia de muerte. Por un lado, analiza la producción gráfica de la niña y, por otro, los sueños de la joven, buscando establecer una equivalencia entre las diferentes formas de expresión que ambas encuentran. En este trabajo se plantean cuestiones referidas al tiempo y a la intemporalidad del mundo psíquico. Se pueden evidenciar situaciones de rivalidad fraterna, ataques al cuerpo materno y configuraciones edípicas, todo eso visto ya sea o desde el prisma de la niña, o el de la joven, como si ambas mujeres teatralizaran al mismo personaje, pero en momentos diferentes de la existencia.

Palabras clave: tiempo; representación; sueños; insomnio; terrores nocturnos; proceso primario; proceso secundario.


ABSTRACT

By analyzing the clinical samples of a four year-old child and of a twenty-four year-old woman, my attempt is to develop ideas in relation to night representations and its consequences, such as insomnia, nightmares, night terrors, and death anguish. While analyzing the child’s graphic production, on the one hand, and the young woman’s dreams, on the other, I try to establish a similarity among the different ways of expression used by both of them. Issues of the psychic world, related to time and to timelessness, are approached. Sibling rivalry situations become evident, as well as attacks to the mother’s body and oedipal configurations. These are viewed in the child and in the woman as if both play same character in different points in life.

Keywords: time; representation; dreams; night terrors; primary process; secondary process.


 

 

Os sonhos são uma obra estética, talvez a expressão estética mais antiga e podem assumir formas estranhamente dramáticas, já que somos o teatro, o espectador, os atores e o enredo. Em nossa vigília existem momentos terríveis, em que a realidade nos massacra e, no entanto, nada disso se parece com o pesadelo, que tem um horror peculiar. (Borges, 1980, p. 65)

Dois tempos diversos, a plenitude da infância, o início da vida adulta; término de etapas, re-começos que se vislumbram.

Duas mulheres, uma menina e uma moça em dois tempos se alternam na sala de análise, onde vivem ou re-vivem suas histórias, suas angústias, seus temores.

Em dois tempos duas mulheres contracenam no palco de uma peça de teatro: "A Dona da História" (Falcão, 1999). No enredo duas atrizes personificam uma só: Carolina jovem, na explosão hormonal e Carolina adulta na reposição hormonal. A linha do tempo se alterna entre as falas da mais jovem, de vestes brancas resplandecentes e as da outra, cujo vestido amarelado denota a passagem do tempo. O texto nos remete a uma situação hipotética: a possibilidade de se voltar no tempo e desfazer ou refazer escolhas. As opções feitas na vida, os caminhos trilhados são repensados por Carolina na maturidade, num constante contraponto com os ideais sonhadores de Carolina jovem. Cada opção tem um desdobramento e há sempre uma dúvida "e se eu tivesse feito… ", um constante "e se… e então…"

Uma relação causal está aí implicada e, nenhuma outra disciplina desenvolveu tanto este campo do se quanto a psicanálise, assim como o então psicanalítico abriu novas vias para a causalidade psíquica.

O quanto a análise, em qualquer tempo, tem a possibilidade de interferir neste se e então? Transformar escolhas, mudar direções, ajudar o paciente a abandonar modelos repetitivos e estéreis, encontrar fórmulas mais criativas para encarar os sofrimentos que nos impõe o viver? Nós, como analistas, estamos implicados nesta trama.

Na sala de análise um vai e vem se põe, na alternância de relatos que se referem a um tempo atual e aos que se referem a um passado, mesmo que hipotético e aleatório.

No tempo da transferência a cena se dá no aqui e agora da sessão. O analista, agora em cena, se alterna na interpretação de um material que tem laços com o passado e a história, ao mesmo tempo em que concede atenção à atualidade daquilo que se passa durante a sessão.

Duas pacientes apresentam-se em minha sala, cada qual posicionada em sua etapa de desenvolvimento. No que diferem, no que assemelham-se, nos sonhos que trazem, no funcionamento mental que evidenciam?

Freud já havia demonstrado que todo material, qualquer que seja, comporta por meio da tela das reminiscências, elementos pertencentes a diferentes momentos do passado que se intercalam e são reformulados por uma elaboração secundária no momento em que emergem à superfície.

O ponto de vista de Freud sobre a temporalidade se formou por uma acumulação de mecanismos de tipos diferentes, levando em conta inúmeros elementos: desenvolvimento da libido, modelos bidirecionais, recalcamento, après-coup, atemporalidade do inconsciente, verdade histórica, fantasias originárias, entre outros determinantes biológicos e psíquicos.

Relógio biológico, patamares de desenvolvimento, aspectos manifestamente dependentes da influência somática – o tempo do corpo – e sua relação com a alma, se entrelaçam dando expressão ao psíquico.

Duas pacientes, duas formas de apresentação de material. A menina munida de pincéis, tintas, água, cola, sabão, desenvolve suas brincadeiras, faz da sala seu palco. A moça, deitada no divã narra sua história, relata seus sonhos.

Parodiando "A Dona da História" tratarei minhas "personagens" como sendo uma só, em duas etapas da vida. Nina (Carolina criança) e Carolina jovem contracenam, tendo a noite, foco de seus temores como cenário, como pano de fundo. Procuro traçar esta linha do tempo imaginária utilizando-me, entre outros elementos, de sonhos e pinturas realizadas, buscando extrair as representações advindas de períodos distintos. Nos sonhos os vários registros de tempo se dão simultaneamente. Não temos o mais antigo, o atual, o arcaico e o mais desenvolvido numa progressão. "Os sonhos aparecem como uma digressão recorrente, se produzindo de forma marginal em relação ao tempo ordinário" (Green, 2008, p. 214). A atemporalidade do inconsciente, sua indiferença em relação à passagem do tempo é bem demonstrada pelo trabalho do sonho. Creio que pelas pinturas também. No pintar de Nina estão condensados seus sonhos, os quais algumas vezes relata ao pintar. Tomo suas pinturas, tal qual os sonhos, como expressões genuínas de estados de alma.

O brincar de Nina contracena com as falas de Carolina, ilustrando esta infinita habilidade que a mente humana tem, de se valer de metáforas, a fim de expressar realidades psíquicas, bem como sua incrível capacidade de elaboração. Considero as pinturas de Nina como imagens, no sentido dado por Susan Isaacs (1982) e Marion Milner (1991), para tudo aquilo que é precipitado de experiências vividas e torna-se a base para interpretar o presente e esperar o futuro. "A imagem construída a partir de traços de memória de todos os tipos de experiências sensoriais, cinestésicas e viscerais, assim como visuais e auditivas" (Milner, p. 52). Utilizo as pinturas de Nina como o meio pelo qual ela encontra, para representar a si mesma e a mim, os processos psíquicos que se passam dentro dela.

No pintar, sonhar e brincar de Nina/Carolina, estão contidas as maneiras de elaboração e um meio de comunicação de suas fantasias inconscientes, subjacentes aos sonhos, aos sintomas, à percepção, ao pensamento e à criatividade. Neles encontramos a transposição do material psíquico de uma forma de expressão a outra.3

Considero que as representações gráficas e cênicas, tal como os sonhos, obedecem a este mesmo princípio e procuro buscar não apenas o conteúdo latente, mas observar nas diversas formas de expressão, as transformações, formações, deformações, o que se condensa, o que se desloca, enfim, a mobilidade dos pensamentos.

Tomarei como base a premissa de que as fantasias inconscientes e os sonhos utilizam- se da mesma linguagem, tendo o mesmo conteúdo e mecanismo de formação. Para Klein elas são subjacentes aos sonhos, para Hanna Segal (1993) o sonhar é apenas uma das expressões da fantasia inconsciente. Fundamento-me na equação pulsão-fantasia considerando a fantasia inconsciente como expressão mental dos impulsos. A fantasia inconsciente como uma linguagem das pulsões.

A partir da análise das diferentes formas de expressão apresentadas, busco encontrar uma equivalência e uma via de acesso à estrutura pulsional, subjacente ao material apresentado por ambas.4

Sonhos, pinturas, ações, encenações, recortes do material que ilustram o enredo desta peça, que se desenrola tendo a escuridão da noite como pano de fundo.

Chega a noite, é hora de dormir e Nina vai para cama. Não dorme, tem medo, levanta-se, chama os pais. Depois de longo tempo adormece, num sono agitado do qual desperta sobressaltada e em pânico.

Chega a noite e Carolina, já cansada, vai dormir. Tenta adormecer, mas o sono não vem. Seu corpo começa a coçar, seus pés giram e giram, mas o sono não vem. Quando a escuridão da noite se dissipa, aos primeiros sinais do amanhecer, daí sim se deixa levar pelo sono.

Nina chega à sala de análise. Toda arrumadinha e faceira, cabelos cacheados, bochechas rosadas, um tanto gorducha, lembra-me uma figura saída de um quadro de Renoir. Quero pintá! Diz baixinho.

Muito compenetrada e sem dizer nada, inicia sua série de pinturas. No centro da folha a primeira figura acaba sendo recoberta por camadas de tintas de cores fortes. Verde, azul, parece que vai desenhar um bichinho, vem o vermelho, o preto em seguida e o amarelo recobre quase tudo que já foi feito (figura 1). Observo, acompanho, ela permanece em silêncio. Pega a segunda folha: verde, azul, vermelho (figura 2). Pega a terceira: verde, azul, como nas anteriores. Vem então o vermelho com força, o preto começa a invadir tudo e, em seguida, um monte de amarelo recobre quase que a folha toda (figura 3). Limito-me a narrar a sequência, enfatizando a força com que pinta, a quantidade de tinta utilizada, as tonalidades escolhidas. Fraco, forte, muito, pouco, com força, de leve, claro, escuro. Ao dizer escuro ela levanta o olhar e me diz bem baixinho: Tenho medo de bruxa!

 

 

 

 

Massas de cor, ausência de contornos. Nina se expressa por meio da característica flexível da tinta, que pode assumir, uma variedade infinita de formas. A tinta se espalha com facilidade pelo papel, se mistura, se transforma. "A tinta faz pelo pintor algumas das coisas que uma boa mãe faz pelo seu bebê", nos diz Marion Milner (1991, p. 140). E ali, na sala de análise, no silêncio estabelecido, uma pinta, a outra observa, como num sonhar acordado, um momento de rêverie.

Estica as pernas, mostra os pezinhos, pede que eu a ajude a abrir o fecho das sandálias. Olha para suas pernas gordinhas, olha para mim e recomeça a pintar. Alguns pingos de tinta vermelha caem sobre suas pernas. Novamente me olha, olha as pernas, passa o pano sobre os pingos deixando, propositalmente, que pequenas manchas permaneçam.

Carolina deita-se no divã. Uma moça delicada, cabelos longos, tom amigável, um quê de angelical. Cursa o último ano da faculdade, mora sozinha, tem um namorado.

Vive, ou viveu desde sempre, imersa em uma sensação de enorme desamparo. Tinha dois anos quando nasceu a irmã sindrômica. A partir daí, todas as expectativas de sucesso, realização e perfeição foram nela colocadas. Na fantasia, na realidade, cobra-se e se sente cobrada em ser a mais forte, a que tudo enfrenta, a que nada teme, a que dá conta de tudo. Seus temores infantis não puderam ser respeitados, nem por ela nem por seus pais. Desde pequenininha teve que ser grande, cruzar sozinha e em pânico os corredores escuros da casa da infância. Como expressar seus ciúmes, sua rivalidade, seu ódio, frente a uma irmãzinha tão estropiada? Como reivindicar cuidados para si frente a pais tão abalados pela dolorosa realidade de ter uma filha deformada? Na sala de análise parece encontrar um lugar onde mostrar a ela e a mim, o quanto se sente sem direito algum, o quanto não está bem.

Noites insones, um sono intenso. Feridas nas pernas de tanto coçar, dores nos tornozelos de tanto girar os pés em sua aflição insone. Seu corpo dolorido e ferido sinaliza o tormento das noites em claro. Nas marcas de seu corpo sua dor se revela. Não consegue se dar um colo, se contar uma história, se acalmar. Encontra-se num desamparo corporal onde uma cisão ocorre: sente o corpo anestesiado, mas pés e cabeça não desligam. Vive seu medo corporalmente. Não tem repouso, não tem sossego, não encontra um "nana nenê" dentro de si. Não consegue dormir, nem acordar. Como pegá-la no colo psiquicamente?

Carolina aponta para um funcionamento mental, que talvez tenha se instalado muito cedo, onde estabeleceu relações que parecem não ter permitido uma elaboração interna de pais que proporcionem cuidados. Quem sabe se identifique com a fantasia de uma mãe mortífera e rejeitadora, tornando-se uma mãe persecutória para si mesma. Carolina traz de início este "relato somático, uma comunicação infraverbal, com significação dinâmica e econômica particular, como um sonho que não ocorreu" (McDougall, 1996, p. 48). Não consegue dormir, não encontra uma saída pela via dos sonhos, suas fantasias aterrorizantes permanecem bloqueadas por não encontrar imagens ou palavras para exprimi-las. Carolina expressa por meio do funcionamento somático e pela atuação, as ideias fortemente carregadas de afeto, por não encontrar as palavras ou imagens, que cumpram a função simbólica para representá-las.

Nina chega ao consultório. O quadro de Renoir se completa: na sala de espera as duas meninas, "Rosa e Azul". Abraça, aperta, beija a irmãzinha de um ano e meio, despedese e entra na sala de análise.

"Quero pintá!" Diz baixinho.

Um rio, as pedras vermelhas, um tubarão preto. Pinta flores na superfície. "No fundo do mar tem tubarão que morde o pé". "Lá no fundo tem um buraco com crianças e peixinhos", relata-me ao pintar (figura 4).

Na outra folha, inicia pintando uma bolinha azul. Diz que é um peixinho. "Na casa da minha amiga tem uma tartaruga má, que mordeu o peixinho e saiu sangue". Coloca vermelho sobre o peixinho, pinta o mar de verde e, em seguida, com pinceladas fortes e firmes, o vermelho vai saindo do peixinho tingindo todo o mar de vermelho (figura 5).

Na camada superior flores tranquilas se posicionam. Uma camada de água permeável traça uma linha que as separa das pedras, barreira mais sólida a esconder o tumulto que naufraga na escuridão (figura 4). Consciente, Pré-consciente, Inconsciente? Id, Ego, Superego? O tubarão avança, envolto pela escuridão deste mar profundo, nesta paisagem atemporal e sinistra. As cores vivas das figuras anteriores já evidenciavam a força pulsional, destes "seres míticos e grandiosos" que habitam seu interior. Um tubarão cruel que ataca, morde e mata. A trama, ou o drama prossegue na figura 5, onde o ataque se efetiva, a morte acontece.

As figurações de Nina oferecem imagens às palavras de Freud ao esclarecer as estruturas psíquicas, apontando para uma representação metapsicológica de sua experiência, constituída pelo "conjunto de esforços econômicos empreendidos pelo psiquismo para representar a experiência emocional através de um estranhamento estético". (Junqueira Filho, 2009, p. 1.) Nina parece nos oferecer, em sua figuração, a descrição de seu processo psíquico em seus aspectos dinâmicos, topográficos e econômicos. Nina em seu pintar dá forma à "feiticeira" ao descrever o terror das profundezas de seu ser e as barreiras que se interpõe à camada superficial de aparente e florida tranquilidade.

 

 

 

Carolina deita-se no divã e relata um sonho:

Eu estava no pré-primário, com minhas amigas, na sala de aula. A escola era em uma chácara, em uma casa grande. Minha melhor amiga e eu entramos correndo por um túnel escuro e, de repente, minha amiga desaparece. Eu a procuro pelo túnel quando, no final dele, vejo um homem em frente a uma fornalha dizendo-me: Ela já foi queimada, agora é a sua vez! Eu corro, tentando fugir e vejo minha amiga queimada como um carvão, deitada morta sobre a colcha azul de bolinhas brancas.

O sonho, agora revivido em sua emoção, se externaliza em busca de um sentido e significação. E é ali, no espaço de uma experiência emocional estabelecida, que possíveis significados são gerados e novos sentidos podem aflorar.

As vozes da infância não são jamais esquecidas ou abandonadas. Cada um traz em si, à sua maneira, a totalidade de sua história. A história mais profunda, a menos esquecida, a menos superada, é aquela de nossos desejos, ancorados em nossas pulsões, impregnantes de nosso pensamento… O sonho nos mostra isto a cada noite (Green, 1995, p. 305, citado por Ana Azevedo5)

No sonho relatado na sessão, Carolina penetra no túnel (do tempo?) e reencontra-se em seu lugar de infância, deparando-se com suas fantasias infantis de ataque ao interior do corpo materno, carbonizando a irmã que nasce sindrômica. No sonho de Carolina a cena da fantasia infantil é re-visitada através do túnel do tempo que o sonho lhe oferece. Aprèscoup? O trauma re-visitado? A cena mais antiga em sua factualidade originária é rememorada pela moça, hoje com corpo sexualmente amadurecido, vendo-se ainda habitada por uma sexualidade pré-pubere, ainda no seu corpo de criança?

O sonho de Carolina ilustra a fantasia uretral de queimar, envenenar, como os desenhos de Nina, onde um "amarelo-xixi" invade toda a folha (figuras 1 e 3).6

Vemos meninas muito pulsionadas, sempre se regrando, que à noite se vêem entregues ao seu interior, ao desejo, ao ódio. É à noite que o terror as invade, é no sonho que elas atacam e temem ser atacadas de volta. Em meio ao medo atávico à noite, a excitação sexual e as fantasias terroríficas se incrementam.

Nas pinturas sonhos de Nina/Carolina um tubarão que fere e mata, o homem, a fornalha. Morre a menina, morre o "peixinho", há fogo, há sangue, há morte.

À noite Nina/Carolina mergulham nesta escuridão sem tempo, revelada no aqui e agora da sessão.

Outra cena, outro dia e Nina pinta em uma sequência o sonho de Carolina pelo avesso. A noite negra tudo invade, a menina é envolta na escuridão e, aos poucos um túnel se abre e dele surgem, ou re-surgem, a menina e a flor. Figs. 6, 7, 8, 9,1 0. "Lá no fundo tem um buraco com crianças e peixinhos" comentara há algum tempo a respeito da figura 4. Agora através do túnel a criança emerge da escuridão.

 

 

 

 

 

 

Nina tem três anos quando nasce a irmã, três anos e pouco quando morre a avó paterna, com quem era extremamente ligada. Um nascimento e uma morte em curto espaço de tempo. Um nascimento que lhe rouba o lugar de única filha, uma morte que lhe rouba a avó querida e dedicada a ela.

Na noite escura as estrelas brilham. "Vovó morreu e virou estrelinha", ela diz (figura 9). A concretude de seu pensamento infantil transforma sua noite estrelada num negro cemitério, repleto de defuntos pairando no céu. Aos poucos, no decorrer do processo analítico, a concretude da estrela-vovó-morte vai se revestindo do significado abstrato da saudade.

Pingos de tinta nas pernas de Nina, feridas nas de Carolina. Nina pinta o papel, pinta sua mão, faz "tatuagens" em seus e em meus braços. Agora ela é a "tatuadora e cabeleireira" e eu, sua cliente. Pinta meus braços, faz penteados em meu cabelo.

Carolina gira os pés, fere as pernas, fere a cabeça.

Dos pés à cabeça, à flor da pele. A pele que Nina pinta, Carolina fere.

"Vovó morreu de um machucado na perna" ela diz. Seu sonho/pesadelo já se mostrava nos pingos vermelhos de tinta na pele de suas pernas. E é em minha pele agora que Nina pinta seu sonho, imprimindo figura e sensação no deslizar do pincel em meu braço.

Na pele em que Nina simboliza sua fantasia, Carolina atua concretamente.

Para Nina a pele é tela e é neste enorme tecido que nos reveste, onde o centro se encontra na periferia, onde a casca é o núcleo, que Nina executa agora sua arte. "A pele e o cérebro são seres de superfície", ressalta Anzieu (1989, p. 10).

Para Carolina a pele é palco. E é neste palco corporal que encena ao arranhar-se, uma forma arcaica de retorno da agressividade contra seu próprio corpo. Há no coçar-se uma excitação erótica. Neste investimento autoerótico de sua própria pele, talvez sinalize o afastamento precoce de um continente para suas angústias.

Passando da pintura à cena, Nina personifica uma mãe cruel e terrorífica no palco de suas sessões. Como diretora e roteirista da trama determina-me o papel de filha assustada e chorona. Devo permanecer no escuro e chorar muito até que ela abra a porta e, de dedo em riste, vaticine sua ira contra mim: "Você pode ficar aí chorando, você só faz coisa feia, eu vou embora, vou deixar você aí sozinha no escuro, ninguém vai querer ficar com você, o Deus vai vir aqui te buscar e te levar embora para sempre". Estas e outras dramatizações, referentes às suas teorias sexuais e de origem dos bebês, são encenadas no palco analítico. Agora as imagens plásticas cedem lugar às representações dramáticas, dando forma e enredo a possíveis resíduos de suas primeiras identificações e vivências de fantasias.

Alterno minha "personagem" de filha aterrorizada pela violenta ira desta mãe imaginária, com a função de analista a legendar suas cenas. Quem é ela nesta história, ela como uma mamãe muito brava dela mesma, eu sendo ela assustada e com medo. Que coisas são estas tão feias que ela imagina que faz? Falo de seus ciúmes, de seu receio de ser má por senti-lo, o quanto pode ter sido difícil para ela ter tido uma irmãzinha, o quanto imagina que um Deus pode levá-la por estar brava e com raiva de estar ali dormindo sozinha enquanto a mamãe está dormindo com o papai. O quanto precisa fazer de conta que a mamãe é tão brava para o papai ser o bonzinho, enfim, como se passo a passo, cena a cena, a trama se desenrolasse com personificações e legendas, atuações e possíveis significados.7

Ora pinturas em minha pele, ora a fazer com que "eu sinta na pele" suas vivências de terror.

Agora munida de massa e panelinhas, encarna um papai a fazer deliciosos nhoques, que me oferece para provar. Comento, ingenuamente: – Ah! O papai é cozinheiro!– ao que ela responde com seriedade, firmeza e razão: – Não Celina, papai é PAPAI!

De volta às imagens plásticas, Nina realiza no decorrer da análise, uma série de pinturas de flores, que vão ganhando contorno e contenção no decorrer dos processos analítico e de desenvolvimento, sinalizando, possivelmente, a introjeção de figuras parentais propiciadoras de continência e proteção. Corte, recorte e colagem são recursos agora utilizados (figura 13). A exclusividade do uso de cores primárias cede espaço a novas tonalidades. Aquarela, lápis e canetinhas oferecem novos matizes, surgem as cores compostas e o desenho adquire profundidade e nova dimensão (figura 14).

Como diz Nina, Papai é Papai!

 

 

 

 

 

Carolina no divã. Outros dias, muitas falas, novo sonho.

Enquanto Nina dramatiza, Carolina narra sua "tragédia" onde vislumbra para si um destino imutável. Nada poderia desviá-la deste caminho fatídico. Terá que ser como a mãe a cuidar da irmã como a mãe o faz. Não consegue imaginar um outro modelo, embora existam tantos outros a seguir. Não faz negociações alternativas consigo mesma, não consegue se individuar como outra pessoa desejante. Seu destino está traçado, sem espaço para sonhar qualquer projeto de um existir próprio, de autoria genuína. Tem que suportar esta carga com resignação, não se revolta, não sente raiva, tem que ser santa e suportar tudo, à maneira de uma missão religiosa. Se os pais faltarem, será ela a herdeira deste destino cruel, fadada a cuidar sozinha da irmã deficiente, sem poder contar com a ajuda de ninguém. Identifica-se com uma mãe sacrificial, com uma mulher que abandona tudo para dedicarse inteiramente aos cuidados do outro. Uma mulher insubstituível e estóica, sem lugar para a sexualidade e para o prazer. Carolina sinaliza para uma matriz de superego arcaico e cruel, como se houvesse uma impossibilidade de saída deste ódio fundante, do qual sequer se dá conta. Como se evocasse Eríneas imortais, deusas vingadoras das quais, faça-se o que for, não pode escapar. "O corpo de uma mãe pode ser atingido, mas suas Eríneas não", nos diz Conrad Stein (1998, p. 37).

Como personagem de uma tragédia, Carolina carrega seu destino.

"A tragédia é o gênero literário que surge do trânsito, da mudança", diz Sônia Azambuja (2001) ao referir-se à necessidade do analista também viver o trágico e mudar de lugar quando o paciente o desloca. (p. 32).

No pensamento trágico, nós mesmos carregamos nosso destino, que já vem de longa data, como uma marca nas gerações que nos antecederam e nas gerações que virão. O conflito é nosso, é transgeracional. No mito – sonho coletivo – a responsabilidade é delegada muitas vezes aos Deuses. (p. 28)

Com Nina represento meu papel e interpreto o personagem que me cabe em cena. Com Carolina ouço, acompanho, interpreto, dando voz à personagem que ela representa na cena.

No decorrer do processo analítico as interpretações vão sendo construídas e formuladas, buscando reconhecer, apontar e desativar padrões carregados destas primitivas emoções e sentimentos violentos que podem aos poucos surgir nos sonhos e pensamentos. Busco ajudá-la nesta travessia desse universo arcaico do psiquismo, na esperança de que as figuras terroríficas das Eríneas possam dar lugar às Eumênides, mais generosas e benevolentes para consigo.8

Um novo sonho é relatado:

Vou buscar minha irmã na casa de uns tios meus. Eles a levaram para uma peregrinação religiosa. Encontro minha irmã abatida, com fome e mal cuidada, no chão de uma casa sem telhado e sem conforto. A pego em meu colo, grito, xingo e os ameaço, fico furiosa, corto relações para sempre com eles e vou embora com ela em meus braços.

Na película do sonho sentimentos violentos se apresentam, agora nas imagens oníricas, não mais nas marcas na carne. Carolina expressa em suas imagens/sonho sentimentos violentos e carregados de afeto, que antes só encontravam o caminho somático como via de representação.

Seu sacrifício ganha forma na "peregrinação religiosa", seu desconforto se configura na imagem da menina abatida e mal cuidada.

Será mesmo a irmã que ela toma em seus braços?

Ou terá encontrado um modo de se dar um colo, de se acolher, de se cuidar bem?

E se… o sonho representar uma impossibilidade de romper com os padrões arcaicos e cruéis que regem seu destino?

Então… tomará para si a missão desta mártir, seguindo o caminho que supõe estar a ela determinado.

E se… o sonho representar a possibilidade de resgatar-se em seus braços, deixar esta casa sem telhado e sonho e partir em busca de um lugar com mais conforto e alimento, rompendo com padrões pré-estabelecidos?

Então… quiçá abandone seus antigos modelos de tanto sacrifício, corte relações com estes mandados tão severos que a maltratam e tome a direção de um caminho mais benevolente e acolhedor.

E como seria hoje Carolina, se como Nina, tivesse sido ouvida em sua aflição infantil?

Se tivesse podido teatralizar suas dores em espaço e tempo mais precoces?

E Nina… terá destino diverso de Carolina?

E se… e então

 

Referências

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Renoir, P. -A. (1881). Rosa e azul: as meninas. Pierre-Auguste Renoir 1881, óleo sobre tela. Acervo do MASP.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Celina Anhaia Mello
Rua João Lourenço, 683, cj. 92
04508-031 São Paulo, SP
e-mail: ceanhaia@terra.com.br

[Recebido em 10/02/2010, aceito em 15/03/2010]

 

 

1 Trabalho apresentado em Reunião Científica na SBPSP em 24/10/2009. Comentadora: Myrna Pia Favilli.
2 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
3 Como nos diz Freud, "a transformação dos pensamentos oníricos latentes no conteúdo manifesto do sonho merece toda nossa atenção, visto ser este o primeiro exemplo que nos é conhecido de transposição do material psíquico de um modo de expressão para outro, de um modo de expressão que nos é imediatamente inteligível para outro que só podemos chegar a entender com ajuda de orientação e esforço". (Freud, 1901/1987, p. 578).
4 Citando Ana Maria Azevedo: "O trabalho do sonho nos leva à estrutura pulsional inconsciente. Com o conceito de realidade psíquica e de espaço psíquico é o inconsciente que se exprime, constituindo-se no fundamento de subjetividade e é nessa dimensão psíquica que se dá a transformação pulsional, tornando visível o sonho. Entre o processo secundário que é o pensamento propriamente dito e o sono, situa-se então o sonho, que embora atividade do processo primário, constitui-se num outro tipo de pensamento, cuja lógica Freud nos chama a descobrir." (Azevedo, não publicado)
5 Green, A. (1995). La causalité psychique. Paris: Odile Jacob.
6 Na fantasia de queimar com a urina temos a expressão da fúria e agressão infantis, o desejo de agredir e aniquilar a mãe... deseja alagá-la de urina, numa cólera candente... quando o sadismo urinário atinge o auge, o que a criança sente que pode fazer é alagar e queimar a mãe com sua urina. Indubitavelmente sente que ela própria é dominada, inundada e alagada pela sua raiva impotente, como se o fogo a devorasse. O caudal de água vertida por uma torneira, o fogo bramindo, o rio transbordando ou o mar tempestuoso, quando são vistos ou conhecidos como realidades externas, associam-se em sua mente com as primitivas experiências corporais, os anseios instintivos e as fantasias. E quando lhe dão os nomes dessas coisas, a criança pode então, por vezes, colocar estas fantasias em palavras. (Isaacs, 1982, pp. 108-109)
7 Penso que a citação a seguir pode nos sugerir um significado possível: "A criança, por sua vez, reage à ruptura da continuidade desse laço com a mãe, desejando separar os pais unidos na cena primitiva. Mas, estas diferentes interrupções dos vínculos entre mãe e pai, são pagas pela culpabilidade e pela gênese do Superego e Ideal do Ego (Green, 2008, p. 236).
8 A leitura da transformação das Eríneas, entidades ferozmente persecutórias, em Eumênides, compreensivas e tolerantes, permite-nos estabelecer correlações entre os dois grupos de matrizes de superego, com ampla diversidade em graus e matizes de Ética e Justiça: a) de um lado as Eríneas, representantes de sentimentos de vingança e retaliação e b) as Eumênides, que contém os sentimentos de compaixão madura e de compreensão de outro, por travessia e imersão nas profundidades das águas da posição depressiva (Sapienza, 2001, p. 18)