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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS TEMÁTICOS - VARIAÇÕES E FUNDAMENTOS

 

O diálogo transicional na psicanálise de crianças: indicação lúdica e testemunho presencial

 

El diálogo transicional en el psicoanálisis de niños: indicación lúdica y testimonio presencial

 

The transitional dialogue in the psychoanalysis of children: playing statement and testimony in person

 

 

Roberto Barberena Graña,1 Porto Alegre

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo (subdividido em dois artigos) propõe neste primeiro tempo uma revisão das formas historicamente assumidas pela prática psicanalítica com crianças, apontando os pressupostos epistêmico-ontológicos que a sustentam e realizando uma crítica da atividade interpretativa – particularmente a operada pelos psicanalistas kleinianos – que questiona principalmente a crença compartilhada na sua potencialidade mutativa pela produção de insights. Para isso, toma como suporte as obras de Ferenczi, Winnicott e Lacan e sugere uma abordagem clínica que realça a comunicação indireta (lúdico-metafórica) e a presença viva e discreta (anobstrutiva) do analista no interior do setting.

Palavras-chave: psicanálise de crianças; diálogo transicional; indicação lúdica; testemunho presencial.


RESUMEN

Este estudio (subdividido en dos artículos) propone en su primer tiempo una revisión histórica de las formas asumidas por la práctica psicoanalítica con niños, señalando a los supuestos epistémicosontológico que la sostienen, y llevando a cabo una crítica de la actividad interpretativa – particularmente la operada por los psicoanalistas kleinianos – que cuestiona especialmente la creencia compartida en su potencialidad mutativa por la producción de insights Para esto toma como soporte las obras de Ferenczi, Winnicott y Lacan, y sugiere un enfoque clínico que hace hincapié en la comunicación indirecta (lúdicometafórica) y la presencia viva y discreta (anobstrutiva) del analista en el encuadre psicoanalítico.

Palabras clave: psiconálisis de niños; diálogo transicional; indicación lúdica; testimonio presencial.


ABSTRACT

This study (subdivided in two papers) considers in its first time a revision of the forms historically assumed by the psychoanalytic practical with children, pointing the epistemic-ontological presupposes that support it and carrying through a critical of the interpretative activity – particularly the operated one for the kleinian psychoanalysts – that mainly questions the belief shared in its mutative potentiality for the production of insights. For this it takes as a support the works of Ferenczi, Winnicott and Lacan and suggests a clinical approach that enhances the indirect communication (playful-metaphoric) and the alive and discrete presence (unobtrusive) of the analyst within the setting.

Keywords: psychoanalysis of children; transitional dialogue; playing statement; testimony in person.


 

 

Em A atualidade da psicanálise de crianças, publicado em 2001, ocupei-me em instanciar a prática psicanalítica durante os anos de infância realizando uma revisão histórica e propondo uma problematização epistemológica dos axiomas que, implícita ou explicitamente, orientaram, durante mais de cinco décadas, a atividade clínica dos psicanalistas de crianças, atividade esta predominantemente influenciada pelo modelo teórico e procedimental kleiniano – sobretudo na Europa e América Latina – com seus derivativos, variações e redescrições pontuais e locais em diferentes países do mundo ocidental.

Nessa ocasião detive-me em apontar os pressupostos ontológico-filosóficos que, sem o saberem, os psicanalistas de crianças operavam em sua prática analítica cotidiana. Afirmei ainda que a perspectiva idealista (por vezes solipsista) do conhecimento e do desenvolvimento psicológico orientava o pensamento kleiniano e sustentava um procedimento clínico apoiado sobretudo na atividade interpretativa, com a finalidade presumida de propiciar aos pequenos pacientes a ampliação de um pretenso conhecimento do próprio inconsciente ou do sentido oculto dos sintomas que apresentavam. Quanto mais profunda e completa a interpretação, maiores os benefícios terapêuticos que traria consigo. Não se alimentavam, ao que parece, muitas dúvidas sobre a correção desta premissa.

Desde as Controversial Discussions, entretanto, que sacudiram a British Psychoanalytical Society, em meados dos anos 1940, ressoa uma crítica dirigida por Glover – e endossada por Winnicott (1948/1992b) – ao cogitatio et operatio dos psicanalistas kleinianos: a de que, ao pretenderem interpretar detalhadamente as fantasias inconscientes mais profundas e complexas dos seus pacientes, eles estariam interpretando as suas próprias fantasias ou pressupostos teóricos projetados sobre o material clínico produzido pela criança, realizando, portanto, um "forçamento" – para usar a expressão proposta por Alain Badiou – ou seja, atuando dogmática, sistemática, e mais ou menos violentamente a ficção de uma verdade última e geral que mal parece, entretanto, diferenciar-se de uma crença pessoal e/ ou grupalmente compartilhada do psicanalista.

Como escreveu Badiou (2002) "O ser genérico de uma verdade não é jamais apresentado. Uma verdade é inacabável (…) O forçamento é a potente ficção de uma verdade acabada. A partir de tal ficção, posso forçar saberes novos, mesmo sem ter verificado tais saberes" (p. 48). Esta costuma ser a mais frequente origem da formação de "sistemas". Assim, podemos em filosofia falar de um sistema kantiano ou hegeliano, certamente, mas poderemos tender também a servir-nos operacionalmente em psicanálise, segundo a leitura que façamos da obra de Freud, de um "sistema freudiano", sugerido pela excelência de um complexo categorial coerentemente explicativo da dramática humana que a isso autoriza (Freud explica!). Mais facilmente, talvez, nos inclinemos a tomar como referência o "sistema kleiniano", sobretudo pela feição axiomática e tranquilizadora que seus conceitos e fórmulas tendem a assumir ao serem repetidos, ipsis verbis, de maneira infatigável pelos seus seguidores e simpatizantes. Este tratamento "canônico" da obra de Klein deu origem àquilo que Winnicott denominou, em 1952, uma "linguagem chamada doutrina kleiniana e kleinianismo" a qual ele recomendava à antiga mestra destruir a partir de dentro e construtivamente, para evitar que esse "fenômeno artificialmente integrado" fosse atacado destrutivamente a partir de fora (Winnicott, 1987).

Não me parece, entretanto, que os desenvolvimentos pós ou neo-kleinianos estejam totalmente livres desse mesmo vício teorético ou sintoma epistemológico. Atente-se, por exemplo, à necessidade de um Bion de manter vivos e ativos e encontrar utilidade teórica para conceitos como posição esquizoparanoide, posição depressiva, identificação projetiva e instinto de morte; atente-se igualmente para a tendência de um Meltzer a inadvertidamente caricaturizar o frenesi significacionista dos analistas kleinianos insistindo em interpretar, de forma profunda e cada vez mais complexa, as fantasias inconscientes supostamente ativas nos mais severos distúrbios psicopatológicos da infância, como as psicoses infantis ou estados autísticos da criança (cf. especialmente Meltzer, 1975); e observe-se ainda, nos dois autores, a vigência das metáforas lácteo-canibalísticas e fecal-excrementícias retiradas da terminologia kleiniana e em tudo impróprias para a descrição e a compreensão dos fenômenos psíquicos elementares operantes no desenvolvimento emocional primitivo, como atentamente assinalou Winnicott.

Foi certamente uma particular simpatia pelos pensadores e pelo pensamento não sistemático o que me conduziu, ao longo de mais de duas décadas de investigação, a examinar criticamente a noção de interpretação livremente disseminada entre grande parte dos psicanalistas – a partir da sua própria experiência pessoal de formação –, que adota o estilo deutung, a indicação em formato tradutivo e explicativo, que além de tomar como pressuposta a existência a priori de um significado oculto nas falas e comportamentos do analisando, entende que o analista é o sujeito que o conhece ou que o descobrirá, para logo comunicá-lo ao seu paciente a fim de que este amplie o seu autoconhecimento ou expanda a sua capacidade mental-reflexiva.

Entre as revisões críticas dirigidas a este formato e objetivo da interpretação psicanalítica, distinguirei a de Octave Mannoni (1992), em Um espanto tão intenso, e a de Juan-David Nasio (1991), em Os olhos de Laura, as quais apoiam-se e derivam-se de questionamentos mais amplos representados pelas obras de Winnicott e Lacan, a meu ver as duas leituras desconstrutivas mais altamente vivificantes do pensamento de Freud na atualidade.

Em sua crítica da interpretação, Mannoni se questiona sobre a possibilidade de uma "análise muda", uma análise que pudesse ter êxito sem que o analista interpretasse nada. Isto representaria, segundo propõe, o "grau zero da interpretação"2. (É oportuno lembrar que Winnicott, no final de sua vida, dizia sentir-se satisfeito se pudesse, ao longo de uma sessão psicanalítica, realizar uma única interpretação oportunamente formulada). Além da frequência da utilização daquele que supomos ser o instrumento máximo da eficácia da análise no campo clínico, é necessário considerar também a forma que esse dito/ato assume, as suas potencialidades e possibilidades terapêuticas, e o risco que sofre – à semelhança de um medicamento – de tornar-se tóxico ou subterapêutico quando da sua administração. Para Mannoni, o grau zero da interpretação poderia ser exemplificado por uma intervenção que se reduzisse ou assemelhasse à observação de Sancho Pança a Don Quixote diante dos repetidos desatinos proferidos por seu amo delirante: "Mire vuestra Merced lo que dice, Señor". Ele considera que as interpretações tradutivas ou decodificantes (a deutung) tendem a tornar-se teóricas, intelectuais, à medida que se recorre a determinada teoria para apoiar a pretensão de estar descobrindo no material aportado pelo paciente, em seus enunciados, desenhos ou brinquedos, um sentido oculto que o sistema de fundo – freudiano, kleiniano ou outro – permitirá axiomaticamente explicar. Talvez a interpretação de estilo deutung devesse ser reservada, aconselha Mannoni, para a análise dos sonhos ou dos lapsos, que não estão presentes, porém, em todas as sessões nem fazem o dia a dia de uma análise, sendo mais provável e conveniente, portanto, que na maior parte do tempo estejamos efetuando mais intervenções do que interpretações.

Para contrastar as interpretações e as intervenções, Mannoni (1992) toma como exemplo o estilo clínico de Winnicott, comparado-o com o de Klein. Ele escreve: "A observação de Winnicott que citei, que é o paciente (sua criatividade) quem faz o trabalho e que as intervenções do psicanalista podem impedi-lo de fazê-lo, parece-me aludir sobretudo à interpretação deutung, ou seja, no fundo às interpretações de Melanie. Pois como se sabe, Melanie usava e abusava justamente do estilo deutung. Ela traduzia em linguagem teórico-analítica as falas infantis. A criança brinca com um trenzinho, que às tantas penetra num túnel, e Melanie interpreta – como se fosse um sonho: é o teu papai que entra na tua mamãe" (p. 90). Para Mannoni, esta forma de interpretar é um inconveniente resíduo do período em que reinava o simbolismo freudo-junguiano, que compunha uma espécie de catálogo dos símbolos a partir dos quais se interpretava quase imediatamente os sonhos e as associações. Ele conclui a sua crítica destacando a potencialidade terapêutica do "brincar", acrescentando: "A atitude de Winnicott consiste em ver na análise um jogo3 e não um trabalho. Isso decorre, evidentemente, do fato de Winnicott ter recebido sua formação de Melanie Klein, que interpretava excessivamente os jogos e brincadeiras infantis. Mas ele opôs-se a ela mais tarde, quando descobriu que o jogo é terapêutico por si mesmo e que as insistentes interpretações de Melanie Klein são inúteis" (p. 91).

Juan-David Nasio é um analista formado na tradição lacaniana, mas que, diferentemente daqueles fiéis eclesiásticos que repetem, de forma não menos cansativa que os kleinianos, os bordões lacanianos – reafirmando sempre o mesmo discurso-tampão – mostrase aberto a uma interlocução ampla com todas as escolas de pensamento psicanalítico, concedendo à obra de Winnicott uma especial atenção. Nasio (1991) comparte o desagrado de Lacan para com a ideia de uma "técnica psicanalítica". Segundo diz: "Se é verdade que há um savoir-faire em psicanálise, ele consistiria em 'saber-se interrogar'" (p. 26). O conhecimento psicanalítico, se existe, deverá consistir num esquecimento por parte do analista da teoria que o formou, para permitir-lhe servir-se de um saber que, operando inconscientemente, produza um dito/ato terapêutico que é o surgimento nele da verdade que o paciente obliterou. Partindo do princípio de que analista e paciente, juntos, compartilham um saber inconsciente que poderá subitamente revelar-se em qualquer dos dois, Nasio propõe que:

1. "não há inconsciente senão no próprio acontecimento" 1. (p. 27), sendo errôneo pensar que o inconsciente espera em algum lugar para se manifestar ou ser descoberto,

2. "há apenas um único inconsciente em jogo na relação analítica, aquele que se abre durante o acontecimento" (p. 27), momento em que a distinção entre paciente e analista se desfaz selando-se o seu vínculo, e

3. "o inconsciente e a relação transferencial são, no decorrer do acontecimento, uma só e mesma coisa" (p. 31), sendo que a interpretação poderá ser feita por ambos os componentes do campo transferencial que se formou, instaurando um inconsciente único, um coinconsciente, entre a poltrona e o divã.

O dizer do psicanalista, sustenta Nasio, não carrega consigo o propósito de decifrar o inconsciente, mas de produzi-lo, sob a forma de acontecimento, relançando a cadeia dos significantes e favorecendo que outros acontecimentos se realizem. Parece ser clara a distinção entre a forma da interpretação aqui proposta e aquela racionalmente elaborada e temporalmente calculada que visa, sobretudo, "tornar consciente o inconsciente". Não se trata mais de uma revelação ou descoberta do sentido oculto na fala, no sonho ou no brinquedo do paciente. Conforme Nasio (1991): "O psicanalista pode, com efeito, praticar esse tipo de interpretação racional, explicativa, mas isso não será uma interpretação. A melhor interpretação se diz sempre em duas ou três palavras bem curtas, à maneira de uma réplica que toca, corta e pontua o enunciado do analisando" (p. 29).

Na psicanálise de crianças esse questionamento da interpretação começou a ser feito de uma forma não exatamente teórica, mas apareceu sob a forma de experimentos espontaneamente realizados em consequência do repetido fracasso clínico (terapêutico) das interpretações altamente elaboradas, pretensamente dirigidas ao mais profundo inconsciente dos pacientes infantis.

Por sua incomparável experiência como clínico da infância e pelo uso lúdico que fazia da sua inteligência, Winnicott aparecerá neste cenário como um reformador liberal da assim chamada técnica psicanalítica clássica e desconstruirá o estilo interpretativo conduzindo-o ao extremo da simplicidade e da discrição, dando-lhe aos poucos a forma de um dito espirituoso, de uma piada, de uma interjeição ou, como preferia dizer, de um rabisco (squiggle).

Em um artigo escrito em 1960/1996, no qual pretende comparar certos fenômenos do desenvolvimento infantil com a transferência psicanalítica, Winnicott define admiravelmente as condições necessárias para que uma interpretação psicanalítica seja "alterativa" (ou mutativa) e eficaz. Numa linguagem original, cuja força deriva da sua autenticidade heurística, ele sustenta que:

Na psicanálise tal como a conhecemos não há trauma que esteja fora da onipotência do indivíduo. Tudo fica finalmente sob controle do ego, e assim torna-se relacionado ao processo secundário. O paciente não é auxiliado se o analista diz: 'Sua mãe não foi boa o suficiente'… 'Seu pai realmente seduziu você'… 'Sua tia abandonou você'. As mudanças ocorrem numa análise quando os fatores traumáticos ingressam no material psicanalítico na forma própria do paciente e dentro da onipotência do paciente. As interpretações que são alterativas são aquelas que podem ser feitas em termos de projeção. O mesmo se aplica aos fatores benignos, fatores que levam à satisfação. Tudo é interpretado em termos do amor e da ambivalência do indivíduo. O analista é preparado para esperar longo tempo até estar na posição de fazer exatamente este tipo de trabalho. (p. 37)

Sua afirmação apoia-se numa redescrição do setting psicanalítico a que Winnicott se dedicava há aproximadamente vinte anos. Desde o início dos anos 1940, quando escreveu "A observação de bebês em uma situação determinada" (1941/1992a), Winnicott estivera repetidamente esboçando a sua noção de transicionalidade, que no início dos anos 1950 seria formalmente apresentada em "Objetos transicionais e fenômenos transicionais" (1951/1992c), hoje um clássico de leitura e estudo necessários para todo psicanalista contemporâneo.

Os fenômenos e objetos transicionais são acontecimentos ontogênico-maturativos que indicam a abertura de um espaço – que é tanto um território como um buraco, no sentido deleuziano (cf. Deleuze, 2007) – entre o bebê e sua mãe, entre a vivência inicial da plenitude assegurada pelo cuidado materno satisfatório e o reconhecimento negativo da exterioridade do real, entre a atividade autoerótica do bebê e a manipulação criativa de um objeto do mundo exterior. É por este espaço, que uma vez aberto não cessa de distenderse, transformar-se, desterritorializar-se e reterritorializar-se (ibid.) que o sujeito humano transitará, ao longo de sua existência, exercitando a criatividade e a ilusão. É apenas quando experimentamos essa "ilusão de contato" com o mundo (Outro) que engendramos as condições ótimas para que as vivências mais nobres e significativas da vida humana tenham lugar. É somente então que, eventualmente, poderemos "estar na verdade", habitar a verdade, ser verdadeiramente. A verdade, nós a vivemos e experienciamos, mais do que a pensamos, dizemos ou descobrimos, pois ela ama esquivar-se do pensamento e subverter a fala (parole). Lacan (1966/1999) foi sábio ao dizer, desconstruindo a vigência axiomática do cogito cartesiano: "Penso onde não sou, logo sou onde não penso".

O espaço transicional, o entre-dois onde coabitam ilusão e verdade, adquirirá uma importância decisiva na eficácia clínica do tratamento psicanalítico. Em 1971 Winnicott (1971/1989) afirmaria que a psicoterapia/psicanálise acontece na sobreposição das zonas de brinquedo do paciente e do analista. Analista e paciente brincam no interior do campo transicional quando conseguem conjuntamente criá-lo e usá-lo. Quando Winnicott insiste em que este espaço e os objetos aí produzidos não devem ser confrontados, está preocupado sobretudo com as necessidades narcísicas do paciente, ocupado em respeitar a sua "órbita de onipotência", o que depende da sustentação consistente, por parte do analista, da realidade psíquica que o paciente é pontualmente capaz de cenificar4. Não há outra realidade na análise. A ilusão do paciente deverá ser necessariamente aceita, creditada e compartilhada ficcionalmente pelo analista; esta é uma condição sine qua non que o analisando lhe impõe para deixá-lo participar da sua intimidade subjetiva. E é sob tais condições que o que denominamos diálogo transicional demonstrará a sua máxima utilidade clínica, possibilitando a comunicação indireta em momentos de regressão ou retraimento, a comunicação mediada por alegorias, personagens, dramatizações e metáforas.

Winnicott costumava insistentemente repetir para seus alunos, nos seminários e supervisões: Don't stop the game! O diálogo transicional é uma forma de indicação, mais frequentemente de indicação lúdica, que permite intervir interpretativamente – conforme a nossa definição anterior de interpretação – a partir do interior do campo narcísico do sujeito, sustentando a continuidade do ser (continuity of being) no tempo. A primeira vez em que o vimos ser intuitiva e instrumentalmente utilizado no curso de uma análise, conforme demonstrei em meu livro Origens de Winnicott (Graña, 2007), foi na única entrevista que Freud teve em seu consultório com o pequeno Hans e com seu pai, Max Graff, a quem Freud supervisionava na condução da análise do próprio filho. Encontramos ali o germe do que ora estamos propondo denominar indicação lúdica. Transcreverei parte do capítulo sobre Freud e Winnicott, do livro referido, porque talvez não consiga descrever melhor esse momento mítico do qual se originou a modalidade interpretativa que creio ser hoje a mais conveniente e operante na abordagem clínica psicanalítica da criança (o itálico distinguirá esta transcrição das demais citações de outros autores).

No caso do Pequeno Hans, publicado em 1909, Freud cederá ao convite do brinquedo que lhe é irresistivelmente apresentado pela fina inteligência e pelo afeto sincero da criança, e tanto sua fala como a fala produzida pelo pai do menino a partir das suas instruções assumirão uma qualidade prenunciadora do que denominaríamos, na análise winnicottiana, um "diálogo transicional". Aquele que Winnicott mantém com a pequena Piggle, por exemplo, numa das sessões finais de sua análise, quando ela, após apanhar a figura de um homem que diz ser o Dr. Winnicott, começa a maltratá-lo, movida por um verdadeiro ímpeto de destruição e uso do objeto, enquanto Winnicott, expressando dramaticamente o seu próprio sofrimento por ser assim atacado e por ter de assim perdê-la (em nome do seu amor por ela) responde a cada estocada da menina com um: – Aiii! Qual outra, se não essa, será a marca distintiva do transicional? O transicional bascula, flutua, oscila permanentemente, em sua configuração imagética e em sua formulação metafórica, entre a realidade imaginariamente concebida pelo sujeito e a realidade externa ou compartilhada (shared reality), entre o fato, em sua condição de ocorrência convalidada, e a imagem que traz consigo a marca da criatividade pessoal. Observe-se, a propósito, a seguinte passagem do relato da única entrevista realizada por Freud com Hans e seu pai conjuntamente, e a forma de intervenção da qual Freud se serve para acessar, um tanto obliquamente, a fantasia inconsciente do menino a fim de trazer-lhe à consciência as fontes mais profundas do seu medo aos cavalos:

A consulta foi breve. O pai de Hans começou por observar que, a despeito de todos os esclarecimentos que dera a Hans, seu medo de cavalos ainda não havia diminuído. Éramos também forçados a confessar que as conexões entre os cavalos de que tinha medo e os sentimentos de afeição por sua mãe, antes revelados, não eram em absoluto abundantes. Determinados detalhes que acabo de saber – no tocante ao fato de que ele se incomodava, em particular, com aquilo que os cavalos usam à frente dos olhos e com o preto em frente de suas bocas – certamente não se explicariam a partir daquilo que sabíamos. No entanto, ao ver os dois sentados à minha frente e ao mesmo tempo ouvir a descrição que Hans fazia da ansiedade que lhe causavam os cavalos, vislumbrei um novo elemento para a solução, e um elemento que eu podia compreender que provavelmente escapasse a seu pai. Perguntei a Hans, à guisa de brincadeira, se os cavalos que ele via usavam óculos, ao que ele, contra toda a evidência em contrário, repetiu que não. Finalmente lhe perguntei se para ele o 'preto em torno da boca' significava um bigode; revelei-lhe então que ele tinha medo de seu pai, exatamente porque gostava muito de sua mãe. (p. 42)

Pode-se constatar que o diálogo transicional consiste numa intervenção transversal, oblíqua, através da qual trespassam-se dois planos de significação que operam códigos linguístico/ imagísticos diversos, grampeando pontualmente um significante a um significado5, ou transfixando dois significantes que estiveram, até então, operando arbitrariamente em conjunturas diferentes. Neste gesto simples, mas sutil, cria-se subitamente a metáfora.

Em um artigo escrito no final da sua vida e denominado "Análises de crianças com adultos", Ferenczi (1931/1992), permanentemente insatisfeito com a forma adotada e com os resultados obtidos pelas interpretações psicanalíticas, contribuiu importantemente para o desenvolvimento da abordagem clínica de pacientes graves ou profundamente regredidos. Com estes casos, disse ele, dever-se-á utilizar alguns artifícios técnicos usados comumente na análise de crianças que têm se mostrado de grande utilidade.

Transcrevo-me, novamente:

Numa revisão histórica da técnica psicanalítica e das modificações introduzidas com a finalidade de tratar pacientes antes considerados inanalisáveis, onde a ambivalência com Freud transparece de forma quase caricatural, Ferenczi dirá que "certos fatos da experiência psicanalítica vieram agruparse em torno de ideias que me levaram a atenuar consideravelmente a oposição tão viva até o presente entre a análise de crianças e a análise de adultos" (p. 70). Referindo-se elogiosamente ao trabalho pioneiro de Hugh Hellmut, que havia proposto a análise de crianças a partir do brinquedo infantil, e ao de Anna Freud, que sistematizara os procedimentos técnicos para o tratamento de crianças, Ferenczi revela estar surpreso com o fato de, embora não tendo muita experiência com crianças em psicanálise, haver-se defrontado por outra via com os problemas relativos à análise infantil. Sua profunda fé na psicanálise, e na terapêutica psicanalítica, conduziu-o – como também a Winnicott – a "considerar os eventuais fracassos menos como consequência de uma 'incurabilidade' do que da nossa própria inépcia, hipótese que me levou necessariamente a modificar a técnica nos casos difíceis em que era impossível obter êxito com a técnica habitual" (p. 71). Desconfiando que o fracasso se devia menos à resistência do paciente do que à dificuldade do analista em adaptar seu método às particularidades daquela pessoa, Ferenczi diz ter decidido, em "casos difíceis", substituir o método da associação livre, que considerava uma seleção demasiado consciente de pensamentos, por um relaxamento profundo que permitia a emergência de emoções, impressões e movimentos relacionados a experiências bem mais primitivas do que as que a fala poderia eventualmente alcançar. Conforme sua proposição técnica, em vez de interpretar pontualmente a transferência indicando o personagem familiar posto em questão, deixava-se "levar para um jogo que poderíamos chamar de perguntas e respostas, inteiramente análogo aos processos que nos descrevem os analistas de crianças", o jogo, porém, só poderia desenvolver-se sob certas condições, pois segundo adverte Ferenczi, "não creiam que nesse jogo me seja possível fazer qualquer pergunta. Se esta não for bastante simples, se não estiver verdadeiramente adaptada à inteligência de uma criança, então o diálogo é interrompido rapidamente, e mais de um paciente me jogou na cara que eu tinha sido desastrado, que tinha, por assim dizer, estragado o jogo" (p. 72).

Reencontramos assim, desta vez em Ferenczi, a utilização clínica do que propusemos denominar de "diálogo transicional". O exemplo que ele nos fornece pode ser comparado aos extratos clínicos de Winnicott onde esta modalidade de comunicação encontra-se fartamente ilustrada. Um homem "na plenitude da vida" que identificava frequentemente Ferenczi com seu avô, após um período de resistência onde predominavam os temores paranoides na transferência, consegue regredir e reviver experiências primitivas da sua infância: "De repente, a meio de seu relato, passa-me um braço em redor do pescoço e murmura-me ao ouvido: 'Sabe vovô, receio que vou ter um bebê… ' Tive então a feliz ideia, parece-me, de nada dizer de imediato sobre a transferência ou alguma coisa do gênero, mas de lhe devolver a pergunta no mesmo tom sussurrado: 'Ah, sim, por que é que você pensa isso?' (p. 72). Esta forma de intervenção clínica assemelha-se à do exemplo apresentado por Winnicott em seu trabalho "Sobre os elementos masculinos e femininos dissociados encontrados em homens e mulheres", de 1966. Trata-se, ali, de um homem "de meia-idade, casado, com família" e bem-sucedido profissionalmente que, após longos anos de análise, sente que algo em seu íntimo ainda não foi atingido. Em determinada sessão, Winnicott havia tido a impressão de que o paciente falava da sua inveja do pênis, e lhe dissera que estava escutando uma garota falar, embora ele fosse um homem: "Após uma pausa, o paciente disse: 'Se eu fosse falar a alguém a respeito dessa garota, seria chamado de louco'. A questão poderia ter sido deixada por aí, mas estou satisfeito, em vista dos acontecimentos subsequentes, de ter ido mais adiante. Foi minha observação seguinte que me surpreendeu e fechou a questão. Eu disse: 'Não é que você tenha contado isto a alguém; sou eu que vejo uma garota e a escuto falar quando, na realidade, há um homem em meu divã. O louco sou eu'" (p. 170-71).

O diálogo transicional está, sobretudo, interessado em situar e manter a comunicação dentro da órbita de "onipotência do indivíduo", conforme a expressão de Winnicott, e assume um cuidado particular com o narcisismo do paciente, confiando que "as interpretações alterativas são aquelas que podem ser feitas em termos de projeção" (p. 93).

Veja-se que tal redescrição teórica, clinicamente exemplificada da interpretação psicanalítica, implicará fazê-la bascular entre o jeu de mot lacaniano e o squiggle game winnicottiano, onde a indicação lúdica ou verbal é antes de tudo um acontecimento, um événement, a surpreendente irrupção do novo na relação, o que ressoa na afirmação de Nasio de que quando a interpretação ocorre o analista não sabe bem o que diz, embora saiba o que está fazendo.

É neste ponto que o referido por Lacan (1953-1954/1975) como "presença do analista", aparece como condição de possibilidade de efetuação da experiência da análise. A apercepção por parte do analisando da presença do analista, indica a abertura da transferência tanto quanto sinaliza a resistência à verdade que ameaça irromper. Com o "Dei-me conta da sua presença!", o analisando vetoriza o Outro, esse Outro que lhe escapa constantemente e que ele busca incessantemente situar; o esquivo, o estranho, que é no entanto a única garantia que possui da justeza e eficácia da experiência em que cada vez mais submergirá.

O ato/dito analítico se situará exatamente nesse lapso da oscilação entre o estranho e o familiar, em que o analisando pretenderá sempre falar a outrem que lhe responderá sempre de um outro lugar, mas que no próprio ato de evadir-se do lugar onde o paciente esforça-se por fixá-lo – sem, no entanto, invalidar jamais o seu dito e sem atribuir nunca um sentido antecipado ao que ele diz – engendrará uma ética que o situará como testemunha privilegiada do acontecimento. Sob esta égide ele será o credor da verdade a que eventualmente o analisando acederá, e o testemunho da sua presença será justamente o que dará à experiência da análise, ao vivido sob ação da transferência, o estatuto da certeza e da convicção vivencial.

Em um próximo artigo, segunda parte da reflexão crítica aqui proposta sobre a contemporaneidade da intervenção psicanalítica, a proposição teorética acima introduzida estará fartamente apoiada em relatos clínicos escolhidos que possibilitarão ao leitor uma apreciação vívida da pragmática que se depreende desta tentativa de desconstrução.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Roberto Barberena Graña
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA]
Rua Prof. Annes Dias, 154/1201 – Centro
90020-090 Porto Alegre, RS
e-mail: rbgranha@cpovo.net

 

[Recebido em 18.5.2010, aceito em 4.6.2010]

 

 

1 Psicanalista. Membro titular da IPA e membro convidado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA. Doutor em Letras pela UFRGS, professor e supervisor do Instituto Contemporâneo de Psicanálise e Transdisciplinaridade (Porto Alegre).
2 Idéia inspirada na tese sustentada por Roland Barthes em Le degré zéro de l’écriture (1953).
3 Tradução incorreta para playing, que significa brincar.
4 Se o sujeito, como propõe Lacan, constitui-se numa linha de ficção, é obviamente a partir de uma produção imanente que ele espetaculizará transferencialmente a sua dramática individual.