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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.1 São Paulo  2010

 

RESENHAS

 

Origens de Winnicott Ascendentes psicanalíticos e filosóficos de um Pensamento original

 

Autor: Roberto B. Graña
Editora: Casa do Psicólogo, 2007

Resenhado por: Celso Halperin,1 Porto Alegre

 

 

É impossível terminar a leitura de Origens de Winnicott sem um profundo sentimento de estarmos diante de um Winnicott completamente diferente ao estado anterior à leitura desse livro. O impacto produzido pelo texto se dá pela capacidade de Graña de articular a obra de Winnicott, que raramente faz referência à sua ancestralidade teórica e intelectual, com outros seis autores, sendo a maioria deles pensadores da psicanálise e da filosofia com grande erudição intelectual. Esse trabalho mais se reveste de qualidades por ser Winnicott um pensador predominantemente intuitivo, grande amante da clínica, da música, do esporte e da poesia. Nunca pretendeu ser um grande erudito, colecionador de saberes. Muito pelo contrário, Winnicott sentia-se atraído por aquilo que lhe tocasse intimamente. Se algo lhe encantava, naturalmente passava a considerar como sendo seu, de forma tão autêntica que já não poderia mais citar de onde o extraíra originalmente. A despeito disso tudo, sua originalidade e sua genialidade deixaram marcas indeléveis na psicanálise. A partir dessas características, Graña se propõe – e alcança êxito – a rastrear as ideias criadas, destruídas e usadas por Winnicott ao longo de sua obra, e relacionar com importantes conceitos de pensadores fundamentais para a psicanálise e para a filosofia. Convida-nos a acompanhálo nessa trajetória presumida que Winnicott faz, seja pela leitura direta, seja pela apreensão do conhecimento na cultura, de recriar o mundo que encontra, de forma a senti-lo como seu, com rara originalidade. O autor esquematiza sua trajetória, dividindo o livro em duas partes:

A primeira, "Ancestralidade psicanalítica" (bem mais estudada por outros autores, como demonstra a bibliografia usada por Graña), em que correlaciona a obra de Winnicott com o pensamento de Freud, Ferenczi e Klein; e a segunda parte denominada "Ancestralidade filosófica", onde correlaciona Winnicott com os pensamentos de Berkeley, Hume e Merleau-Ponty. Vejamos então, de forma muito resumida, alguns exemplos desse hercúleo trabalho.

 

Freud em Winnicott

Diferente de outros pensadores da psicanálise, Winnicott manifestou uma atitude mais anárquica e muitas vezes ambivalente em relação à obra de Freud. Alternava entre afirmações tipo "ninguém é mais freudiano do que eu" e uma posição aparentemente antagônica de declarar que se sentia incapaz de seguir a qualquer um, inclusive Freud. Winnicott colide com vários conceitos freudianos, como o da pulsão de morte, não valoriza o conceito de desenvolvimento da libido, e não se mostra muito interessado na conflitiva edípica. Graña percorre, a partir de alguns conceitos-chave de Winnicott, como o da ilusão e transicionalidade, a correlação e a raiz teórica desses conceitos na obra de Freud. Mostra-nos que Freud não tinha muita simpatia pelo termo Ilusão, vendo-o como algo que obscurece o conhecimento do real. Apesar disso, Graña não está propondo uma comparação de teorias, ou mesmo a substituição de uma teoria por outra. Muito além disso, propõe-nos, justamente através de uma fina acurácia, detectar os pontos de contato e de influência de Freud nos conceitos desenvolvidos por Winnicott. E encontra vários. Relaciona, por exemplo, "Observação de bebês em uma situação estabelecida", um dos primeiros trabalhos psicanalíticos de Winnicott e que serviu de base para vários desenvolvimentos posteriores, como os conceitos de criar, sustentar, destruir e, posteriormente, usar o objeto com as observações de Freud em "Além do princípio do prazer" e mesmo no "Projeto para uma psicologia científica" de 1895.

Winnicott desenvolverá alguns conceitos da psicanálise. A mãe, por exemplo, envolve uma dimensão ampliada da de Freud. Para a "mãe" de Winnicott já não basta satisfazer as exigências da pulsão, mas necessário se faz atender o bebê na sua totalidade, ou seja, tanto os desejos quanto as necessidades. Assim, Winnicott propõe uma mãe que traga um atendimento a todas (do ponto de vista do bebê) as necessidades, passando por um processo maturacional que envolve uma gradativa desilusão da onipotência original, através de uma sucessiva apropriação da realidade externa, obtendo então sua condição de ser unitário. Mas dessa condição original o indivíduo mantém a ilusão, agora já não mais em si ou no outro, mas na cultura, no brinquedo ou na arte.

Freud não tinha ainda avaliado a importância do brinquedo como um constituinte do self, vendo a importância do brinquedo na função corretiva da realidade. Mas Graña pontuará que pelo menos em dois momentos Freud irá vincular a capacidade de criar e brincar com a saúde psíquica: em "O chiste e sua relação com o inconsciente" e em "Introdução ao narcisismo"

A partir da leitura de obras como "Gradiva" e "Escritores criativos e devaneios", Graña propõe que Freud já teria tido, aqui, a "intuição do transicional" e mesmo de um dos fundamentos técnicos básicos de Winnicott, qual seja, que "… toda e qualquer interlocução possível tem como condição a aceitação plena e incondicional, por parte do terapeuta, das premissas delirantes através das quais o paciente reinterpreta o mundo".

Graña nos demonstra também a importância e a seriedade com que Freud tratava da questão do brinquedo para a criança e para a técnica psicanalítica, através de trechos de textos como "Escritores criativos e devaneios" e "O pequeno Hans", bem como o desenvolvimento já feito por Freud sobre a arte, ocupando um espaço intermediário entre a fantasia e a realidade em textos como "O interesse científico da psicanálise" e "Além do princípio do prazer". Enfim, temos aqui um verdadeiro estudo da ancestralidade freudiana de Winnicott, preenchendo uma lacuna que o próprio analista inglês nunca se preocupou em clarear.

 

Ferenczi em Winnicott

Ferenczi representa a influência pós-freudiana mais poderosa exercida sobre Winnicott. Embora a interlocução e o contraponto tenham sido feitos predominantemente com Melanie, é em Ferenczi que Winnicott encontra a sua principal inspiração. Com esse autor, parece haver uma identificação teórica espontânea, ainda que sejam raras as referências a Ferenczi na sua obra. Os dois valorizam intensamente a identificação materna e a correlação entre o setting psicanalítico e a relação mãe-bebê. O real ou o factual recebe em ambos uma valorização positiva, retomando alguns achados primitivos de Freud, antes dele mesmo ter dado o descrédito à sua teoria original das neuroses (sedução real das crianças pelos adultos).

Diferentemente de Klein, que focaliza a investigação da mãe como produto da fantasia infantil, Winnicott, assim como Ferenczi, preocupa-se com a vivência da relação mãe/ filho, por meio do cuidado que a mãe (ambiente) oferece para as necessidades iniciais da criança. Nesse sentido, Winnicott concorda com Ferenczi em relação à afirmação de serem as vivências primitivas dos cuidados ambientais o momento de maior regressão na transferência em um tratamento.

Em Ferenczi já está o embrião do percurso de desenvolvimento emocional primitivo de Winnicott, quando descreve o percurso de um estado precoce do bebê de "onipotência incondicional" intrauterina e a importância dos cuidados ao recém-nascido para que seja salvaguardada a ilusão dessa onipotência. Depois desses estágios, viria o "princípio de realidade", com o reconhecimento dos limites e a consequente renúncia à afirmação narcísica.

Em 1929, no trabalho "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte", Ferenczi introduz na psicanálise o termo "não ser", que dentro de uma relação ser/não ser, e junto com o termo "força vital", também usado por Ferenczi, terá um lugar central no pensamento de Winnicott.

Ferenczi antecipa também as noções winnicottianas de privação e deprivação, que poderão determinar tanto a psicose como a tendência antissocial, bem como antecipa o modelo que Winnicott desenvolverá posteriormente na descrição do quadro clínico de falso-self.

 

Klein em Winnicott:

Graña acompanha o percurso pessoal de Winnicott em relação a Melanie Klein, desde as primeiras leituras da obra dessa autora feitas por Winnicott, a extensa supervisão clínica feita com ela, até as trocas de correspondências conflituosas entre ambos. Desse convívio, Winnicott herdará diversos elementos da teoria kleiniana. Um dos valiosos conceitos desenvolvidos por Winnicott, o de concern (consideração), por exemplo, desenvolvese inspirado em produzir uma complementação teórica ao conceito de posição depressiva. E é nessa relação que Graña concentra seu estudo na relação entre a obra dos dois. Em Winnicott, o objeto externo adquire uma potencialidade patógena que Klein jamais reconhecerá.

O conceito de posição depressiva, em Klein, é particularmente valorizado por Winnicott, que o compara ao conceito de Complexo de Édipo, na obra de Freud, em termos de importância. Questiona, porém, a conotação psicopatológica e enfatiza mais a capacidade de se preocupar pelo outro do que no humor depressivo.

Winnicott diferencia o sentimento de culpa como estando ligado ao sentimento de ambivalência pela presença de certo nível de dissociação no funcionamento psíquico, enquanto a "consideração" implica não só uma maior integração, mas também a responsabilidade que o indivíduo passa a ter com todos os seus impulsos.

Mas Graña nos mostra também alguns dos desacordos teóricos de Winnicott com Klein. E aqui podemos ter uma amostra da clareza do texto do autor:

Se para Klein as fantasias de aniquilamento do seio e de retaliação estão determinadas pelo sadismo oral, pela voracidade, pela projeção de impulsos canibalísticos e pela inveja, como sustenta de 1929 a 1957, para Winnicott esses fenômenos se revestem de uma conotação mais positiva e estão relacionados à agressividade enquanto força vital e ao amor impiedoso, envolvendo os efeitos circulares de afetos postos em cena numa perspectiva intersubjetiva ou interacional. (p. 115)

Compara, ainda, a importante diferença da agressividade vista como contendo uma intencionalidade destrutiva para Klein, enquanto para Winnicott ela seria a expressão de uma força vital que permitirá ao bebê construir a exterioridade do objeto.

É no pouco cuidado que Winnicott tem na precisão de seus conceitos que Graña consegue assumir um tom um pouco mais crítico em relação ao autor estudado. Um exemplo disso seria no uso quase indistinto dos termos self e ego, que em alguns momentos designa uma mesma dimensão do indivíduo, enquanto em outros momentos os dois conceitos adquirem significados bastante diferentes.

Ancestralidade filosófica

Nessa segunda parte do livro, quando estuda os ascendentes filosóficos de Winnicott, Graña nos apresenta um trabalho de fôlego. Profundo, sensível e raro entre os psicanalistas, já que poucos de nós temos o conhecimento filosófico necessário para percorrer de forma crítica os pensadores aqui visitados na busca da influência, ainda que indireta, do pensamento deles na obra de Winnicott. Nesse sentido, Graña supera a dificuldade de articular o pensamento de Winnicott com qualquer sistema filosófico, não só pela aversão que este tinha pela filosofia, como também pela sua "originalidade", que incorpora para si todas as ideias com as quais se identificava, não admitindo explicitamente a influência de autores que o antecederam em seu pensamento e em sua obra. No caso aqui relatado, Graña busca nos empiristas (Berkeley e Hume) a importância que Winnicott dará em sua clínica e obra à experiência, e no fenomenólogo Merleau-Ponty a reinserção do corpo no centro da investigação psicanalítica. Ainda assim, Graña é muito claro ao defender a tese de que a principal influência filosófica sobre o pensamento de Winnicott se origina dos empiristas, ainda que não pela leitura direta, mas pela via da cultura.

 

Berkeley e Winnicott

Berkeley, empirista como é, coloca como fundamento o testemunho dos sentidos, ainda que ressalte que pelos sentidos percebemos somente as ideias existentes na nossa mente. Ou seja, Berkeley, privilegiando os sentidos, tem uma postura bastante crítica em relação às "falácias das palavras" e às controvérsias puramente verbais. Berkeley busca algo que prescinde das palavras, ou que as antecede, ou que, mais imediatamente do que estas, se aproxima da verdade: a experiência subjetiva fundada na sensopercepção. Winnicott, sempre preocupado com a questão do falso, do inautêntico, demonstra em diversos momentos, inclusive no corpo da sua obra, que a linguagem muito abstrata, intelectual e desemocionalizada pode ser a evidência de problemas no desenvolvimento, basicamente de uma dissociação para proteger um self precocemente ameaçado na sua integridade.

Graña procura acompanhar o estudo da ilusão, de Winnicott, no sentido da ilusão compartilhada, transicional, e a ilusão de Berkeley, que se relaciona aos objetos imaginários em contraposição aos objetos reais.

Ao relacionar conceitos de Winnicott – como a ilusão e a transicionalidade – com conceitos berkeleyanos, que por si só já requer uma refinação teórica, Graña também nos proporciona uma reflexão sobre os conceitos de ilusão e transicionalidade na obra de Winnicott.

Enfim, o autor tenta nos colocar a influência do pensamento filosófico de Berkeley nas suas premissas ideal-empiristas, bem como em determinadas categorias conceituais sobre o pensamento de Winnicott. Para isso, chega a discorrer com maestria e grande senso estético sobre vários aspectos da obra de Winnicott, como o desenvolvimento emocional primitivo, a transicionalidade, a onipotência, a necessidade de crer, a criatividade etc. e sua correlação com a obra de Berkeley. Algumas vezes, porém, ficamos extasiados não só com as correlações descritas nas duas obras, como no "uso" que Graña faz de Berkeley como um interlocutor de Winnicott para poder expor a complexidade e o refinamento da obra desse psicanalista.

 

Hume e Winnicott

Hume, considerado um dos maiores filósofos britânicos, centra seu estudo nos "edificantes percepcionais da realidade externa". No empirismo de Hume, tal como em Berkeley, a corporeidade e a experiência fazem-se necessárias na construção de uma subjetividade. Graña chama a atenção na influência de Hume em todo o pensamento filosófico e, por hipótese, também no pensamento psicanalítico produzido na Inglaterra, o que estimula o autor a postular uma "comensurabilidade epistemológica" entre a obra de Hume e a de Winnicott, considerado por Graña o maior entre os psicanalistas ingleses. Tal como fizera com Berkeley, Graña aproxima os dois autores a partir de vários conceitos, como a importância que a experiência (vivência) adquire nos estágios iniciais do desenvolvimento, contrariando um modelo de pensamento que se fundamenta em algum conhecimento apriorístico ou estrutural. Outro conceito fundamental dos empiristas, o da exterioridade, será também uma questão teórica central na obra de Winnicott, a partir do qual ele desenvolverá a perspectiva da transicionalidade. Outros conceitos utilizados por Winnicott são relacionados ao pensamento empirista, tais como o desenvolvimento emocional primitivo, cuidados maternos, exterioridade, cultura, uso do objeto, ilusão, falso-self, catalogação, ódio, empatia, transicionalidade, cultura etc.

 

Merleau-Ponty e Winnicott

Graña procura evidenciar essa relação por considerar Merleau-Ponty o revitalizador do pensamento fenomenológico e pela reinserção do corpo e da reflexão sobre a cultura dentro do campo de interesse da filosofia.

Merleau-Ponty e Winnicott foram contemporâneos, um na França e o outro na Inglaterra. Provavelmente, não se conheceram e não tomaram contato um com a obra do outro, ainda que ambos tenham tido um interlocutor e admirador em comum: Jacques Lacan.

O autor busca vários pontos de contato entre a obra dos dois pensadores, entre elas: o conceito de medo do colapso; o mundo como paradoxo; a busca dos fenômenos além das palavras e do fluxo discursivo, buscando a plenitude da vivência na facticidade corporal; o gesto espontâneo; da liberdade; do brincar; o lugar do Ser; a importância da realidade externa; e a questão da especularidade. Essa relação se vê facilitada por Graña considerar que a obra de Winnicott "transita do idealismo romântico ao realismo empirista com uma notável e inusitada versatilidade". (p. 231)

 

Comentários finais

Independentemente do interesse que o leitor possa ter na obra desses pensadores, ou mesmo na correlação entre os conceitos de Winnicott com outros pensadores da psicanálise e da filosofia, vale a pena a leitura desse livro para qualquer um que se interesse pela obra de Winnicott. Pois a forma como são esmiuçados vários conceitos e trechos de sua obra, com explicações e detalhamentos bastante didáticos, bem como se utilizando de outros pensadores como interlocutores, nos proporciona a exposição de Winnicott a partir de um outro ângulo, de uma interface diferente da leitura direta da sua obra. É na comparação de conceitos winnicottianos com os filosóficos que Graña deixa explicitadas e denotadas várias características do modelo de pensamento de Winnicott, que muitas vezes se perdem ou ficam sombreados na comparação e na concorrência de originalidade que fazemos ao relacioná-lo com sua ancestralidade psicanalítica.

 

 

1 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA.