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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.1 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

O conceito de psicose atual na psicossomática psicanalítica de Joyce McDougall

 

El concepto de psicosis actual en la psicosomática psicoanalítica de Joyce McDougall

 

The actual psychosis concept on Joyce McDougall's psychoanalytic psychosomatics

 

 

Rodrigo Sanches PeresI,1; Manoel Antônio dos SantosII,2

IUberlândia
II
Ribeirão Preto

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo tem como objetivo contemplar algumas possíveis intersecções entre psicanálise, psicossomática e psicopatologia a partir do delineamento de um dos mais intrigantes conceitos propostos por McDougall: "psicose atual". Embora constituída com base em um núcleo psicótico, a psicose atual remete a uma problemática pré-neurótica, uma vez que não resulta na produção de alucinações ou delírios, mas leva o corpo a se comportar de forma delirante, o que predispõe o sujeito a doenças orgânicas. Tais doenças seriam, em última instância, resultantes da ação de mecanismos somáticos, e não mentais, disparados por conflitos de ordem emocional. Ou seja: ao contrário da sintomatologia histérica decorrente da conversão, seriam desprovidas de significado simbólico. Com o conceito de "psicose atual", portanto, a autora delineia, de forma ousada, um novo horizonte para a teorização psicanalítica, permitindo o reposicionamento da clínica com pacientes somáticos.

Palavras-chave: psicanálise; corpo; psicossomática; neurose atual; psicologia clínica.


RESUMEN

El estudio tiene como objetivo contemplar algunas posibles intersecciones entre psicoanálisis, psicosomática y psicopatología desde el delineamento de uno de los conceptos más intrigantes propuestos por McDougall: "psicosis actual". Aunque fundada con base en un núcleo psicópata, la psicosis actual remite a un problema pre-neurótico, pues no resulta en la producción de alucinaciones o delirios, pero hace el cuerpo portarse de manera delirante, lo que predispone el sujeto a las enfermedades orgánicas. Tales enfermedades serían, en última instancia, resultantes de las acciones de mecanismos somáticos, y no mecanismos mentales, desencadenados por los conflictos emocionales. En otras palabras: al contrario de los síntomas histéricos promovidos por la conversión, no tienen significado simbólico. Con el concepto de "psicosis actual", por consiguiente, la autora delinea, de una manera osada, un nuevo horizonte para la teoría psicoanalítica, permitiendo el reemplazo de la clínica de los pacientes somáticos.

Palabras clave: psicoanálisis; cuerpo; psicosomática; neurosis actuales.


ABSTRACT

This study has as its objective the contemplation of possible intersections between psychoanalysis, psychosomatics and psychopathology, from the delimitation of one of the most intriguing concepts proposed by McDougall: "actual psychosis". Although constituted with basis in a psychotic nucleus, actual psychosis remits to a pre-neurotic problem, as it doesn't result in the production of hallucinations or deliriums, but makes the body behaving in a delirious way, which predisposes the subject to organic diseases. Such diseases would be, ultimately, resultant of the action of somatic mechanisms, and not mental mechanisms, unchained by emotional conflicts. In other words: unlike the hysterical symptomatology promoted by conversion, they are without symbolic meaning. With the "actual psychosis" concept, therefore, the author delimits, in a daring way, a new horizon for psychoanalytical theorization, allowing the revision of the standing of the somatic patients' clinic.

Keywords: Psychoanalysis; body; psychosomatics; actual neurosis; clinical psychology.


 

 

O corpo em cena

De acordo com Mello Filho (1994), o termo "psicossomática", originalmente proposto em 1818 pelo psiquiatra alemão Johann Christian Heinroth como adjetivo para fazer referência a certas doenças orgânicas em cuja etiologia os fatores emocionais aparentemente ocupavam papel central, deve ser utilizado na atualidade como substantivo para nomear uma disciplina científica que se apóia na hipótese da existência de uma unidade funcional entre o somático e o psíquico. Tal hipótese, a propósito, remonta à Antiguidade clássica, dado que foi vislumbrada pela primeira vez por Hipócrates, filósofo responsável pela superação das crenças mágico-animistas que imperavam na medicina pré-helênica (Volich, 2000).

A psicossomática e a psicanálise se encontram articuladas historicamente, pois é notório que a preocupação com a questão do corpo foi fundamental para a migração freudiana da neurologia para a psicologia3. Contudo, deve-se esclarecer que, a despeito de seus revolucionários estudos sobre a histeria terem atestado a susceptibilidade do biológico às, vicissitudes da mente, Freud não se preocupou em descrever de modo pormenorizado os fenômenos psicossomáticos (Casetto, 2006). Ainda assim, estabeleceu novos parâmetros para a compreensão das relações entre as experiências orgânicas e as vivências emocionais, uma vez que sua obra trata do assunto, conforme observa Volich (1998), do início ao fim, quer seja versando sobre processos oníricos, sexualidade ou psicopatologia.

Portanto, Freud foi responsável pela instituição dos pressupostos que serviram de base para que outros autores pudessem, em um segundo momento, resgatar a concepção psicossomática hipocrática do ostracismo ao qual o dualismo cartesiano havia lhe condenado. Vale mencionar, porém, que não se pode acusar o pai da psicanálise de promover um reducionismo psicológico incompatível com a evolução científica da medicina. Como esclarece Simanke (2006),

Freud, o mais empedernido dos materialistas, nunca subscreveria qualquer espécie de autonomia ontológica do psíquico […]: o que ele propôs foi uma autonomia metodológica do psíquico, que permitiu abrir mão da referência ao dado orgânico na explicação deste domínio de fatos. (p. 141)

Joyce McDougall, psicanalista neozelandesa radicada na França, é considerada um dos principais expoentes da psicossomática na atualidade4. Por se mostrar capaz de renunciar a sectarismos e estabelecer um diálogo tão audacioso quanto profícuo entre autores franceses e anglo-saxões, tem apresentado contribuições de grande relevância para a compreensão das complexas relações que se estabelecem entre mente e corpo. Além disso, McDougall concede total liberdade a seu pensamento, de maneira que não hesita em questionar os princípios freudianos clássicos ou em problematizar suas próprias concepções ao se deparar com os impasses inerentes à clínica psicanalítica (Menahem, 2001).

Diversos autores têm introduzido novos termos técnicos no vocabulário psicanalítico, sobretudo devido à descrição de manifestações psicopatológicas com desdobramentos orgânicos que não podem ser explicadas de modo totalmente satisfatório pela teorização freudiana. A inventividade de McDougall a destaca nesse cenário por ensejar a criação de uma série de conceitos originais. Alguns deles já foram explorados em detalhes por especialistas5, ao passo que outros ainda permanecem pouco difundidos. O presente estudo tem como objetivo contemplar algumas intersecções entre psicanálise, psicossomática e psicopatologia a partir do delineamento de um dos conceitos mais intrigantes – e, paradoxalmente, menos conhecidos – de McDougall: "psicose atual". Para tanto, nos apoiaremos em publicações da autora em questão e em textos de seus principais comentadores. Ademais, recorreremos, pontualmente, às artes plásticas e à literatura na busca de recursos ilustrativos da argumentação sustentada.

Entre o corpo anatômico e o corpo erógeno

Segundo McDougall (1994), pacientes somáticos6 geralmente são pouco capazes de lidar com afetos potencialmente desestruturantes, de modo que recorrem a estratégias defensivas arcaicas que lembram as "… soluções encontradas por uma criança para sobreviver psiquicamente diante de um sofrimento de outro modo inelaborável" (p. 76). Tais estratégias defensivas são adotadas inconscientemente e envolvem, na maioria das vezes, a exclusão sumária do aparelho mental de representações carregadas de sentimentos intoleráveis. Como destaca Montagna (1988), essa pulverização das emoções torna inviável o trabalho de elaboração que se faz necessário para a formação de um sintoma psíquico.

Por apresentar importantes particularidades, esse recurso protetor não deve ser comparado à repressão e tampouco ao recalque. Afinal, conforme Laplanche e Pontalis (2000), a repressão tem um caráter consciente e amiúde é impulsionada por motivações morais, ao passo que o recalque visa a repelir para o inconsciente representações ligadas a uma pulsão cuja satisfação proporcionaria prazer por si mesma, mas causaria desprazer devido à existência de outras exigências. A tendência a ejetar do próprio psiquismo percepções, fantasias e pensamentos associados a afetos que poderiam causar sofrimento, por seu turno, não é empreendida conscientemente e não transforma o conteúdo excluído em material inconsciente (McDougall, 1983).

Essa tendência se assemelha, em seus aspectos principais, a uma operação psíquica identificada desde os primórdios da psicanálise: o repúdio para fora do ego (verwerfung). Trata-se, para Freud (1894a/1996), de "uma espécie de defesa muito mais poderosa e bemsucedida. Nela, o ego rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais tivesse lhe ocorrido" (p. 64). É justamente por essa razão que o repúdio para fora do ego pode ser situado no extremo inferior de uma gradação de movimentos protetores que tem, em seu extremo superior, o juízo de condenação, que é considerado o substituto intelectual do recalque.

Na teorização psicanalítica pós-freudiana o repúdio para fora do ego geralmente é entendido como uma defesa específica das psicoses, pois amiúde se desdobra no surgimento de alucinações e delírios. Lacan (1992), a propósito, partiu desse princípio para propor que a rejeição do falo como significante estruturante do complexo de castração desempenha papel central na etiologia das psicoses. No entanto, ao fazer referência a essa rejeição primordial, optou por empregar o termo francês forclusion ("forclusão", em português) como equivalente do verbete alemão verwerfung, cuja tradução mais adequada para a língua portuguesa seria, segundo Laplanche e Pontalis (2000), "repúdio" ou "rejeição".

McDougall (1991), todavia, sustenta que os afetos pulverizados do aparelho mental por pacientes somáticos não geram sintomas psicóticos, mas, sim, se perdem sem qualquer espécie de compensação psíquica e tendem, como consequência, a serem reduzidos à sua pura expressão somática. A autora em questão, a despeito de reconhecer o risco de fomentar uma discussão retórica, defende que há, nessas circunstâncias, uma espécie de forclusão dos afetos, e não da castração. Ou seja, a expulsão do psiquismo de emoções que poderiam causar desprazer promove uma cisão entre o corpo anatômico e o corpo erógeno, ensejando a ressomatização dos afetos (Rocha, 1988).

Vale lembrar que, para Freud (1894b/1996), os afetos, quando desligados das representações, são convertidos, deslocados ou transformados, como ocorre, respectivamente, na histeria, na neurose obsessiva e na neurose de angústia ou na melancolia. A possibilidade de um indivíduo atacar impiedosamente suas emoções com o intuito de destruir as significações a elas relacionadas e, assim, desvitalizar seu mundo interno não foi, portanto, considerada na obra freudiana. Dessa maneira, deduz-se que McDougall identifica a existência de um quarto destino para os afetos e, assim, de maneira ousada delineia um novo horizonte para a teorização psicanalítica. Ademais, à medida que desenvolve essa argumentação, reelabora a distinção entre corpo somático e corpo erógeno.

Das angústias psicóticas à loucura corporal

Segundo McDougall (1989), pacientes somáticos, quando submetidos a tensões que desencadeiam intenso desprazer, tendem a recorrer ao estabelecimento de vínculos simbióticos. Esse fenômeno seria uma tentativa de se fundir ao outro, reimplementando uma condição de indiferenciação supostamente protetora equivalente àquela que se observa nos primeiros meses de vida. Quando esporádico, esse tipo de recurso defensivo pode se mostrar funcional. Se recorrente, leva o sujeito a abrir mão da plena posse de si mesmo, o que compromete a identificação dos limites corporais e enseja a eclosão de angústias psicóticas análogas, por exemplo, àquelas experimentadas pela personagem anônima do conto "Dentro de um espelho" 7, do escritor russo Valiéri Briússov (1873-1924).

Tal personagem se funde com uma das "almas obscuras" que habitam as profundezas dos espelhos e, assim, se perde no entrecruzamento do mundo real com o mundo espectral. Essas "almas obscuras" são consideradas, pela mesma, constituintes de um universo à parte, impenetrável – e sedutor, justamente por esse motivo – a ponto de turvar os pensamentos de quem ousar decifrar seus enigmas, promovendo, dessa forma, uma vivência de extremo estranhamento em relação àquilo que há de mais individual em cada ser humano: o próprio corpo. Nesse caso, a diluição das fronteiras psíquicas tem seu correlato no colapso dos contornos corporais, impulsionado pela regressão a um estágio de indiferenciação primária em que se restaura ilusoriamente a vivência de um único corpo para dois seres vivos.

McDougall (2001) esclarece que

… todo indivíduo deve conjugar a sua realidade psíquica, durante a vida, com o desejo primitivo de retorno ao estado de fusão com a mãe-universo: em outras palavras, com o desejo do não-desejo. A luta contra esse desejo e o luto que ela impõe são compensados, como todos nós sabemos, pela aquisição da identidade subjetiva (p. 13).

Porém, nas situações em que a separação e a diferença não emergem como conquistas psíquicas determinadas pela introjeção de uma imagem positiva da figura materna, ocorre uma renúncia à própria individualidade. A luta é contra o luto, à medida que se exclui a realidade da perda. Cria-se, como consequência, a ilusão de que o mundo interno e o mundo externo são, na verdade, um único mundo (Peres, 2006). Essa expressão do desejo do não-desejo tem sua forma mais acabada no sentimento de diluição das fronteiras do ego.

A liada ao temor psicótico de desintegração que não raro se produz em decorrência da fusão com o outro, tal ilusão faz com que a troca de mensagens entre o corpo e a mente seja intermediada por um terceiro destinatário. Os pedidos de socorro emitidos pelo psiquismo podem, então, ser interpretados como o sinal de uma ameaça de ordem biológica, a qual o organismo reagirá à sua maneira. Favorecendo o rompimento das barreiras imunológicas, essa reação tende a abrir caminho para a instalação de uma somatização. McDougall (1991), portanto, sustenta que a persistência, na idade adulta, da fantasia infantil que engendra a crença irracional na existência de apenas um corpo para dois seres vivos, além de revelar um importante comprometimento da saúde mental, pode ter consequências sérias para a saúde física.

Seguindo esse raciocínio, a autora defende que muitos pacientes somáticos apresentam uma problemática pré-neurótica. Assim, podem ser comparados, do ponto de vista estrutural, a pacientes psicóticos, já que essa problemática faz com que o corpo seja representado imaginariamente como uma quimera frágil e desarticulada, semelhante às figuras femininas angulosas e descontínuas que se vêem na clássica tela, que inaugura o movimento cubista, "Les demoiselles d'Avignon", do pintor espanhol Pablo Ruiz Picasso (1881-1973). McDougall (1991) acrescenta ainda que a comparação entre pacientes psicóticos e pacientes somáticos "não se limita à força dinâmica das fantasias primitivas: em alguns casos, revela uma semelhança quanto aos recursos econômicos mobilizados para se defender de terrores arcaicos" (p. 20).

A existência de diferenças do ponto de vista sintomatológico entre pacientes somáticos e pacientes psicóticos, entretanto, é inegável, visto que muitas vezes os primeiros se mostram adaptados, ainda que de forma normopática, ao mundo externo, ao passo que os segundos invariavelmente apresentam um funcionamento marcado por um colapso do juízo de realidade. A pseudonormalidade indica uma subordinação demasiada às demandas exteriores. Já a criação psicótica de uma neorrealidade, impulsionada por delírios e alucinações, sugere uma total intolerância a essas demandas. E tal intolerância, cumpre assinalar, tem como causa principal um bloqueio da função mental – preservada na grande maioria dos pacientes somáticos – que Freud (1925a/1996) considerava uma espécie de "ação experimental": o pensamento.

Dominados por fantasias cuja função precípua é preencher o vazio produzido pelo rompimento com o mundo exterior, pacientes psicóticos – assim como Virgílio, protagonista de uma das principais obras do escritor alemão Hermann Broch8 (1886-1951) – empregam a palavra de maneira pré-lógica e demonstram, consequentemente, uma vivência afetiva transbordante. A nosografia psiquiátrica de certo modo reconhece esse fato, já que estabelece que alucinações e delírios são sintomas positivos, isto é, decorrentes de um excesso das funções mentais normais. Pacientes somáticos, em contrapartida, se contentam em eliminar a significação de suas relações com a realidade externa, o que denuncia um empobrecimento extremo da atividade psíquica. O apagamento dos elos que conectam significado às experiências emocionais resulta em desvitalização do mundo interno. Para compensar essa desertificação interior, o paciente pode desenvolver uma subserviência extrema à realidade externa.

Outra diferença entre pacientes psicóticos e pacientes somáticos torna-se patente mediante a identificação de suas estratégias defensivas típicas. Para Freud (1925b/1996), as psicoses têm como primeiro momento a recusa da realidade. Essa operação psíquica permite ao sujeito proteger-se de estímulos oriundos da percepção, visto que incide sobre o meio. Por outro lado, pacientes somáticos se defendem, segundo McDougall (1983), da própria realidade interna, apelando, como já discutido, a uma variante do repúdio para fora do ego. Vale destacar, a propósito, que, conforme observa Simanke (2006), o repúdio para fora do ego é concebido, na teorização freudiana, como uma defesa arcaica, mas não exclusiva das psicoses. Isso sem dúvida confere maior sustentação à hipótese de McDougall.

É justamente por conta das razões precedentes que McDougall (1989) propõe que pacientes somáticos podem ser considerados portadores de uma modalidade particular de psicopatologia, a qual nomeou "psicose atual". Embora constituída a partir de um núcleo psicótico, a psicose atual não produz alucinações, mas leva o corpo a se comportar de forma delirante, o que predispõe o sujeito a doenças orgânicas. Tais doenças se afiguram, portanto, como o resultado da ação de mecanismos somáticos – e não mentais – disparados por conflitos de ordem emocional. Ou seja, em contraste com a sintomatologia histérica decorrente da conversão tal como apresentada por Emma Bovary9, clássica personagem do escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880), as manifestações dos pacientes somáticos são totalmente desprovidas de significado simbólico.

Neuroses atuais e psicose atual

Ferraz (2007) parte do conceito de "neurose atual" para desvendar o estatuto do corpo na obra freudiana. O autor defende que o corpo poderia ser considerado um "resto" da teoria psicanalítica, à medida que circunscreve aquilo que foi abandonado como objeto de estudo em determinado ponto de sua evolução. E esse abandono decorre basicamente do fato do corpo se constituir, em essência, como um "resto" da ontogênese psíquica. Tal proposição parte do princípio de que, nas neuroses atuais, sintomas físicos predominam devido à superação dos limites do representável, a qual institui um funcionamento psíquico regulado sobretudo por esquemas filogenéticos. Ou seja: um funcionamento psíquico moldado por sua determinação biológica, aquém da colonização libidinal do corpo e suas funções que deveria ter início na primeira infância.

Tendo em vista o que precede, conclui-se que as descompensações físicas típicas da psicose atual são análogas, em seus aspectos principais, às disfunções somáticas que se observam nas neuroses atuais. McDougall (1991) deixa explícito que o adjetivo "atual" foi escolhido não apenas para diferenciar a condição clínica em questão dos tipos mais usuais de psicose, mas, sobretudo, para sinalizar essa aproximação com a neurose de angústia, a neurastenia e a hipocondria. Entretanto, vale destacar que a psicose atual aparentemente tem como fatores etiológicos básicos traumatismos psíquicos anteriores à aquisição da palavra decorrentes de carências ou excessos no exercício da função materna. Dessa maneira, seus sintomas, apesar de precipitados por eventos do presente, estão intimamente relacionados a acontecimentos remotos.

Cumpre assinalar ainda que, por mais paradoxal que possa parecer à primeira vista, McDougall (1991) sustenta que, geralmente, as somatizações associadas à psicose atual indicam uma reação inconsciente ao sofrimento emocional indizível, que deve ser entendida, em última análise, como uma espécie de tentativa de cura. Trata-se, sem dúvida, de um expediente pouco resolutivo, pois, além de não proteger o aparelho mental, coloca em risco a vida do sujeito. Por outro lado, sugere que uma luta vem sendo travada contra afetos interpretados – muitas vezes erroneamente – como uma ameaça à integridade psíquica (McDougall, 1994). O que torna essa luta especialmente problemática é que seu principal desdobramento é a transformação do corpo em um campo de batalha.

Deve-se mencionar que a hipótese em questão é claramente inspirada na teoria do narcisismo, já que somente depois de observar que a libido do adulto pode, tal como a libido da criança, reinvestir o ego e desinvestir totalmente o objeto, Freud (1924/1996) pôde propor que, nas psicoses, "…as manifestações do processo patogênico são amiúde recobertas por manifestações de uma tentativa de cura ou uma reconstrução" (p. 169). Surgiu, assim, uma concepção não-deficitária dos delírios, radicalmente oposta, por definição, à concepção psiquiátrica intelectualista vigente até então, a qual entendia esses fenômenos como manifestações necessariamente disfuncionais (Simanke, 2006).

A aplicação clínica dessa proposta é evidente. O analista deve se colocar na posição de escutar o impronunciável do corpo, buscando articular as zonas silenciosas do sofrimento psíquico com a função simbólica. Nesse sentido, McDougall (1991) defende que ao analista impor-se-á o desafio de funcionar como um filtro capaz de regular o afluxo de excitações do qual o paciente somático tende a se livrar apelando à descarga corporal por não ter acesso às palavras que poderiam torná-lo dizível. Trata-se, em última instância, de desempenhar a função materna, sobretudo mediante a decodificação de uma modalidade de comunicação cuja impregnação afetiva é escassa.

O corpo encena… o corpo ensina

Apoiando-se na teorização psicanalítica pós-freudiana, no presente estudo examinamos o conceito de "psicose atual", contemplando, assim, algumas possíveis intersecções entre psicanálise, psicossomática e psicopatologia. Essas intersecções, a propósito, se tornam evidentes se relembrarmos que a psicanálise, conforme seu fundador, constitui, antes de mais nada, um procedimento para a investigação dos processos mentais profundos, cujo método consiste basicamente em explorar o significado das produções do inconsciente (Freud, 1923/1996). Em função disso, Eizirik (2007) sustenta que a psicanálise, além de uma disciplina científica per se, foi e continuará sendo "… uma das ciências básicas da psiquiatria, ou seja, uma das disciplinas que fundamentam a compreensão do funcionamento psíquico normal, das diferentes expressões da psicopatologia e dos meios através dos quais a ação terapêutica de nossas diferentes intervenções pode ter efeitos positivos, inócuos ou iatrogênicos" (p. 15). Ou seja: a psicanálise ainda tem importantes contribuições a prestar ao debate psicopatológico.

Contudo, há que se reconhecer que o diálogo entre psicanálise e psiquiatria pressupõe uma relação de complementaridade, e não de oposição. Tal ressalva se faz necessária para que possam ser contornadas antigas polêmicas que conduzem a impasses ideológicos contraproducentes. Afinal, cumpre assinalar que a psicanálise, como qualquer ciência, depende da produção de conhecimento para continuar se renovando. O autor supracitado inclusive a concebeu em uma publicação anterior como uma "obra em construção" e defendeu que a descoberta de possibilidades de intercâmbio com outras disciplinas é um dos maiores desafios que a atualidade lhe impõe (Eizirik, 2006).

A psicopatologia e a psicossomática se destacam como disciplinas com as quais a psicanálise pode estabelecer um intercâmbio dos mais profícuos, sobretudo à luz dos desenvolvimentos teóricos de McDougall. Essa proposição parte do princípio de que, conforme a formulação freudiana, os afetos podem ser convertidos, deslocados ou transformados, mas, para a autora em questão, há um quarto destino pulsional. Se atingido, esse quarto destino pulsional implica em uma pulverização dos afetos sem qualquer espécie de compensação psíquica. Isso é o que ocorre na psicose atual e promove uma redução desses afetos à sua pura expressão somática. Logo, conclui-se que McDougall, dialogando com a psicopatologia e a psicossomática, introduz, de forma original, um novo horizonte no pensamento psicanalítico, que contribui para reposicionar a clínica psicanalítica frente aos desafios dos pacientes somáticos.

Para concluirmos, parece oportuno fazer uma breve alusão à gravura "Disparate pobre", do pintor espanhol Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828). Segundo uma das diversas leituras possíveis dessa obra, vê-se uma mulher sustentando um tênue equilíbrio entre personificações da Saúde e da Loucura. A primeira lhe acena com um discreto sorriso à esquerda, ao passo que a segunda a espreita nas trevas à direita. Trata-se de uma imagem ilustrativa da condição que caracteriza os indivíduos cuja estruturação psíquica pode ser compreendida à luz do conceito de "psicose atual". Contudo, essa condição, por manter-se às custas da pulverização das emoções, enseja a tradução somática de uma história sem palavras, a qual, privada de significado simbólico, ocupa o lugar de sonhos malogrados.

 

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Vieira, W. C. (1997). A psicossomática de Pierre Marty. In F. C. Ferraz & R. M. Volich (orgs.), Psicossoma: psicossomática psicanalítica (pp. 15-22). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Volich, R. M. (1998). Fundamentos psicanalíticos da clínica psicossomática. In R. M. Volich, F. C. Ferraz & M. A. A. C. Arantes (orgs.), Psicossoma II: psicossomática psicanalítica (pp. 17-31). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Volich, R. M. (2000). Psicossomática: de Hipócrates à Psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

 

Endereço para correspondência
Rodrigo Sanches Peres
[Universidade Federal de Uberlândia – Instituto de Psicologia]
Av. Pará, 1720, Bloco 2C
Campus Umuarama 38401-136
Uberlândia, MG
e-mail: rodrigosanchesperes@yahoo.com.br

 

Manoel Antônio dos Santos
[Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto]
Av. Bandeirantes, 3900
Bairro Monte Alegre 14040-901 Ribeirão Preto, SP
e-mail: masantos@ffclrp.usp.br

[Recebido em 20/01/2010, aceito em 10/02/2010]

 

 

1 Psicólogo pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Universidade Estadual Paulista, mestre e doutor em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia, professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
2 Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
3Uma discussão pormenorizada da noção de corpo em psicanálise pode ser encontrada em um abrangente estudo de Fernandes (2003). A evolução teórica dessa noção na obra freudiana, a propósito, é qualificada como "sinuosa" por Ferraz (2007).
4Pierre Marty ainda deve ser considerado uma referência no assunto. Um contato inicial com a obra desse autor pode ser estabelecido por meio de um esclarecedor estudo de Vieira (1997). Ademais, as convergências e divergências das proposições de Marty e McDougall foram esboçadas em um estudo de Peres (2006).
5Os conceitos de "desafetação" e "normopatia", por exemplo, foram objeto de valiosos estudos empreendidos por Bunemer (1995) e Ferraz (2002), respectivamente.
6 Esse termo será utilizado ao longo do texto para fazer referência aos portadores de doenças orgânicas – sobretudo, mas não somente condições crônicas não-transmissíveis – que apresentam alterações das funções fisiológicas motivadas por fatores de natureza diversa.
7 Embora escrito originalmente em 1903, o conto em questão foi publicado em português somente em 2007, na coletânea "Os melhores contos de loucura", organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada pela Ediouro.
8 "A morte de Virgílio", publicada pela Nova Fronteira.
9
"Madame Bovary", publicado pela Nova Alexandria.