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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.1 São Paulo  2010

 

RESENHAS

 

O esquecimento do pai

 

Autor: Jacques André e Catherine Chabert (orgs.)
Editora: Edusp , São Paulo, 2008, 168p

Resenhado por: Luciana Balbo Portella,1 São Paulo

 

 

Todos os anos, o Centro de Estudos de Psicopatologia e Psicanálise da Universidade Denis-Diderot (Paris VII) procura organizar jornadas científicas de relevância em psicopatologia e psicanálise. Em 2003, juntamente com o Laboratório de Psicologia Clínica e de Psicopatologia da Universidade René-Descartes (Paris V), sob a iniciativa de Catherine Chabert e de Jacques André, esses encontros universitários giraram em torno do tema "O Esquecimento do Pai" e, pela terceira vez, a Petite Bibliothèque de Psychanalyse publica o resultado de tais debates, agora traduzidos pela EDUSP.

O livro apresenta nove artigos de autores diversos, tratando do pai nas configurações mais inusitadas. Um clamor para o retorno ao pai. A partir do aforisma freudiano Pater incertus, mater certíssima Jacques André retoma o princípio da incerteza expondo a fragilidade paterna como um trunfo: a paternidade é uma conjectura, edificada sobre uma dedução e um postulado, enquanto a maternidade é confirmada pelos sentidos. As consequências dessa assimetria são múltiplas. Pelo fato de não se poder ter um pai, o eventual amor por ele toma forma de uma escolha, de um luxo até. Quando não é desconhecido o pai é, no mínimo, improvável. Daí o fato de se negligenciá-lo, eclipsá-lo, negá-lo. Desde a forma de provocação, de apagamento, seguidos pelo esquecimento, à construção do papel de "super-para-excitação", papel atribuído normalmente apenas à mãe, até a criação do termo paternagem (o cuidado do pai em relação a seu bebê) passando pela impossibilidade de esquecê-lo justamente por não poder assumir seu lugar, chegando, por último, ao universo literário de Georges Perec, no qual o desaparecimento está sempre presente. Desaparecem crianças, roubam-se manuscritos, até mesmo o conteúdo dos livros some, páginas são apagadas, vêem-se desaparecer palavras: um de seus personagens tem por ofício fazer suprimir as palavras envelhecidas retirando-as do dicionário. No final de um caminho bastante longo, Anny Dayan Rosenman anuncia a possibilidade de algo da ordem da posse de uma perda, aceitação que poderia ter sido uma herança: eu não tenho o sentimento de ter esquecido, mas sim o de não ter jamais podido conhecer. O esquecimento do pai reveste as formas mais diversas. A incerteza do pai não é somente uma promessa para o espírito, ela faz de seu amor, por definição, uma escolha que se torna mais esperada à medida que o amor não comporta nenhuma necessidade natural. Pode nem haver pai; nesse caso, seu amor seria ainda maior, o da opulência, como diria Jacques André.

É interessante observar que um número considerável de trabalhos psicanalíticos é focalizado essencialmente sobre o lugar da mãe e seus efeitos na conflitiva psíquica, desde as perspectivas psicogenéticas e desenvolvimentistas bem como naquelas que tomam a realidade psíquica como primordial na atualidade da transferência. Retornar ao pai parece ser de um classicismo psicanalítico indiscutível e, assume a forma de provocação no artigo de Catherine Chabert que retira-o do "ostracismo" com "A via do pai: uma segunda chance".

Seria indispensável conservar a referência ao pai e à mãe nas múltiplas configurações que estes podem assumir como imagens, figuras e parceiros dos mais variados cenários encontrados nas fantasias originárias. O esquecimento do pai mantém um sistema narcísico que exclui todo sinal de diferença. Esse é o maior risco, segundo Chabert, do que ela chama de "melancolia da transferência" trazer confusão não apenas no que concerne ao objeto perdido não-identificado, mas também quanto à identificação do objeto amado. Nisso consiste a essência do narcisismo que alimenta a regressão melancólica: o "desconhecimento" do objeto perdido não-identificado pode também constituir eventualmente uma estratégia de luta contra o reconhecimento da diferença de sexos. Essa luta pressupõe a exclusão, deixar de lado toda a imagem da diferença, toda representação que se afastar da mãe soberana, toda forma de investimento do "pai libidinal" como diz Jacques André. São esses os momentos em que o apelo ao pai parece ser indispensável: na busca dos traços íntimos das experiências e fantasias suscetíveis de tirá-lo da sombra e dar-lhe vida novamente. Para concluir, Catherine Chabert propõe que, do mesmo modo que os momentos melancólicos podem aparecer nas análises dos neuróticos mais clássicos, desalojando, de algum modo, as configurações edipianas que frequentemente os especifica na diferença de sexos e de gerações; nas análises assim chamadas "complicadas", como as denominou Pierre Fédida, o lugar do pai, em sua função diferenciadora e no deslocamento que ele pode oferecer, constituem uma segunda chance ao paciente, ao analista e a própria análise.

No texto "O apagar de um pai" Pierre Pachet utiliza um recurso curioso do cinema – o realismo fantástico, para dar voz a uma narrativa fidedigna e assimétrica da vida de seu próprio pai já morto, desde 1965. Sua tentativa ao escrever a Autobiographie de mon père era a de recolher e reunir recordações dispersas, ligadas a diversos momentos, contextos, sequências de pensamentos ou de experiências que, se perdidas, revelariam seu "afastamento" do pai. Tomar-lhe a palavra, ou servir-se da recordação dela para constituir uma palavra escrita; era dar vida ao pai ou gerá-lo de maneira quase mística, para dar-lhe, segundo o autor, uma sepultura dentro dele: incorporá-lo a ele mesmo, ao mesmo tempo tomando-lhe sua força, para assim, poder neutralizá-lo. Ao retomar seu escrito, agora sob a perspectiva do "esquecimento do pai", para os debates coordenados por Régine Waintrater, Pierre Pachet re-significa, mais de 35 anos depois da primeira redação de seu texto, esse afastamento do pai passando-o pela seguinte distinção: o esquecimento/desaparecimento, seu pai não desaparece por ter sido esquecido, ao contrário, tornou-se objeto de diversas rememorações; esquecimento/aniquilamento, no qual este último quer destruir inapelavelmente, o esquecimento mantém o mesmo movimento pelo qual apaga, criando uma omissão temporária que alerta sobre a possibilidade de esquecer profundamente. Ao escrever a autobiografia, ficou possível aceitar o esquecimento, para liberar-se da figura paterna, que todos nós deveremos um dia esquecer. Nem mesmo ao pai haverá privilégios.

No terceiro artigo, Janine Altounian coloca em evidência o genocídio armênio de 1915 no qual o avô da autora morre de maneira trágica. O jornal de V. Altounian Tout ce que j'ai enduré des anées 1915 à 1919 – Terrorisme d'un génocide traz o relato truncado da descrição de um adolescente sobre a morte de seu pai. Altounian utiliza extratos desse relato como pano de fundo para sua apresentação, a literatura aparece aqui como "salvação da figura do pai" incidindo no trabalho psíquico dos escritores que buscam restaurar vínculos da memória e da relação com os outros. Esses vínculos estavam rompidos no sobrevivente – o terror da origem gerando uma angústia de vínculo. O terror e a vontade de esquecimento do terror engendram na parte sobrevivente da vida psíquica do sujeito uma zona intocável e muda, descrita por Ferenczi: "uma parte de nossa pessoa pode "morrer", se o resto sobreviver ao trauma, despertaremos com uma lacuna na memória, uma lacuna na personalidade propriamente dita…" Altounian traz a literatura como um lugar de sepultura do pai. O investimento de uma configuração particular de escrita na qual o sobrevivente de uma catástrofe coletiva só pode realmente sobreviver por intermédio de uma escrita feita às escondidas e transferida a seu descendente. Seus descendentes vêem-se necessariamente coagidos a serem os porta-vozes, os tradutores, desses acontecimentos para, quem sabe assim, poderem por fim, esquecer.

A necessidade de adaptações da técnica e do setting analítico no tratamento de crianças e de casos difíceis trouxe uma leitura diferente da teoria pulsional. Régine Waintrater faz uma revisão radical das teorias de Fairbairn e Kohut contestando a concepção de um desenvolvimento psicossexual por etapas, para substituí-la por uma concepção do desenvolvimento contínuo da relação de objeto, constantemente procurado pelo eu. Para esses autores a angústia fundamental não é mais a de castração, mas a de desintegração, provocada pela ausência de resposta adaptada pelo ambiente. A saúde e a patologia são definidas em relação à preservação e à coesão do self. A sexualidade torna-se uma sensualidade, inteiramente marcada pela relação com o outro e por suas vicissitudes. Nos estados arcaicos do narcisismo, o recurso ao sexual constitui uma tentativa de autoregulação, estimulação ou apaziguamento de tensões narcísicas insuportáveis, perigosas para a integridade do self. A ressexualização da escolha de objeto é vista como uma defesa provocada pela capacidade de sedução do pai, numa confusão entre as necessidades de contato e de intimidade da criança. O Édipo para Kohut e Fairbairn parece conservar do Édipo freudiano somente o nome; é um Édipo destituído, que perdeu seu lugar de um Édipo organizador central e universal do porvir humano, para tornar-se um organizador, na melhor das hipóteses, da revelação de uma possível perturbação do self. É um Édipo casto, esvaziado de seu conteúdo pulsional e destinado a se dessexualizar para permitir uma relação harmoniosa e satisfatória da criança com seus self-objetos parentais. O papel do pai não consiste mais tanto em separar a criança da mãe, quanto em conter a excitação que resulta de uma não-receptividade do ambiente. Confere ao pai um papel de super-para-excitação, papel normalmente atribuído somente à mãe. A angústia pulsional não resulta mais da excitação sexual diante da cena primária, mas refere-se a uma falha do continente, gerando assim uma angústia edipiana secundária, mais chamativa, que inclui as fantasias clássicas, como as incestuosas ou a inveja do pênis. À guisa de conclusão, Régine Waintrater insiste no modelo relacional para permitir uma reorganização do tempo da análise, na qual a atitude do paciente não é mais encarada como uma resistência, destinada a ser confrontada pela interpretação, mas como uma expressão de uma necessidade primária e real que, se incluída e reconhecida, ela, otimisticamente, acredita que poderá progressivamente ceder por si mesma e dar lugar a uma verdadeira mudança na condição psíquica do paciente e em sua relação com o mundo, tanto interno quanto externo.

A construção do pai na clínica dos casos-limite faz Catherine Cyssau perguntar-se como é possível esquecer o esquecimento do pai. Um pai omisso que aparece na clínica dos casos-limite em duas vertentes: no lado do traumático – pai violento, incestuoso, perverso; ou no lado da falta – pai desaparecido, morto ou sumido. É possível elaborar as diversas ausências reais do pai? O desafio elaborativo, segundo ela, é o de abrir a memória à morte do pai, uma morte que foi produzida sem ter de fato ocorrido, permitindo elaborar o destino psíquico do esquecimento. O trabalho de esquecimento a ser efetuado para tirar a figura paterna das clivagens idealizantes, que congelaram seu destino, precisa, em primeiro lugar, colocar em andamento um recalque originário a partir do qual, somente o retorno do recalcado de materiais infantis, edipianos, se tornará possível, disponível e figurável.

François Villa mostra que o esquecimento do pai é uma fórmula ambígua, na perspectiva da cena primitiva o pai é inesquecível. É da identificação que procede a figura paterna. O desejo de esquecer o pai não seria senão o desejo de abolir o sexual.

É pelo caminho do esquecimento do pai em seus mais variados matizes e cores que os autores franceses pretendem fazer retornar, desde épocas distantes, esta imagem efêmera e questionável da figura paterna. A passagem da mãe ao pai constitui, sem dúvida, um progresso da civilização, se a paternidade é uma conjectura, a maternidade certamente é atestada pelo concreto e real do corpo. Desde os primeiros questionamentos infantis "de onde vêm os bebês?" para a inexorável pergunta "quem os colocou ali?" inflexão e reverso incontornáveis. A mãe deve ceder lugar, o pai está ali. Como possibilidade de salvação para uma fusão destruidora e irremediável. O esquecimento do pai expõe uma brecha, convite indelével que um leitor ousado não pode recusar.

 

1 Psicóloga, psicanalista, doutora em Psicanálise e Psicopatologia Fundamental pela Universidade de Paris VII – Denis-Diderot, doutora em Ciências Médicas – Área de Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.