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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS TEMÁTICOS - VARIAÇÕES E FUNDAMENTOS

 

Os dispositivos e o atual

 

Los Dispositivos y lo actual

 

Devices and the present

 

 

Janine Puget,1 Buenos Aires

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Proponho diferenciar fidelidade ao contrato de fidelidade ao acontecimento, como também, poder substantivo e relações de poder, que definem os sujeitos "em situação". Pergunto-me se o corpo teórico psicanalítico produziu acontecimentos, ou se se tratou principalmente de reacomodações e progressivas complexidades mantidas dentro de um grande enquadre comum. Proponho, portanto, que tomar em conta o outro enquanto outro, os limites dos processos identificatórios, e a subjetividade social no presente deveria levar-nos a trabalhar com dois modelos diferentes em permanente conflito: o da subjetividade identitária e o dos sujeitos múltiplos. São apresentadas algumas vinhetas clínicas.

Palavras-chave: fidelidade; contemporâneo; relações de poder; o poder.


RESUMEN

Propongo diferenciar fidelidad al contrato y fidelidad al acontecimiento. Poder sustantivo y relaciones de poder que definen a los sujetos en situación. Me pregunto si se han producido acontecimientos en el cuerpo teórico psicoanalítico o si se ha tratado de re-acomodamientos y mayores complejidades dentro de un gran marco común. Propongo entonces que el tomar en cuenta el otro en tanto otro, los límites de los procesos identificatorios, la subjetividad social en el presente debiera llevarnos a trabajar con dos modelos diferentes y en permanente conflicto. El de la subjetividad identitaria y el de los sujetos múltiples. Se proponen algunas viñetas clínicas.

Palabras clave: fidelidad; contemporaneo; relciones de poder; el poder.


ABSTRACT

The author suggests that we should distinguish between loyalty to the contract and loyalty to the event, and between substantive power and power relations whereby subjects are defined in situations. She wonders if the corpus of psychoanalytic theory has experienced events, or rather rearrangements and progressive complexity within a shared framework. She therefore proposes taking into account the other as other, the boundaries of identificatory processes, and social subjectivity in the present. Such an approach would lead us to work with two different and conflicting models – that of a subjectivity constituted through identification, and that of a multiple subject. Some clinical vignettes are provided that illustrate these ideas.

Keywords: loyalty; contemporary; power relations; the power.


 

 

O mal-estar atual?

Interessa-me considerar o lugar do mal-estar a que chamamos atual, termo este que, sem dúvida, suscita numerosos problemas. O primeiro e mais complexo seria definir o que se entende por atual. Nesse sentido, é interessante pensar o atual usando ideias de Agamben (2008), na sua definição do contemporâneo. Seguindo Nietzsche, ele sugere tratar-se de poder viver "certa defasagem em relação ao presente" (p. 9).2 O excesso de coincidência com o presente torna impossível "transformar o presente e colocá-lo em relação com outros tempos".3 Isto, em outras palavras, equivale a topar com a dificuldade de transformar o vivido em pensamento e em experiência, algo que permite não sermos somente atores, como também testemunhas de nosso tempo. Por estarmos imersos no presente, não alcançamos os tradicionais instrumentos para registrar seus efeitos em nossa vida cotidiana, que inclui a vida profissional. E novamente conforme as ideias de Agamben, a distância útil reside nessa sorte de defasagem que possibilita perceber obscuridades, ou seja, pontos de não coincidência. Não coincidência entre o que evoca o atual enquanto representações e o que suscita o atual como puro presente. Isto é o que se registra como resultado do "efeito de presença". Representações e apresentações não coincidem, o que poderia ser uma das tantas maneiras de adquirir a vivência da contemporaneidade. O que se apresenta não tem antecedentes e cada período histórico-social cria seu "atual". Para isto, uma classe de explicações históricas encobrem a força do atual. Esta é uma das descontinuidades a que tenho por objetivo me referir.

Outras descontinuidades proveem do que concerne a zona de encontro entre dois ou mais sujeitos. Em algum dos múltiplos lócus que constituem nossa vida diária, são produzidos acontecimentos que direta ou indiretamente afetam, penetram a mente e ativam efeitos nas relações entre as pessoas, sejam elas um casal, uma família ou instituições. Afetar corresponde a um termo teórico do que entendo por Vincularidade, e isso comporta a ideia de que todo encontro desloca de posições identitárias. Conforme venho desenvolvendo em outros textos, um vínculo, para mim,4 é o resultado de ações e de relações de poder, tomando este conceito de Foucault, mediante as quais se constituem os sujeitos de um vínculo.

Faz-se necessário, portanto, descobrir os indicadores que darão conta daquelas defasagens, e que instalam os casais, famílias e relações entre pessoas em seu próprio atual. Isto é, sabendo como incluir uma particular dimensão temporal que os faz estarem de novo, como diz Agamben, "nem dentro nem fora, nem agora nem antes, um não mais e um ainda não" (p. 33). Em outras palavras, ter a experiência da não coincidência entre o herdado, as lembranças e o presente. Esta não coincidência engendra um desconcerto e perplexidade, sentimentos que dependem do que chamei Princípio de Incerteza.

Este enfoque poderia ajudar a definir o que concerne à subjetividade social. Agamben pode novamente ser considerado. Ele empreende esse caminho tomando a moda como exemplo do contemporâneo (p. 27). Propõe que a "moda introduz uma descontinuidade particular ... estar na moda e não estar ...". No que concerne ao nosso contexto científico, as modas impõem tendência, autores e, nesse marco, incluo-me. Estes dão e não dão conta do que é atual, e fazem parte de uma cultura determinada em um momento determinado, abrindo novas obscuridades.

Igualmente, portanto, é factível experimentar certo desconcerto, que se traduz em um não saber, onde nos localizamos em relação à inesgotável literatura científica. Outras vezes, certo desconcerto é experimentado ao se captarem modificações nas linguagens, costumes, valores que se instalam, emoções que circulam, categorias dominantes etc. O que se entende por transmissão transgeracional linear é interrompido por novas formas de se agrupar que produzem perplexidade. Formas cada vez mais fluidas, circunstanciais, das quais surgem quebras nos modelos tradicionais. Várias lógicas se superpõem, e tornam-se zonas de permanente conflito pela impossibilidade de reuni-las em um todo articulado e harmonioso. Entre elas também se instalam descontinuidades.

Os novos conjuntos – os novos fragmentos, como os chamara Lewkowicz (2001) – que resultam dessas defasagens e provêm, muitas vezes, de efeitos imprevisíveis, abrem para numerosas saídas, que vão desde um fazer entre vários (o que, por vezes, dá lugar a produções criativas), e/ou a certa tentativa desesperada de anular as descontinuidades e deter o tempo (temporalidade circular).

No que concerne às nossas disciplinas, parto do pressuposto de que os instrumentos teóricos válidos para uma época somente cobrem um aspecto de nossa tarefa. E, assim como as situações geram seus sujeitos, o atual abre caminhos incertos que são um desafio para o nosso saber. Cabe postular algumas questões, como por exemplo: a subjetividade social é uma aplicação e diversificação dos primeiros modelos relacionais ou inaugura desde os primeiros momentos da vida outra dimensão subjetiva, na qual a família não é hegemônica? As categorias válidas para uma época serão transponíveis para o chamado atual, ou seja, para o presente puro? A incerteza que sustenta o devir, e nos faz sujeitos de contextos amplos, tem o mesmo status no que seriam os espaços intrassubjetivo e intersubjetivo?

 

Proposta

Ante tantos interrogantes há de se eleger algum caminho, e hoje o farei, tratando dos termos fidelidade e poder.

Fidelidade 1. Em seu sentido mais clássico, o respeito a um contrato estabelecido em um passado e em uma estrutura sólida obstrui o caminho para certos questionamentos. Fidelidade à história linear, a uma continuidade ideológica com nossos antepassados, fidelidade à tradição, fidelidade contratual que regula as liberdades, como, por exemplo, o contrato matrimonial ou qualquer espaço institucional, fidelidade a alguns postulados da psicanálise. Isto, em algum sentido, é nosso leito de Procusto. Para este conceito de fidelidade, são válidas as identificações em suas múltiplas formas e variantes. São bons instrumentos as questões identitárias, as diversas técnicas de transmissão direta ou indireta, as intervenções que buscam significados pretéritos e certo determinismo. A subjetividade social, enquanto derivada das primeiras relações infantis, a partir de uma sorte de continuidade e lenta transformação dos postulados básicos, situa-se no marco da fidelidade contratual. Somente são produzidas reacomodações e ampliação dos pressupostos teóricos básicos.

Fidelidade 2. Abre para outras questões que dependem da Fidelidade ao acontecimento (Badiou, 1988), a marca de uma quebra, de uma ruptura, de um vazio que destitui a situação sólida, ocasionando a expiração dos referentes seguros, dos lugares estabelecidos. Trata-se de fidelidade às novas regularidades, às novas práticas discursivas que foram sendo geradas e suscitaram a atividade de novos dispositivos, tal como nos sugere Foucault (1985; 1995). Fidelidade ao que não tem sentido, nem lugar no marco referencial anterior, e dá lugar à criação de uma nova história que eventualmente incorpora alguns aspectos de outras histórias, seja para confrontar os dados, comparar ou produzir um novo relato. A do presente é uma história Aioniana, que abre-se em numerosas bifurcações. É também o que nos faz contemporâneos. Ou, dito em termos de Badiou (1989; 1997), fidelidade à verdade da ciência, da política, do amor e da arte.

Fidelidade, nesse sentido, requer uma tópica na qual ocupam um lugar termos como acontecimento, a tópica vincular: constituída por "outro, a alteridade, o alheio", uma lógica na qual o conceito de diferença adquire um valor definitivo, e a incerteza enquanto princípio desloca de seu lugar central os princípios binários introduzindo o princípio de Incerteza, pensado conforme a lógica da bipolaridade.

A psicanálise tem algo de tudo isto, e em cada um desses procedimentos se revelam verdades, o que não se confunde com acumulação de saber. A produção de verdade depende de um ato que produza um plus, algo que não estava na estrutura tal como esta era conhecida. Sem dúvida alguma, a intervenção de Freud no âmbito da psicologia respondeu a um acontecimento na modernidade. E é provável que hoje estejamos transitando pelos efeitos de outro acontecimento: o dos grandes enigmas do comportamento humano. Esta difícil convivência desenha espaços de constituição subjetiva própria, talvez comparáveis aos que Einstein introduziu, deixando um lugar claro para Newton.

Proponho um jogo semelhante com o termo Poder 1: o do poder substantivo, o da dominação adscrita à pulsão em suas diferentes manifestações que tentam tornar tolerável a diferença que define o Dois, ou reduzir o Dois em um Um. Deste poder, sustentado pela pulsão, há muito já escrito e muito por escrever, mas é urgente ocupar-se do Poder 2, enquanto verbo que dá conta de uma capacidade, ou seja, trata das ações que se exercem entre sujeitos independentes, criando dispositivos, relatos de situação, bem como a consequente subjetividade correspondente a esses dispositivos (Foucault, 1985, 1995; Castro, 2004). Deste fazer falam mais outras disciplinas que não são especificamente psicanalíticas. Concerne a nós descobrir as potencialidades das relações de Poder.

 

Os dispositivos

O passo seguinte leva-me a perguntar quais consequências tiveram ou têm estas rupturas em relação aos dispositivos. Introduzem mudanças? E então, quais são as ditas mudanças e quais circunstâncias os produzem? Em que medida essas mudanças intervêm nos conflitos institucionais? Os novos dispositivos trouxeram mudanças nos modelos de intervenção que cada um de nós inventa e considera adequados para dar conta do que entende ser o "fazer entre dois sujeitos", sejam estes um ou alguns analisandos e o terapeuta. Levaram a diferenciar intervenções chamadas interpretações que outorgam significados ao que é dito, e intervenções que chamo simplesmente intervenção: interferir na mente do outro, em seu sistema de pensamento, sem que isto implique explicar, mas tão somente produzir uma ação que questiona e interrompe um tipo de pensamento. Levam a introduzir dois procedimentos: os que resultam dos efeitos transferenciais e os que resultam dos efeitos da interferência (Puget, 2001; Berenstein, 2004).

 

Percurso

Como cheguei a estas questões? O background analítico, a partir do qual fui fazendo ampliações sem valor circunstancial, baseou-se em autores clássicos e reconhecidos. Por exemplo, Freud modificava permanentemente suas formulações sem que se produzissem verdadeiras rupturas. O acontecimento foi Freud. Por exemplo, as alternativas do percurso pulsional, a teoria do narcisismo e suas vicissitudes, a teoria da angústia, as distintas revisões de ideias prévias, as alternativas da constituição do aparelho psíquico etc. ... Em seguida, Melanie Klein modificou e ampliou algumas dessas formulações e introduziu a ideia das posições, a possibilidade de trabalhar com crianças e psicóticos. Depois vieram Meltzer e muitos outros. A escola francesa e um de seus expoentes atual, André Green, agregaram complexidade a termos e conceitos psicanalíticos instituídos. Bion e Anzieu, por sua vez, introduziram uma maneira de se pensar o dispositivo grupal. Entre nós, Pichón Rivière e Bleger abordaram o tema do vínculo social. Numa primeira época, eu mesma abordei os temas vinculares como ampliação das teorias existentes. Lacan virou do avesso pressupostos teóricos que introduziram profundas modificações, sem que possa decidir-me quanto ao seu estatuto: tratou-se de modificações ou de um acontecimento? Deixarei que o leitor decida. Também recordo quais foram os escritos que compuseram minhas bíblias quando comecei a trabalhar com grupos. A maioria era proveniente de autores psicanalistas, e alguns do campo da psicossociologia.

Contudo, em algum momento comecei a sentir certo mal-estar: esses pressupostos teóricos pareciam-me solipsistas. Faltava algo para pensar os vínculos, e foram-me úteis os fracassos terapêuticos, tanto em grupos como em casais e família e, por que não, na análise chamada individual. Inquietava-me perceber que aprendiam o que era da ordem dos distintos métodos identificatórios e que, a certa altura, já não acontecia grande coisa.

 

Consequências destes questionamentos

Estes questionamentos tiveram como consequência a detecção de novas categorias e a busca da especificidade de cada contexto de subjetivação. Neste ponto, volto a dar um lugar de destaque aos famosos três espaços. Fez-se evidente certa interrogação da categoria "objeto", ou "sujeito objeto", que dá lugar à categoria "sujeito", na qual é impossível que o sujeito se torne objeto. Por este caminho questionei a hegemonia da temporalidade linear, e introduzi a temporalidade aiônica5 que deverá ocupar um lugar superposto com a temporalidade de Chronos. Também, como já se sabe, ocupei-me de temporalidades (Puget, 2005; 2006) que incluem um presente, que abre numerosas bifurcações e põe em atividade a capacidade de escolha, a subjetividade constituída no fluir da vida, a incerteza e o contexto social enquanto outro que se impõe no presente, sem história prévia, nem relação com o passado infantil. Duas histórias que não convivem harmoniosamente: uma historicidade linear e uma historização que depende do presente.

Creio que por este caminho posso dar lugar, na clínica e na teoria, aos eventos sociais e políticos sem considerá-los uma extensão ou metaforização dos processos internos. O que fazer com tais eventos e sua inscrição na mente se o mundo exterior já não se oferece somente enquanto possibilidade de se projetar nele? E, lógico, como introduzir nas análises intervenções que possam permitir a conscientização do que implica pertencer a uma instituição, o pertencimento a espaços diversos, interagir com outros, ou seja, conhecer como se criam habitantes de uma situação que se dá no fluir dos intercâmbios. Intercâmbios que expõem, a quem os realizam, a necessidade de fazer algo com aquilo que excede sua própria constituição subjetiva: o que é alheio no outro, o que surpreende. Há uma pergunta que revela a dificuldade de conceber a difícil convivência entre duas lógicas não harmônicas. Mas é possível pensar sem identidade ou sem se referir à identidade de cada um?

De onde provêm as fissuras?

De onde procedem os questionamentos? Alguns já foram mencionados e outros, por exemplo, concernem à relação entre corpo e política e consideram que não somente a vida gera ou leva à morte, mas a morte gera vida, ou formas de vida e estas formas de vida se instauram a partir do presente, sem por isto se articularem com as formas de vida que provêm de transmissões herdadas. São ilustrativos os exemplos que Espósito (2006) utiliza para iniciar suas considerações sobre biopolítica e pensar como a morte é geradora de vida. Menciona as grandes matanças, sob pretexto de salvar a vida de outros. Pergunto: como explicar, entender, reconhecer na clínica os efeitos de tais situações?

Um exemplo impactante é o de um menino afetado por gravíssimas lesões congênitas, a quem se reconhece o direito de demandar ao médico, que não havia feito o diagnóstico correto de rubéola na mãe grávida, impedindo-a de abortar. Pode ser resolvido juridicamente a questão do direito de nascer? Aqui está questionada a condição de sujeito da criança que estabelece o processo.

Como pensar uma circunstância semelhante do ponto de vista da psicanálise? Isto pode ser chamado de suicídio? Ou, da perspectiva da mãe, de infanticídio, ou do médico, de assassinato, ou como chamar este evento ou uma avaliação do direito a eleger sobre a vida? E o que haveríamos pensado se tivéssemos alguma destas personagens no divã? Como se avaliam decisões baseadas na eleição da qualidade de vida? E, por fim, podem as teorias de pulsão de morte e de agressão explicar tais circunstâncias?

 

Dificuldades

É necessário dirimir o que nos mantêm fiéis aos antepassados, considerando-os produtores de verdade científica, artística, bem como o que nos separa deles, que identificamos como rupturas, descontinuidades. Em um caso se reforçam saberes já adquiridos por outros; no outro, novos saberes são produzidos, dos quais temos que dar conta. Outra questão neste contexto é relacionada aos preconceitos do analista, sejam eles políticos, religiosos, sociais etc., que vão gerar intervenções que, por vezes, dificultam a compreensão e, por outras, estabelecem desacordos com seus analisados, ou ainda produzem cumplicidades inconscientes etc.

Em um momento de conflito político, seja de ordem nacional ou institucional, como continua pensando um psicanalista com seu analisando, se este pertence a um partido oposto? Exerce o poder de dominação ou ativa as relações de poder?

Também me pergunto se as mudanças nos dispositivos, as eternas discussões acerca do número de sessões, do que é imposto pela realidade socioeconômica, não poderia ser visto como um efeito do acontecimento, ou seja, daquilo que se introduziu na teoria e, portanto, na prática, sem ter ainda um lugar apropriado. Lacan também propôs uma mudança no dispositivo e, certamente, foi quem produziu uma profunda modificação que, como venho apresentando, talvez constitua, ou não, um acontecimento. Faltam-me conhecimentos para poder pensá-lo.

Quando Freud quis estender as explicações

Pergunto-me se alguns escritos de Freud não anteciparam a necessidade de ruptura. Tomo como exemplo o "Por que a guerra?" (1933). No "Por que a guerra?", Freud discorre com um físico, com um homem que pensa na bomba atômica, nas forças que o engenho do ser humano pode desatar, e adverte para um perigo. Reconhece que não pode dar conta do porquê da guerra. Vê-se em maus lençois ao tentar explicar estas situações pela teoria pulsional. Fala de violência, de poder. É um texto no qual o gênio intuitivo de Freud se torce ao querer utilizar conceitos para explicar algo que perpassa o alcance dos mesmos. Encontra-se ante um problema diferente do que esperava e daqueles conhecidos tanto por ele como por Einstein.

Naquele artigo e no intuito de explicar a questão com as ferramentas de que dispunha, Freud aceita a relação entre direito e poder, permite-se substituir a palavra poder por violência e opõe, então, direito à violência. A violência fica adscrita à pulsão, então, poder e violência harmonizam-se ao longo do artigo. A violência é o exercício da força para subjugar a outro e, inclusive, matá-lo. As armas substituem a força muscular e a morte do inimigo satisfaz uma inclinação pulsional. A violência é quebrantada pela união (p. 189), sempre em termos pulsionais, e o direito é o poder de uma comunidade. Fica, então, equiparável a violência de um indivíduo e a violência de uma comunidade, sendo que uma comunidade pode se proteger da violência estabelecendo laços especiais. Apesar dessas digressões, Freud admite que não se obtém grande coisa pedindo conselho sobre tarefas práticas urgentes ao teórico afastado da vida social (p. 196). E este é ele: um teórico afastado de certa realidade, e é também característico de muitos psicanalistas que trabalham e trabalharam em épocas muito difíceis, sem se aperceberem do impacto que certos eventos produzem na clínica.

 

Questões clínicas

Uma supervisionanda comenta: "Joguei um monte de papéis velhos no lixo, e não os rasguei, pensando: a quem vão interessar? No entanto, refleti, deveria havê-los destruído." Chega seu paciente e diz que ficou olhando com curiosidade um catador de papelão que estava lendo uns papéis que lhe pareciam conhecidos, dado que pareciam provir de uma instituição psicanalítica. Diz: "Chamou-me a atenção e tive vontade de me aproximar, mas também pensei, com certa benevolência, que não era possível que um catador de papelão na rua entendesse o que estava lendo." A supervisionanda, muito feliz, me diz que, claro, interpretou seu desejo de olhar dentro da mente do analista, demonstrou certa curiosidade etc. E, provavelmente, expressava também alguma autodesvalorização, na medida em que podia se identificar com o catador de papelão. Aí há um desafio. O catador de papelão lê e se interessa… Quem é o catador de papelão, que faz algo inesperado… Os papéis jogados tinham algum valor… Não será uma resistência do analista reverter imediatamente o significado deste comentário ao mundo transferencial?

Outro exemplo refere-se aos compromissos políticos e ao lugar que ocupa a atividade profissional na vida das pessoas. Um paciente trabalha num escritório em que é testemunha de condutas corruptas. Seu discurso contém denúncias, ofuscação, mal-estar, indignação e impotência. Pensa pedir demissão, mas isto não seria razoável porque precisa do trabalho para a economia familiar. Orientei minhas intervenções, aceitando que se tratava de um espaço infeccioso, o que, obviamente, teve o efeito de assumir o contexto de realidade na qual trabalhava o paciente. De alguma maneira me incluí com uma opinião. E então a problemática era: como criar um lugar para si num espaço "infeccioso"? Em um primeiro momento, pensei rapidamente o tema como uma projeção de aspectos transgressivos do paciente, mas ainda que essa ideia pudesse ser útil, não ajudava tornar consciente a dificuldade de sustentar um pertencimento perigoso (Puget, 2005). O conflito se dava ao lidar internamente com certa necessidade de pertencer e, por momentos, parecia que o pertencimento devia ser buscado a qualquer preço. Ou imaginar alternativas quando o pertencimento depende de uma atividade que tem a ver com um compromisso político, seus riscos etc.

Em pouco tempo, esse paciente, marcado por uma grande alteração política durante a qual as opiniões se radicalizavam, já não suporta ficar nesse trabalho que o compromete politicamente e o afasta de seus amigos. Já não se trata de se proteger de um meio corrupto, mas de perder amigos que o imaginam cúmplice de uma causa de que não compartilham. Decide que não mais lhe interessa, que está cansado e que com certeza vai conseguir algo em outro lugar, e não lhe importaria ganhar menos. Perguntei-me, então, por que agora havia se instaurado um limite. Supus que, ao ficar infectado pelo contexto laboral, o que era da ordem de seu contexto afetivo, o fato dos amigos distanciarem-se, já não era suportável. A permeabilidade entre contexto social e contexto outro não permitia sustentar pertencimentos importantes.

Contudo, pouco a pouco as águas foram se aquietando a nível político. Encontra outros valores e vantagens em seu trabalho, aprende a se manejar com a corrupção e se dá conta que, graças à firmeza de seu posicionamento anterior, pode tomar um papel mais ativo em certas decisões. As relações de poder já não impõem assimetrias. Trata-se da instalação de um delicado equilíbrio entre o que se impõe e a capacidade de decidir, assim como a necessidade de tornar consciente a incerteza inerente ao contexto social, e as possibilidades de lidar com os compromissos éticos. Aqui entram em questão os critérios segundo os quais se instaura o imprescindível e o prescindível, o necessário ou possível. Ainda assim, ficou-me claro que se opunham para o paciente o puro presente e seus avatares às reminiscências infantis. Em outras palavras: ser formatado pelo presente e lidar com o herdado. Era difícil para ele admitir o quanto influía, em sua constituição mental, a permeabilidade das instituições à situação política do país.

 

Referências

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Tradução de Fernanda Sofio
Revisão de Suzana Muszkat

 

Endereço para correspondência

Janine Puget
[Associación Psicoanalítica de Buenos Aires APdeBA]
Paraguay 2475, 1121
Buenos Aires, Argentina
e-mail: janinep@fibertel.com.ar

 

[Recebido em 7.5.2010, aceito em 4.6.2010]

 

 

1 Membro titular da Associación Psicoanalítica de Buenos Aires – APDEBA. Codiretora Maestría Familia y Pareja de IUSAM. Membro Fundador da Associación Argentina de Psicoterapia de Grupo.
2 As traduções de citações foram realizadas livremente pela tradutora deste texto.
3 "Só se pode chamar de contemporâneo aquele que não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue perceber nele próprio sua parte de sombra (…)" Agamben (p. 12).
4 Esta conceitualização é compartilhada com I. Berenstein (2001; 2004).
5 Referência ao Deus grego Aion, utilizado pela autora para distinguir um tipo de temporalidade. Os gregos usavam pelo menos três palavras para designar tempo: aion, kairós e kronos. Aion indicava o tempo de longo prazo. (N. da T.)