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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo  2010

 

DEBATE

 

Umas poucas palavras sobre a ousadia…

 

Unas pocas palabras sobre la osadía…

 

A few words about daring…

 

 

Humberto da Silva Menezes Junior,1 Campinas

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

O autor, a partir de estímulos baseados nas polêmicas propostas técnicas de Ferenczi, e a visão pouco otimista de Freud sobre elas, busca examinar algumas questões e riscos que envolvem a relação analítica, enquanto um momento de exercício de ousadia, representado pelo atendimento às recomendações da regra fundamental, pelo analisando, e suas consequências na escuta do analista. Procura, também, escrutinar brevemente algumas implicações, no âmbito da clínica, decorrentes do surgimento da chamada "patologia do vazio", bem como certas contradições e insuficiências na utilização de alguns termos de uso corrente, tais como escuta analítica, analista, psicoterapeuta, paciente e analisando. Para tanto, vale-se de dois extratos de sua clínica privada.

Palavras-chave: ousadia; clínica cotidiana; escuta do analista; experimentação; experiência; setting.


RESUMEN

A partir de estímulos basados en las polémicas propuestas técnicas de Ferenczi y la visión poco optimista de Freud sobre ellas, el autor se propone examinar algunas cuestiones y riesgos que envuelven la relación analítica, considerada como un momento de ejercicio de osadía representado por la atención a las recomendaciones de la regla fundamental por parte del paciente y sus consecuencias en la escucha del analista. El autor considera, también, brevemente, algunas implicaciones en el ámbito de la clínica, resultantes del surgimiento de la llamada "patología del vacío", como también ciertas contradicciones e insuficiencias en el uso de algunos términos utilizados corrientemente, como por ejemplo: escucha analítica, analista, psicoterapeuta, paciente y analizado. Presenta dos secuencias clínicas para ilustrar el tema propuesto.

Palabras clave: osadía; clínica cotidiana; escucha del analista; experimentación; experiencia; setting.


ABSTRACT

The author, from stimuli based on Ferenczi's controversial technical propositions, and Freud's hardly optimistic vision of them, goes about examining some questions and risks concerning the analytical relationship, as a moment of daring exercise, represented by the patient's reception of the recommendations of fundamental rules and their consequences in the analyst's listening. He also briefly scrutinizes some implications, in a clinical scope, resulting from the emergence of the so-called "emptiness pathology", as well as certain contradictions and inadequacies in the use of some current terms, such as: analytical listening, analyst, psychotherapist and patient. To such an end, he uses two extracts of his private clinic.

Keywords: daring; daily clinic; analyst's listening; experimentation; experience; setting.


 

 

Agradeço a Bernardo Tanis pelo amável e honroso convite, que cometi a ousadia de aceitar, para ser um dos comentadores desses estímulos, calcados em algumas das ideias de Ferenczi.

As pessoas vêm até nós tangidas pelas suas dores mentais. Creio ser consensual que não é outra a razão pela qual nos procuram, enquanto analistas ou psicoterapeutas. Restringidas na sua capacidade de pensar, buscam encontrar alguém que as ajude, que as escute e fale com elas. Querem saber o por quê disto ou daquilo, explicações, supondo que, caso isto ocorra, o sofrimento desaparecerá. Muitas buscam um "como antes", desejam "voltar a ser o que eram". Ainda hoje, embora saibam, com o maior conhecimento que se tem da psicanálise, que o psicanalista não é mágico, e que o trabalho é demorado, lá no seu íntimo acalentam a esperança de serem a exceção à regra e de que, com elas, os fatos se passem de forma diferente. Em última instância, procuram tratamento, e quanto mais rápido melhor.

A palavra me parece adequada, ousadia. Afinal, de que outra coisa falamos que não isso, quando convidamos nossos analisandos a associarem livremente, isto é, comunicarem de si o que lhes passa de mais íntimo e pessoal, da forma mais livre e espontânea possível, para alguém que mal conhecem, ou não conhecem, de preferência deitados num divã, sem que vejam seu interlocutor? Haja ousadia, haja coragem! (Cá entre nós, nas conversas de corredores, nos trabalhos, nos livros, continuamos a chamá-los de pacientes mesmo; será apenas porque é uma expressão consagrada e de mais fácil pronúncia, ou porque esperamos que o continuem sendo, no sentido médico do termo, ou, ainda, esperamos que tenham, paciência para com nossas vacilações, incertezas, prolongados silêncios, comunicações prolixas ou apressadas?! Ou tudo isso, quem sabe… De qualquer forma, vale lembrar, en passant, são incontáveis as novas chances que eles nos dão.).

Também acredito que a palavra se aplica a nós, analistas. Quero crer que cometemos muito mais ousadias do que as que comunicamos, a tal ponto que o verdadeiro ousar do analista está no contar, mais que no fazer. Ferenczi foi discípulo, colega e amigo dileto de Freud. Não obstante as restrições que este fazia a algumas de suas ideias, e o temor de que suas inovações (experimentações?) técnicas fossem publicadas, jamais se incompatibilizaram verdadeiramente. Rendeu-lhe Freud, por ocasião da comemoração do seu aniversário de cinquenta anos, e quando de sua morte, homenagens sinceras e afetuosas. Era-lhe grato pela importante contribuição que dera à causa da psicanálise, não apenas com seus escritos, mas também do ponto de vista institucional, com a criação da IPA. Ferenczi ousou. Ainda assim, nos informa Peter Gay (1989), conservou para si muitos dos seus pensamentos e de suas formulações; não nos contou tudo.

Convidamos os analisandos a serem tão destemidos quanto descrevi, e se pressupomos que o convite será minimamente aceito, deveremos ser confrontados, em algum momento, com o resultado disso. A questão é saber se estamos preparados para tanto e, se estivermos, em que consistiria essa preparação.

Nossa contrapartida à associação livre do analisando, a atenção flutuante, nos compromete a ouvirmos o que eles nos dizem, sem apriorismos e sem julgamentos. Dispomonos a intervir (interpretar) quando julgamos ter algo a dizer que, a nosso ver, promova reflexão, expansão mental, compreensão, entendimento. Sabemos, mas não o dizemos ou dizemos poucas vezes, que isso pode causar mais dor. Também sabemos que estaremos mais empenhados em saber de ques ou comos, do que de por quês. A análise pessoal e as supervisões devem ter-nos habilitado a desenvolver "capacidade negativa", a tolerar o não saber, e a nos manifestarmos, via interpretação, apenas quando julgarmos ser o momento adequado. É assim que fazemos sempre ou predominantemente?

Tenho cá minhas dúvidas… Sobretudo quando pensamos nas patologias atuais, em que florescem sérias questões atinentes à identidade, com fortes matizes depressivos, involucrados na perda de autoestima, passando pelas psicoses, constelações narcísicas, personalidades borderlines, toda a gama de sérios transtornos alimentares, drogadições, tudo aquilo, enfim, que constitui a denominada "patologia do vazio", estamos cada vez mais constantemente sendo chamados a lidar nas e com as fronteiras do nosso "saber", terreno ainda largamente inexplorado, movediço e ardiloso, marcado pela ausência de simbolização e pelo predomínio da ação, mesmo verbal, como nos lembra Odilon de Mello Franco Filho (1989), com a aplicação do conceito de ato perlocutório à fala de muitos analisandos – a palavra não é utilizada para estabelecer conversa, mas para expulsar sentimentos e emoções, criar constrangimentos, provocar mudanças no estado mental do ouvinte, podendo servir à veiculação de identificações projetivas. Tudo isso traz significativas mudanças na relação analítica, na clínica cotidiana, interlocutora privilegiada da metapsicologia, agora metapsicologia das fronteiras, como a nomeia Nosek (2002). E, em última instância, o desaguadouro é a técnica.

É um panorama muitas vezes assustador, frente ao qual nossa técnica se mostra limitada, e somos praticamente obrigados a mesclar a análise da experiência com a experiência na análise. Em tempos idos, num seminário sobre técnica, durante minha formação, Antônio Sapienza (1985) já nos alertava para a diferença entre experiência e experimentação, aquela devendo gerar pensamentos e esta muito próxima do acting. Esse é um dos riscos que corremos, ambos, analista e analisando, nos dias de hoje: o fio condutor que separa uma de outra pode ser muito tênue. O analista pode acabar sem noção do que esteja, de fato, fazendo, e nossos lugares acabarem confundidos, nossa função pervertida. Um agravante: o analisando corre-o sem saber e sem responsabilidade, pois o setting é de nossa exclusiva e intransferível administração.

O que propomos muitas vezes difere largamente do que os analisandos pretendem (aliás, creio mesmo que muitos deles nem querem ser "analisandos"), mas suspeito que acabamos por fazer o que julgamos que melhor lhes convêm, e isso descobrimos durante o próprio trabalho analítico. Porque ainda se trata de trabalho e ainda se trata de encontrarmos a palavra inteligível, não a palavra fácil, necessariamente, mas a que gera curiosidade, perplexidade, surpresa. Se conseguirmos surpreender nossos analisandos (pacientes) pelo menos uma ou duas vezes a cada sessão, quem sabe aumentemos a chance de sobrevivência da dupla, e algum dia tenhamos analisandos de fato e de boa vontade.

Entendo que o que vai se tornar objeto de conversa psicanalítica nasce da intersecção da manifestação do analisando e da escuta do analista (termo intrigante este, pois que, no âmbito da análise, não se restringe ao que se capta pelos ouvidos. O analista, hoje, "ouve" também com os olhos, quiçá com o corpo todo). Nem se trata mais, creio eu, de buscar nas palavras do analisando um outro sentido, mas de atribuir sentido, de conseguir transformar em palavras o indizível, o não dito, o gesto, o ato.

O analisando, imerso na escuta das vozes que o atormentam, subitamente me diz, dando uma pequena risada: "Nossa Senhora acabou de dizer que você é muito bonitinho!". Fico aturdido, durante um breve lapso de tempo, findo o qual me vejo respondendo: "Agradeça!" Perplexo, imediatamente me percebo tenso, imaginando qual será a consequência dessa fala, bastante temeroso de que o trabalho se interrompa. Também conjecturei qual o julgamento que fariam de mim os colegas com quem eu comentasse isso; afinal sou um analista "juramentado", deveria encontrar uma resposta mais "psicanalítica" para dar ao analisando, ou então que ficasse quieto! O analisando dá uma gargalhada, e me fala que gostou de ouvir o que eu havia dito (e não é que eu entenda que deva dizer coisas que o analisando goste, necessariamente), porque indicava que eu não duvidava de que ele ouvia vozes. Lembrei-me de que vínhamos conversando a respeito, ultimamente, e digo que ele me falava de algo a que eu não tinha acesso, uma experiência absolutamente pessoal, posto que eu e outros, conforme ele próprio relatava, não podíamos ouvir aquelas vozes. Continuamos a trabalhar; exploramos outras possibilidades que sua comunicação ensejava, e recentemente ele entrou para sua primeira das quatro sessões semanais cumprimentando-me pelo aniversário de nosso já prolongado tempo de convivência, durante o qual importantes expansões aconteceram. Aliás, gosto dessa palavra, expansão. Retrata bem como vejo a evolução da mente, ganhando amplitude, abrangência.

Não obstante, continuo acreditando no que fazemos e em como desenvolvemos nosso trabalho. Fazemos recomendações que podem ser atendidas ou não, prontamente ou não. Considero que alguns aspectos importantes do nosso setting são uma conquista da dupla. Isso envolve desde o número de sessões até o uso do divã. Evito atender com uma sessão apenas. De qualquer forma, examinando minha experiência, não creio que faça, trabalhando com duas sessões por semana, algo essencialmente diferente do que faço se trabalho com mais sessões. E recentemente estive atendendo, concomitantemente, pacientes com cinco sessões semanais. O que tenho em mente é o ritmo, a regularidade com que analista e analisando se encontram: quanto mais intenso, melhor, do ponto de vista de mais oportunidades para que a dupla se debruce sobre a investigação do funcionamento mental do analisando, que se ressalta daquela experiência específica, com aquele analista específico. No entanto – não nos esqueçamos – devemos estar sempre abertos, nós também, para as surpresas que os pacientes nos reservam. Ao fim e ao cabo, talvez descubramos neles analisandos.

Ele era alto, magro, meio desengonçado, beirava os quarenta anos, pele curtida pelo trabalho duro, um paciente de início dos meus anos de formação. Vinha de outra cidade, dinheiro contado, uma vez por semana. Sofria uma insônia renitente. Quase analfabeto, mal sabia assinar o nome no cheque que eu preenchia, e com o qual me pagava, religiosamente, a cada sessão. Não faltava, não se atrasava. Quando começamos, eu me perguntava se conseguiria me fazer entender por ele, se aquele seria um trabalho interessante, motivador. Não fiz referência ao uso do divã, mas Ernesto deitou-se nele, desde a primeira vez, com a maior sem-cerimônia. Eu o percebia muitíssimo à vontade ali. Com o passar do tempo, trabalho transcorrendo, fui me dando conta, por via das belas elaborações que Ernesto fazia, de como eu o havia subestimado, e pude constatar que o analista é quem estava sendo insuficiente para o analisando. Tal apreensão gerou um turning point na experiência. Despedimo-nos cerca de dois anos após, ele relatando como vinha dormindo (e podendo sonhar, claro!) como há muito tempo não fazia, sorriso matreiro frente ao meu comentário de que a dosagem de remédio que tomava, eu sabia pelo psiquiatra que o medicava, podia ser perfeitamente dispensada…

 

Referências

Gay, P. (1989). Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Mello Franco Filho, O (1989). Linguagem e atuação no processo analítico. Rev. Bras. Psicanal., 23 (3), 27-28.         [ Links ]

Nosek, L. (2002). Palavras do Editor. Revista Fepal: Mudanças e permanências, 5, 7-10.         [ Links ]

Sapienza, A. (1985). Seminário sobre Técnica II – Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

 

Endereço para correspondência

Humberto da Silva Menezes Junior
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Bernardo José Sampaio, 339 cj. 12 – Vila Estádio
13020 450 Campinas, SP
e-mail: h.menezes.jr@hotmail.com

 

[Recebido em 14.5.2010, aceito em 4.6.2010]

 

 

1 Psicanalista. Membro do Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região NPCR e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SPBSP.