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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS TEMÁTICOS - VARIAÇÕES E FUNDAMENTOS

 

É preciso ser psicanalista. É preciso?

 

¿Es necessario ser psicoanalista? ¿Es esto preciso?

 

We must be psychoanalysts. Is that exact?

 

 

Julio Frochtengarten,1 São Paulo

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

O autor, convidado para participar de mesa-redonda sob o título Violações do setting, retoma o conceito original que esse termo tem em psicanálise para, em seguida, desmembrá-lo em suas dimensões: os aspectos formais ligados às condições externas em que a psicanálise se dá e os aspectos ligados ao psiquismo do analista que tem o método psicanalítico incorporado em si. Ao privilegiar esta segunda dimensão, ressalta aspectos ligados à atualidade da clínica e sua relação com o método analítico. A ideia de violação é examinada a partir de alguns fragmentos do cotidiano analítico.

Palavras-chave: setting analítico; método analítico.


RESUMEN

Invitado a participar de la Mesa redonda titulada: Violaciones del Setting, el autor restablece la concepción original de ese concepto. En seguida, lo desmiembra en algunas dimensiones: los aspectos formales relacionados a las condiciones externas donde el psicoanálisis tiene lugar; los aspectos vinculados en el psiquismo del analista que tiene el método psicoanalítico incorporado. Privilegiando esa segunda dimensión, se destacan aspectos relacionados a la actualidad de la práctica clínica y su relación con el método analítico. El autor investiga la idea de violación desde algunos fragmentos de la rutina analítica.

Palabras clave: setting analítico; método analítico.


ABSTRACT

The author, invited to participate in a roundtable discussion entitled Violations of the Setting, returns to the original concept of this term in psychoanalysis, in order to then dissect it into its different dimensions: the formal aspects related to the external conditions whereby psychoanalysis occurs; the aspects related to the psyche of the psychoanalyst who has incorporated the analytic method unto himself. Due to the special attention given to this second dimension, aspects related to the currency of clinical practice are highlighted, along with its relation with the analytic method. The idea of violation is examined through the consideration of some fragments of daily analytic practice.

Keywords: psychoanalytic setting; psychoanalytic method.


 

 

I.

Em espanhol, para xícara se diz taza; para taça se diz copa; para copo se diz vaso e para vaso florero (quando as flores ficam na água) ou maceta (quando plantadas na terra). Em espanhol, para sacola se diz bolsa, para bolsa se diz cartera e para carteira billetera, pois se diz billetes às notas. E notas aos bilhetes. Assim como se diz apellido ao sobrenome e sobrenome ao apelido. Em alguns casos as diferenças se anulam: "Você encontrou a nota que deixei com o bilhete?"; "Si, claro, la nota que me dejaste con el billete. Gracias".

Essas línguas, que nasceram de uma mesma fonte e passaram séculos sendo a mesma, foram aos poucos gerando as diferenças que hoje as separam. Outras comidas, outros hábitos, outras paisagens que exigiam outros nomes desembocaram em palavras novas e novos sons. E há usos que vão moldando as palavras e transformando os significados de acordo com a compreensão que delas oferece a experiência. Um exemplo clássico é o par esquisito/exquisito. Para simplificar o processo histórico, podemos imaginar duas pessoas num mesmo banquete em que ambas provam a mesma iguaria que jamais tinham provado antes. "Exquisito", diz o conviva de ascendência hispânica. "Esquisito?", pergunta seu colega lusitano. "Si, exquisito!"; "Hum, sim, esquisito." E ambos concordam em qualificar com a mesma palavra aquele sabor que lhes traz sensações tão diversas.

 

II.

Em Freud não se encontra uma descrição ampla e geral do que poderíamos chamar de técnica analítica. Mesmo os chamados "Artigos sobre técnica", publicados entre 1911 e 1915, dificilmente poderiam ser referidos como uma exposição sistemática de técnica psicanalítica. Em um deles, Freud esclarece que alcançou estas regras no decurso de muitos anos e pela própria experiência, enfatizando seu caráter individual:

Devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade; não me arrisco a negar que um médico constituído de modo inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar uma atitude diferente em relação a seus pacientes e à tarefa que se lhe apresenta. (Freud, 1912/1969, p. 149)

Em vários destes artigos, Freud enfatiza que não descreve regras e sim recomendações. Não reivindica sua aceitação incondicional e as compara às recomendações dos manuais de xadrez:

Todo aquele que espere aprender o nobre jogo do xadrez nos livros, cedo descobrirá que somente as aberturas e os finais de jogo admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição deste tipo. Esta lacuna na instrução só pode ser preenchida por um estudo diligente dos jogos travados pelos mestres. As regras que podem ser estabelecidas para o exercício do tratamento psicanalítico acham-se sujeitas a limitações semelhantes. (Freud, 1913/1969, p. 164)

Cito Freud novamente:

A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica; e ocasionam que um curso de ação, que via de regra é justificado, possa às vezes mostrarse ineficaz, enquanto outro que habitualmente é errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim desejado. Essas circunstâncias, contudo, não nos impedem de estabelecer para o médico um procedimento que, em média, é eficaz. (Freud, 1913/1969, p. 164)

Todo este conjunto de considerações e recomendações escritas – e sempre examinadas quanto às suas significações e justificativas psíquicas – formaram o que hoje denominamos setting: aspectos formais e disposições do analista, incorporadas e encarnadas por ele.

No início de minha formação ouvia dizer que setting é algo interno ao analista e não o aspecto formal da sala, consultório, neutralidade do ambiente criado, uso do divã, duração das sessões, horários estabelecidos… Esta discriminação fez sentido para mim, adoteia em teoria, e me parece haver certo consenso quanto a ela. Na prática percebo, porém, que em muitos momentos me preocupo com aspectos formais como se eles pudessem garantir o setting, alguma estabilidade para mim como analista. Certamente, estes aspectos formais são importantes, mas constituem a parte mais fácil de identificar no setting, enquanto este "algo interno" é bem mais difícil de ser definido, construído e mantido.

 

III. Sete situações da clínica psicanalítica

1. O analisando solicita ao analista que troque o horário de sua próxima sessão. Indagado, justifica o pedido alegando querer estar livre no começo da tarde, pois nesse dia tinha agendado um almoço com uma colega de trabalho e, não ter a sessão, lhe daria uma oportunidade discreta, e por isso conveniente, para que o encontro se prolongasse numa aventura sexual. O analisando diz contar com a ajuda do analista através desta troca de horário, e este hesita por sentir-se usado para uma situação desta natureza; por fim, atende ao pedido da troca de horário. Estaria o analista violando o setting? Ou o analisando, por querer substituir a sessão pela aventura sexual proibida?

2. O jovem analisando chega à sessão e entrega o pagamento do mês, em dinheiro, enviado pelo pai. Durante a sessão lamenta-se que, mais uma vez, chegou ao final do mês sem nenhum dinheiro da mesada que lhe permita realizar o exame laboratorial para Aids. Diz ter que adiar sua intenção para o próximo mês, voltando, a partir daí, a discorrer sobre as dificuldades que tem com o pai, a falta de liberdade com ele para conversar sobre este e outros assuntos. O analista, que acabara de receber o pagamento, experimenta um constrangimento na situação, e também compaixão pelo jovem – mas nada disto é comunicado. Conforme decidira ao longo da hora, ao final da sessão entrega a ele a quantia que considera suficiente para a realização do exame, dizendo que no próximo mês esperava que este valor lhe fosse devolvido. Estaria o analista violando o setting?

3. O tema "cães" propicia para uma jovem adolescente a forma de se relacionar com sua analista: o cão que queria ter e que finalmente ganha, os que a analista tem e que são pressentidos pelos latidos que ouve da sala de análise, as inúmeras conversas sobre suas qualidades, os tratos, as diferenças entre eles. Após alguns meses a analista decide atendê-la no desejo insistente de conhecer seus cães. Assim, os introduz, um por vez a cada sessão, na sala de análise. Bom tempo se passa com o atendimento se dando a três, o que facilita significativamente a comunicação entre ambas. E depois desse período, as sessões passam a se dar na praça em frente à casa da analista, ambas acompanhadas de seus respectivos cães. Estaria havendo aí violação do setting? (Minerbo, 2005)

4. A analisanda, portadora de diversas e sucessivas doenças físicas, frequentemente precisa ser internada ou ficar acamada, sem condições de vir para as sessões. A situação é de tal ordem que o analista se vê confrontado com a decisão de não atendê-la nesses momentos – e desta forma, pela frequência desses episódios, inviabilizar a análise – ou atendêla tanto em casa como nos hospitais. Decide pela segunda possibilidade, atendendo assim ao desejo da analisanda – e seu próprio – de continuidade da análise, apesar de experimentar desconforto nessas situações: acaba tendo que se confrontar com familiares e amigos da analisanda, a duração das sessões fica comprometida, os ambientes de atendimento frequentemente variam – situações estas que habitualmente não ocorrem no consultório. Estaria o setting analítico sendo violado?

5. O analisando raramente começa a falar na sessão enquanto seu analista não faz algum movimento inicial. O analista deveria aguardar o silêncio ser rompido pelo analisando? Interpretar o silêncio? Interpretar a dificuldade do analisando de tomar iniciativa? Romper o silêncio seria uma violação de regras básicas? São questões que se colocam no cotidiano analítico.

6. Desde o início da análise, o analisando vai criando situações de confronto com a analista e com o ambiente da análise: briga com os porteiros do edifício por querer subir antes do seu horário; faz exigências à analista quanto ao preço das sessões, que considera alto, e à frequência delas, que considera baixa, uma vez que "em breve a analista sairá de férias"; bate na porta do consultório antes de seu horário, pois quer ser atendido imediata mente. Essas atitudes, pelo forte apelo emocional envolvido, poderiam ser qualificadas de psicopáticas e, por isso, consideradas violações do setting por serem desrespeitosas à pessoa da analista, à análise, à realidade. Porém, esta é uma visão "de fora" da situação criada, "de fora" da experiência emocional de fato vivida pela analista. Assinalar como violação ajuda classificar, mas não parece contribuir para o prosseguimento da análise.

7. Após um período com quatro sessões semanais o analisando comunica à analista que, em função de viagens de trabalho, pretende manter fixos apenas os dois primeiros horários da semana; quanto aos outros, combinará a cada vez. A analista não se sente disposta a enfrentá-lo nessa decisão unilateral. E assim a análise prossegue, com o analisando pedindo os demais horários quase toda semana, mas deixando na analista um sentimento de estar havendo uma ruptura do setting. Após um longo período seguindo esse padrão, e em função das dificuldades que se apresentam, tanto em termos de agenda como de desconforto da analista, esta volta a insistir no ritmo das quatro sessões semanais. A concordância do paciente deixa a analista confortável, mas, a partir daí, sente a relação analítica definhando. Transcorrido mais um ano nesse clima, e por considerar que ele só pode vir quando o desejo e sua realização estão em suas mãos – padrão já enunciado em narrativas que revelavam sua intolerância às investidas sexuais das namoradas – a analista é quem propõe que retornem ao ritmo do paciente. O que anteriormente tinha sido visto como ruptura do setting, passou a ser agora – pelo novo sentido que se formou – a ser considerado condição de possibilidade para a análise prosseguir de forma produtiva (Blucher, 2007).

Penso que o tratamento dado a essas diversas situações deveria estar apoiado em algo mais além das condições externas, ambientais, formais. Com isso, o setting poderia ser considerado a condição preservada de pensamento dentro da turbulência emocional da sessão. Assim, compreendo que uma possível violação do mesmo teria que ser considerada acontecendo a partir do analista, uma vez que é dele o compromisso com a tarefa analítica. Se, como analista, não encontro possibilidades para um funcionamento dentro de um vértice psicanalítico, fazendo intervenções morais e normativas, contribuo, a meu ver, para uma violação daquela análise. Meu analisando não tem, a priori, compromisso com a psicanálise e seu setting, pois este só tem valor para ele quando seu contato com a realidade estiver suficientemente preservado. Isto pressupõe um funcionamento mental com razoável discriminação eu-outro, sujeito-objeto, dentro-fora, presença-ausência, impulso-ação. Em outras palavras, quando há capacidade e possibilidade de sonhar. Neste sentido, para o analisando o setting é ponto de chegada e não de partida.

 

IV.

Entendo a instauração do setting estando a serviço do método analítico. Não o considero, portanto, um conjunto de regras ou uma moldura, mas sim uma referência, um eixo, um suporte ou ambiente onde se dá a análise. Suas variações precisam ser compreendidas e pensadas dentro da experiência emocional que o analista vive com aquele paciente naquele momento. A parte fixa, formal, resulta de uma série de experiências que foram se configurando e estabilizando a partir do próprio trabalho, e também das exigências pessoais do próprio Freud, e em muitos aspectos são atualizadas por nós. Já a parte mental não é fixa, varia com as condições emocionais do analista e com o que o paciente faz com ele.

Como analista, estarei violando o setting – e não fazendo variações dele – se estiver arrastado pelas emoções e impossibilitado de pensamento.

Se há condições de experimentar emoções e com elas desenvolver pensamentos em ambos os participantes da dupla – ou ao menos no analista – o ambiente da análise está preservado. Mas se o analisando atribui ao mundo externo – dentro ou fora da sala de análise – qualidades que são suas, através do chamado mecanismo de identificação projetiva – e o faz com excessiva crença – isto afeta intensamente o ambiente da análise. O universo mental pode se expandir de tal forma que não fica mais contido em sua própria mente, nem na relação com o analista e nem na sala. O ambiente analítico se transforma e passa a ser infinito. Em função do método analítico internalizado em mim, o compromisso e disposição permanentes em criar um ambiente para que o analisando transpareça, espero estar em condições de perceber e evitar que esse movimento de expansão infinita se dê comigo; ou, se percebê-lo atrasado, conseguir retomar o rumo da análise aproveitando o ocorrido para pensar como ele se deu. Já o analisando não tem esse compromisso, e pode não ter essa condição. Se não pode levar em conta o setting, será proveitoso que a parte excluída do analisando, cindida e projetada, seja abrigada pela análise, e o setting evidencia essas possibilidades e esses limites. Nesses momentos, espero, como analista, ser capaz de encontrar formas alternativas de aproximação, fazendo observações a respeito, como modo de participar e favorecer crescimento.

O setting se instala inicialmente como convenção, uma referência que fixa alguns elementos como suportes favoráveis à investigação que se inicia e à elaboração consequente. Com esta convenção nossa investigação está comprometida até um limite em que – por conta do par – ela se rompe. Posso tomar ruptura como perturbação, interferência, perigo, ou como abertura para sondagem de uma riqueza comunicativa. Isto o farei em função do meu grau de tolerância e capacidade de dar significado, ou melhor, às vezes de suspender o significado.

O setting se justifica por favorecer e sustentar o método analítico. Aí, então, está encarnado na mente do analista, se confundindo com ela. Em minha forma de pensar, o setting é, por excelência, um estado de disposição para examinar, de dentro, a experiência emocional presente e seus movimentos no decorrer do tempo. "O setting pode ser considerado como claustro (Meltzer, 1992) ou como continente com qualidades de elasticidade e robustez (Bion, 1962)." (Ferro, 1998).

Enquanto meu paciente se move como, e por onde pode, seria útil se sempre pudesse encontrar, em mim, o analista encarnado. Assim, aquilo que começa como convenção pode direcionar o contato para sua dimensão emocional e psíquica.

 

V.

A história de Babel é bem conhecida: após o dilúvio bíblico, os descendentes de Noé reconstruíram essa que foi uma das primeiras cidades que pertenceu ao reino mesopotâmico. Conforme mencionado no livro bíblico do Gênesis, foi construída ali uma torre enorme, finalizada em 1792 aC, com a finalidade de chegar ao céu. Deus, irado com a ousadia humana, teria feito com que os trabalhadores da obra começassem a falar idiomas diferentes uns dos outros, de modo que não pudessem se entender. E assim, acabaram por abandonar a sua construção. Este episódio, segundo a Bíblia, explica a origem dos idiomas (Gênesis 10:10; 11: 1-9). Apesar de seu aspecto mitológico, a Torre de Babel pode ter sido realmente construída.

Brueghel, pintor flamengo do século XVI, pintou A construção da Torre de Babel, exposto no Kunsthisriches Museum, em Viena. Em seu quadro, a Torre aparece em forma de concha de caramujo encoberta por uma estrutura telescópica.

Mais recentemente, no século XX, o escritor espanhol Jean Benet, falecido em 1993, escreveu um belíssimo ensaio, também chamado A construção da Torre de Babel (Benet, 1990), no qual faz uma análise minuciosa do quadro de Brueghel. Ele, que era também engenheiro, examina cada andar da Torre pintada por Brueghel e mostra como, em função da estrutura telescópica, não há continuidade entre os andares, cada um deles rompe com o anterior, tem novos elementos ou dimensões que não podiam ser previstos pelos andares anteriores, o que impede a memória do projeto inicial e termina por estabelecer a confusão e o caos. Para entendermos melhor: a estrutura da torre no quadro é diversa da característica estrutura helicoidal – utilizada em pinturas anteriores ou mesmo contemporâneas suas – em que uma rampa em espiral contínua, com os mesmos elementos como módulos, se repete até o topo como uma diretriz. No quadro de Brueghel existe a estrutura helicoidal apenas na parte interna da torre, como se o caos aparente encobrisse o projeto original de um edifício perfeito. Mas na obra de Brueghel a sua construção já pressupõe a ruína, sendo o quadro um testemunho do fracasso, uma representação da impossibilidade de atingir a perfeição do idioma único entendido por todos.

De fato, é a ousadia arrogante de criar uma sociedade perfeita que provoca a ira divina. A reação de Deus é estabelecer então o desentendimento, criando uma multiplicidade de idiomas e impossibilitando a construção da Torre. Mas ao impedir que os homens levem adiante o projeto de uma sociedade perfeita representada pela Torre, com uma linguagem universal, Deus deixa de ser o Todo-Poderoso. A partir daí, cada língua terá seu próprio deus. O homem não sai da terra para o céu, mas também não há descida do céu para a terra; o mundo não se reduz "à razão pura", mas também não pode ser reconduzido a uma genealogia única. Em vez de "Eis que todos constituem um só povo e falam uma só língua." (Gênesis, 11, antes de Jeová confundir a linguagem dos homens), encontramos o "crescei e multiplicai-vos, povoai a terra, andai" (o mesmo Gênesis, 11). Como tal utopia, Babel não é tanto uma réplica do projeto divino, mas uma expropriação do mesmo.

Haveria certo sucesso humanista no fracasso em alcançar a linguagem única, o Deus único e o povo unido. Como se nos próprios atos estivesse contida a sua traição. A linguagem também quer alcançar o céu, o proibido. E é do fracasso do projeto da unificação dos homens e da sua linguagem, que nasce a diversidade e a criatividade.

 

VI.

A proposta de um setting pré-formado ou prefixado, pronto e aplicável a todo paciente, evoca a imagem da torre de Babel e o projeto de uma língua única, universal. Como no quadro de Brueghel, um setting assim configurado já contém, em si, a possibilidade do fracasso. Prefiro pensar em setting como o conjunto de condições minhas que me possibilitam fazer observações psicanalíticas, incluindo aí os momentos em que o aspecto externo e formal é respeitado e os momentos em que este sofre desorganizações. E também na investigação da significação psíquica envolvida em sua preservação: por ação superegoica ou egoica, por pensamento ou por automatismo? Não penso em obediência a um setting para que se dê análise; mas sim um setting no analista que lhe dê condições de participar daquela análise. É neste ambiente que se dá o atendimento psicanalítico de um analisando particular, singular, no qual ele transparece como ser humano em relação com o outro.

Na mente humana – e nunca é demais lembrar que isto vale para analistas e analisandos – predomina o sistema inconsciente, território do infinito incognoscível e inefável. A mente, por sua natureza e modo de funcionar, por si não respeita enquadres, podendo expandir-se para este infinito, como se evidencia nas alucinoses. Cito Bion (1965)

A situação do psicanalista lidando com transformações psicóticas é similar àquela atribuída aos físicos nucleares. Ele tem que lidar com relacionamentos de um domínio que não tem limitações finitas. (p. 62)

Assim, a mente não pode se manter limitada por ação de uma organização externa fixa e estruturada. É somente em nome do método analítico, da disciplina imposta para conseguir observar dentro de um campo no qual estamos inseridos, que deveríamos manter um setting.

 

 

Estar dentro de uma moldura não é, por si só, uma forma do funcionamento humano; é uma possibilidade que ocorre na dependência da capacidade de pensar dentro de experiências emocionais vividas. O pensamento permite diferenciações, discriminações, diferenças e semelhanças. O não pensamento homogeneiza, apaga as diferenças, padroniza. E a experiência analítica envolve tanto o pensamento quanto o não pensamento. A visão que simplesmente opõe preservação e violação do setting nos afasta de investigar a significação de cada uma destas situações: caímos na dimensão da polaridade valorização/ desvalorização. Porém – e este é o ponto que venho desde o início destacando – não se deve atribuir e esperar dos analisandos este compromisso com a atividade do pensamento, a psicanálise ou seu método.

Setting pressupõe a tentativa de discriminação entre realidade interna e externa. Para tanto deve haver na mente certa divisão (splitting) interna; só assim pode existir uma consideração pela realidade como algo alheio a mim. Neste sentido, paradoxalmente, pode-se dizer que o setting estabelecido, ao ser desconsiderado, permite que se dê a psicanálise. Não a psicanálise sustentada pelas teorias clássicas, mas a psicanálise daquilo ainda desconhecido e real, a qual vai se fazendo a partir de pequenas observações pontuais, assinalamentos, desdobramentos, rudimentos de comunicação, relações…

É como psicanalista que procuro estar presente na situação atual que se dá na sala, entre eu e o paciente, naquele momento. Isto envolve a difícil disciplina de escapar do passado e do futuro; em outras palavras, não me deixar guiar pelas memórias e desejos.

Acolher a experiência emocional que vou vivendo com o paciente na sessão e aprender com ela – ou utilizar a função α, se preferirmos esta terminologia – é o instrumento que, como analista, me proponho a usar. Sensível ao maior número de fenômenos, neste processo vou obtendo dados – de dentro para fora e de fora para dentro, internos e externos, sensoriais e psíquicos – que vão engendrando pensamentos a respeito do que ocorre. Posteriormente novos dados se acrescentam, e muitas vezes modificam a forma de ver a situação, num processo alheio às contradições, à lógica, às sequências e à causalidade. Para mim, esta é uma das marcas centrais da contribuição de Bion.

Esses pensamentos vão criando um ambiente receptivo para o surgimento de um fato selecionado. Bion (1963) o conceitua como "aquilo que empresta coerência e significado a eventos conhecidos, cujo relacionamento ainda se ignorava" (p. 153); ele "é o nome da experiência emocional, a experiência emocional da sensação de descoberta de coerência. Sua significação é, por conseguinte, epistemológica e não se acredita que seja lógica a correlação dos fatos selecionados" (Bion, 1962, p. 91).

Este processo vai me dando uma direção, uma possibilidade de dizer algo ao paciente, "criando" um interlocutor para mim naquela análise; para isto, dependo de haver uma divisão no paciente que possibilite que ele veja o que está se passando.

O setting é condição para o trabalho analítico, mas não seu substituto. Pode ser proposto como o terreno onde ocorrem todas as modalidades de transformações (Bion, 1965). É a preservação do método analítico ou, dizendo de outra forma, é a presença da minha capacidade de pensar que afasta a ameaça de dispersão e confusão babeliana na psicanálise, respeitando a diversidade psíquica e cultural da raça humana.

Há um provérbio latino que diz:

O que é rígido desaba
e o que está em constante movimento persiste.

 

Referências

Benet, J. (1990). A construção da torre de Babel. Madrid: Siruela.         [ Links ]

Bion, W.R. (1962). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1966, p. 90.         [ Links ]

Bion, W.R. (1963). Elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1966, capítulo V.         [ Links ]

Bion, W.R. (1965). Transformações. Rio de Janeiro: Imago, 1983, p. 62.         [ Links ]

Blucher, T. (2007). Desconstrução do setting: perversão ou possibilidade do contrato. Trabalho apresentado em Reunião Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.         [ Links ]

Brueghel, P. http://www.passeiweb.com/saiba_mais/biografias/p/pieter_brueghel.         [ Links ]

Ferro, A. (1998). Na sala de análise. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1969). Recomendações aos médicos que exercem psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad., Vol 12, p. 149). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1912)        [ Links ]

Freud, S. (1969). Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I). In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad., Vol. 12, p. 164). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Minerbo, M. (2005). Formar um analista criativo. Jornal de Psicanálise, 38 (69), 179.         [ Links ]

Zaccagnini, C. (2006). Polissemiose. Folder da exposição de Amílcar Parker. Centro Cultural Banco do Brasil. São Paulo, 10/12/2006 a 18/02/2007.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Julio Frochtengarten
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo]
Rua Januário Miraglia, 99 – Vila Nova Conceição
04507-020 São Paulo, SP
e-mail: juliofro@uol.com.br

 

[Recebido em 29.4.2010, aceito em 28.5.2010]

 

 

1 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.