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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS TEMÁTICOS - VARIAÇÕES E FUNDAMENTOS

 

Para além do som e da fúria

 

Para alem del ruido y la furia

 

Beyond sound and fury

 

 

Aida Ungier1, Rio de Janeiro

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

A autora questiona a clínica contemporânea, assinalando que nossos impasses se agravam, à medida que pretendemos usar o modelo teórico do recalque numa clínica cujos pacientes oferecem uma precária capacidade de simbolização. As mudanças clínicas acompanham as mudanças sociais, sendo necessário conhecê-las para poder contemplar o sofrimento que provocam. Propõe um cotejamento entre o modelo freudiano do recalcamento e o modelo winnicottiano da transicionalidade, problematizando o conceito de sublimação.

Palavras-chave: clínica contemporânea; recalque; transicionalidade; sublimação


RESUMEN

El autor cuestiona la clínica contemporánea señalando que los impasses son agravados si utilizamos el modelo teórico de la represión en una clínica en que los pacientes ofrecen una precaria capacidad de simbolización. Las mudanzas clínicas siguen las mudanzas sociales, siendo importante conocerlas para poder contemplar el sufrimiento que promoven. Propone confrontar el modelo freudiano de la represión con el modelo winnicottiano de la transicionalidad, problematizando el concepto de sublimación.

Palabras clave: clínica contemporánea; represión; transicionalidad; sublimación


ABSTRACT

The author questions contemporary clinics, underlining that our impasses are aggravated as we continue to use the theoretical model of repression in a clinic whose patients show a precarious capacity of symbolization. Clinical changes follow social changes, so that it is necessary to know them in order to contemplate the suffering they cause. She proposes a comparison between Freud's model of repression and Winnicott's model of transitionality, discussing the concept of sublimation.

Keywords: contemporary clinics; repression; transitionality; sublimation


 

 

A cada um, diríamos, sua Holanda. A metáfora preferida de Freud é o dique holandês edificado para conter o avanço do mar e a inundação iminente; a de Winnicott é o moinho de água ou vento, que aproveita a força da natureza para realização de trabalhos úteis.
J. F. Costa in Playdoier pelos irmãos

 

1. Introdução

Freud, empenhado em desvendar o enigma das histéricas, descreveu algo que nos habita, sobre o qual não temos nenhum domínio, responsável por toda criação humana, incluindo-se aí o desatino do sintoma. Nosso "mil-avô", ao equilibrar-se sobre dois pés, substituiu o olhar pelo olfato na busca do objeto de perpetuação da espécie, de sorte que, o que fora excitante tornou-se belo. Mais ainda, a posição ereta, provocando uma distensão da laringe, permitiu a emissão de uma miríade de sons diferentes, capacitando-nos a nomear o mundo. A palavra nos desnaturou. Trocamos o instinto, com seu ciclo previsível, pela imprevisibilidade da força constante que nos acossa exigindo satisfação: o gozo sexual, absolutamente singular, basculando desde sofrer ou fazer sofrer, até sonhar, escrever um poema ou criar um chiste. Paralelamente à entrada no simbólico, a horda organizou-se em grupo, parindo a civilização e seu mal-estar: o desamparo diante da natureza, da alteridade e da morte. A longa dependência do outro, assegurando a sobrevivência nos primeiros anos, determinou que o eu se instaurasse por identificação com o meio, e sabemos do abismo que nos separa da sociedade vienense do princípio do século XX.

Ao longo da aventura psicanalítica os impasses na clínica sempre nos desafiaram, seja na condução das análises seja na descrição coerente da economia psíquica, estimulando- nos a avançar na teoria para contemplar novos ou antigos sofrimentos. Segundo Costa (2000): "dizer isso é pedir que nos distanciemos, de modo crítico, de nossa própria forma de vida. Entender a dinâmica inconsciente dos analisandos é, em grande medida, entender como estamos funcionando mentalmente em um dado contexto cultural" (p. 8). Na verdade, o século XX durou muito tempo. Atravessamos duas guerras mundiais, a revolução russa, a ascensão do capitalismo até a sociedade de hiperconsumo, o desenvolvimento tecnológico, especialmente nos meios de comunicação, abolindo as distâncias e achatando o tempo. Freud nos ofertou a bússola para a clínica da neurose, mas vivemos assombrados pelos casos-limite ou pela psicose. Nesse terreno não existe um norte, precisamos engendrá- lo com cada paciente, apoiados em nossa análise pessoal e na experiência dos que nos precederam ou nos acompanham. Apesar do som e da fúria, ser parceiro do paciente na reinvenção de sua história… é preciso. Aí, mais uma vez Freud nos traz fôlego, ao lembrar que só os crentes exigem que a ciência substitua o catecismo e não apostam nos investigadores que desenvolvem ou transformam suas concepções.

 

2. Aventurar-se para não se tornar aventureiro

Logo de início, esbarramos em uma contradição: o sujeito da clínica psicanalítica é o sujeito da cultura e apesar das mudanças ciclópicas que vivemos, a função paterna e o falo continuam se mantendo como organizadores não só da teoria, como da própria direção da cura, desde Freud. É sempre bom lembrar que Lacan (1938/1993) sublinhou, no final da década de 1930, que a civilização ocidental, da forma como a conhecemos, estaria ameaçada pelo declínio da função paterna, desde a morte do rei, durante a Revolução Francesa, e que a obra freudiana teria sido uma tentativa de devolver ao pai o lugar perdido. No entanto, Lacan seguiu o mestre em suas formulações sobre a constituição da lei e da subjetividade, apesar das inovações na teoria e na clínica psicanalítica que introduziu.

Como a obra de Freud gira em torno do interdito, nosso mal-estar seria consequente à necessidade de abrir mão da natureza para haver civilização. Dar conta dos excessos da civilização viria pelo método de tornar consciente o inconsciente: liberar um tanto de natureza constrangida. A psicanálise surgiu a partir de uma atividade terapêutica, uma práxis cuja pedra de toque é o recalque. Aqueles cuja posição frente à castração não passa por essa vicissitude, estariam excluídos de seus benefícios. Aqui se perfilam justamente aqueles que mais frequentemente, hoje, demandam a nossa atenção. Trata-se de uma clínica que está além da função paterna e do princípio do prazer como reguladores da subjetividade, onde o supereu se desgarra das fileiras do simbólico, revelando sua face cruel de supereu do gozo, impondo o mandamento: goza!

Somos confrontados com um rosário de sintomatologias bizarras, atreladas mais ao ato do que à palavra, comprometendo-nos com uma revisão da direção da cura. O discurso vazio e obsessivizado de tais pacientes evidencia a futilidade de suas vidas. Todavia, em inúmeros casos apenas o sintoma ancora um esboço de subjetividade. Os "adictos" ou os "deprimidos" recebem esse codinome como se fosse um nome de família, pois suas dores da alma acabam resistindo ao poder dos psicotrópicos, mesmo quando usados sob a forma de "coquetéis". Observamos, ainda, o crescimento acelerado dos quadros de somatização. Não se trata mais da complacência somática frente à insistência da pulsão e das regras sociais, promovendo, através do sintoma, um sentido metafórico para o conflito psíquico. Os grandes somatizadores nos fazem contemplar um gozo enigmático: há um corpo, é nele que se imanta o circuito pulsional, e esse circuito que começa e se encerra no próprio corpo promove um gozo mortal, no qual objeto e objetivo estão colabados. Carece, portanto, desenvolver uma ferramenta capaz de alcançar pacientes cuja pobreza do imaginário inviabiliza o deslizamento significante que promove a retificação subjetiva esperada.

Ora, onde a capacidade de simbolizar vacila, fato evidente em nossos dias, há forte indicação de que o modelo teórico do recalque pode não estar dando conta de contemplar esses sofrimentos. Apoiado nesse modelo, Freud inventou o dispositivo teórico e técnico da psicanálise. Todavia, o "recalcado" dos somatizantes, adictos, distímicos, antissociais etc., pouco tem a ver com o recalcado das histéricas tratadas no início do século passado. Segundo Costa (2000), nosso saber contempla o sujeito do dia a dia, "as imagens teóricas é que são passageiras, provisórias, criadas exclusivamente com vistas à operacionalidade da práticas psicanalíticas" (p. 10).

No mesmo texto, ele sublinha que a aposta freudiana na instância paterna e no recalque como base da constituição da subjetividade, foi problematizada nas décadas de 1930- 1940 pela Escola de Frankfurt. Esta supõe que a revolução capitalista tenha criado uma democracia econômica de massas, sem lugar para o poder do pai, passando a gerenciar, de forma direta, o sujeito e seus desejos de modo a adequá-los às suas finalidades econômicas e políticas. Desde então, seguiu-se o coro de vozes contra a decadência da função paterna. Essa ausência teria sido substituída pelo gozo superegoico do Outro anônimo, cujo protótipo é a sociedade de consumo. Nossos corpos se tornaram persecutoriamente vigiados e nossos bens narcisicamente exibidos como marcas de sucesso ou ascensão social. Ele se questiona: se retirarmos tudo isso o pai volta? Qual o objetivo dessa restauração, se é que a desejamos?

Provavelmente, essas questões podem ser melhor abordadas se a psicanálise for arejada por outros saberes. Tal aproximação vem sendo feita, por exemplo, pela pesquisa desenvolvida por Mendonça Estarque (2008; no prelo) que procura chamar atenção para as ligações de retroalimentação entre o texto de Winnicott e de alguns filósofos contemporâneos, em especial, Axel Honnerth, discípulo e sucessor de Habermas na direção do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. Esse autor promove um diálogo entre a filosofia e a psicanálise apoiado na teoria hegeliana da "luta pelo reconhecimento", segundo a qual a formação prática da identidade humana pressupõe a experiência do reconhecimento intersubjetivo.

A reprodução da vida social se efetua sob o imperativo de um reconhecimento recíproco porque os sujeitos só podem chegar a uma autorrelação prática quando aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus destinatários sociais. O processo de individuação está ligado ao pressuposto de reconhecimento mútuo. (Honnerth, 2003, p. 155-156)

Ele afirma, ainda, que esse discurso foi acolhido pela psicanálise por meio da formulação hegeliana de que o amor tem que ser concebido como um "ser-si-mesmo-em um outro". Sendo assim, a ligação afetiva com o outro passou a ser investigada, pela psicanálise, como um processo cujo êxito depende da preservação recíproca de uma tensão entre autoabandono simbiótico e autoafirmação individual, uma relação interativa na qual subjaz um padrão particular de reconhecimento recíproco.

Para Honnerth (2003), esse enfoque se desenvolveu em virtude da incompetência da ação terapêutica da psicanálise em contemplar os pacientes cujo sofrimento não podia ser atribuído ao conflito entre as pulsões e o interdito, e sim às atribulações nos relacionamentos precoces que levaram a criança a não se reconhecer como um sujeito autônomo. Para ele, tais ideias encontraram afirmação no caminho trilhado pelo psicanalista inglês Winnicott. Ao escrever seus trabalhos da perspectiva de um pediatra com postura psicanalítica, ele procurou obter, a partir do tratamento de pacientes com distúrbios comportamentais, esclarecimentos acerca das condições "suficientemente boas" da socialização das crianças, desde a dependência absoluta da mãe-ambiente até a afirmação de sua independência. Honnerth valoriza, ainda, a importância do conceito de transicionalidade, reconhecendo que através do relacionamento lúdico com os objetos afetivamente investidos, a criança tenta lançar pontes simbólicas sobre o abismo, dolorosamente vivenciado, entre a realidade interna e a realidade externa.

A comunhão entre o sujeito e o meio está no cerne da pesquisa de Mendonça Estarque (2008), ao defender a ideia de uma ética agonística para o laço social, contrapondo o pensamento de Freud e seu principal leitor, Lacan, ao de Winnicott. A concepção sociológica de Freud para o laço social se funda na ideia do interdito, que barra a disposição destrutiva inata do homem contra seu semelhante. Por outro lado, em Winnicott, a agressividade é pensada como atividade, só se tornando destrutividade quando não acolhida, em virtude das falhas ambientais durante os primeiros meses de vida do bebê.

Winnicott (1969/1975) parte da premissa da não existência de um ego integrado desde o início, consequentemente, do não reconhecimento do id, pois, para ele, é preciso haver um ego para que as exigências do id sejam reconhecidas como tal e integradas ao self. Sendo assim, para que tudo corra bem no desenvolvimento precoce do ser humano, é imprescindível a presença de uma mãe/ambiente de tal sorte adaptada às necessidades do bebê, que ele experimente a ilusão de que criou o objeto/mãe onde o encontrou. A precariedade do acolhimento deixa o bebê à mercê de angústias impensáveis, devido a ausência de recursos psíquicos que dêem sentido às demandas do corpo e do mundo. Winnicott descreve, então, um longo e complexo percurso a ser ultrapassado pelo bebê, desde essa unidade ideal até o reconhecimento de uma relativa autonomia, quando o infans pode sentir- se – "Eu sou" – experimentando a reconfortante sensação de habitar o próprio corpo.

Para ele, a emergência desse segundo parto, o nascimento do ego e do objeto, depende do uso do objeto pelo bebê. Usar o objeto não é uma capacidade inata e a qualidade do ambiente influencia no seu desenvolvimento. Entre o relacionamento e o uso existe a colocação do objeto fora da área de controle onipotente do sujeito. Isto é, a percepção do objeto como fenômeno externo, não como entidade projetiva. A mudança do relacionamento para o uso significa que o sujeito destrói o objeto, todavia, se este sobrevive à destruição fantasiada, escapa da área do controle onipotente, desenvolvendo sua própria autonomia. Trata-se de um paradoxo: devido à destruição fantasiada e à sobrevivência real do objeto catexizado, discrimina-se a realidade externa e a realidade interna e o sujeito pode começar a viver uma vida no mundo dos objetos. Por outro lado, caso o objeto não sobreviva, ou seja, modifique sua qualidade no acolhimento, o bebê, imaginando-se responsável por essa destruição, não terá outra saída a não ser ocultar seu amor cruel, deixando-o vir à tona apenas em um estado de dissociação.

Para Winnicott (1950-1955/1978), a agressividade é sinônimo de atividade, motilidade. A agressão faz parte da expressão primitiva do amor. Inicialmente o bebê, por sua excitação, não distingue o objeto destruído do objeto valorizado nos intervalos tranquilos. Seu amor excitado inclui ataques ao corpo da mãe. É preciso que o meio não se precipite, exigindo que o bebê se preocupe com o resultado de sua experiência pulsional, física e ideacional, antes que seu ego esteja suficientemente integrado. A motilidade permite a descoberta do mundo, viabilizando a fusão entre os componentes agressivos e eróticos, daí o valor de sua aceitação.

Logo, no lugar do interdito, Winnicott propõe a capacidade do ambiente de suportar as explorações do infans, no processo de discriminação entre eu e não eu. No lugar do ascetismo da renúncia pulsional, a flexibilidade do ambiente em se adaptar às necessidades da criança. Portanto, em Winnicott, a concepção do laço social não se funda na lei, pois não parte do desejo de transgressão como pressuposto. Ao contrário, é a lei que funda o desejo como desejo de transgressão, posto que a responsabilidade interpretativa encontra-se do lado do ambiente. Winnicott não descarta o mal radical em Freud, apenas não o enfatiza ao dar outro enfoque à questão da agressividade (Mendonça Estarque, no prelo).

Enfim, apoiada em Derrida, especialmente, no texto Força de lei, Mendonça Estarque (2008) considera o sentimento de orfandade um fator estruturante do inconsciente, de sorte que, para nos comportarmos de forma moral é necessário proceder como se Deus não existisse ou já não estivesse mais interessado em nossa salvação. Essa postura promoveria uma religação entre os pares, o desenvolvimento de uma consciência de interdependência, a despeito de qualquer transcendência que reclame um estatuto ontológico ou hierárquico.

Analogamente, Costa (2000) acredita que a nostalgia da função paterna, vivida pela teoria psicanalítica, reside em nossa incapacidade de encontrar noções que nos permitam lidar, de forma satisfatória, com os órfãos da família patriarcal freudiana. Pai, na atualidade, seria apenas uma alegoria congelada do pai do nosso pai ou o pai da tradição judaicocristã ocidental. Todavia, pensar em "pares" no lugar de "pai" seria um convite de retorno à horda? Ele problematiza a questão demonstrando que nos habituamos a associar o pai à lei, como se todas as manifestações psíquicas, conscientes e inconscientes, fossem variações em torno do tema da interdição, caso das neuroses clássicas, considerando discutível reduzir toda a clínica a esse tipo de mecanismo ou de explicação. Recorre, então, a Winnicott, pois para este existe o pai, porém, antes dele, a mãe suficientemente boa. Em termos de teoria e técnica psicanalítica, não está se trocando o pai pela mãe, porém, deslocando o suporte da interdição e não o interdito. Sendo assim, diante do gozo excessivo, traumático ou mortal, propõe-se, através do encontro psicanalítico, a redescrição da vida pulsional. Ele completa: a cada um sua Holanda, Freud fica com os diques e Winnicott com os moinhos de água ou de vento que aproveitam a força da natureza para a realização de trabalhos úteis.

 

3. Cada caso é um caso: o dispositivo transicional

Winnicott pertence a uma linhagem na psicanálise iniciada com Ferenczi que, considerado a face clínica da moeda psicanalítica, tendo Freud como a face teórica, deixou uma herança pujante. Minha intenção não é uma exegese dessa herança, todavia, ater-me a um autor sensível e criativo que jamais abriu mão de sustentar teoricamente as inovações que introduzia. Acompanhando Costa, vou apostar na Holanda winnicottiana.

Ainda que todos os teóricos, desde Freud, tenham valorizado a importância do ambiente na estruturação do sujeito, Winnicott afirmou que, no início, bebê e ambiente formam uma unidade, o que significa muito mais do que uma simples influência. Nosso self começa a se constituir a partir de nossa experiência com o mundo, antes mesmo que saibamos que exista "um mundo". Se ela for suficientemente boa, tudo aquilo que surgir dessa interação será criativo, dando lugar a um self integrado e genuíno. Por outro lado, se ela for precária, as consequências podem ser catastróficas, desde a psicose até a organização de uma defesa sofisticada, o falso self, onde a criatividade cede lugar à reatividade (Winnicott, 1960/1982).

Winnicott não se ocupou especialmente da realidade interna e da realidade externa, porém, do "espaço trans"; nem fora, nem dentro; nem eu e nem não eu. Na unidade mãe-bebê, a mãe se oferece como continente para as impensáveis demandas internas e as insuperáveis perturbações externas que afetam o bebê. A partir dessa unidade vai se configurando o playground, o terceiro espaço, onde cada um de nós, em lugar de ser cópia pode ficar diferente; ser a um só tempo "si mesmo" e um perpétuo "tornar-se" (Winnicott, 1958/1975a).

Para Winnicott, o fazer psicanalítico é, justamente, evitar as experiências esquematizadas: ao ser afetado, carece acolher o que nos afeta e, a partir do assombro, engendrar o fio que tece o verbo. Psicanalisar é brincar e brincar é criar. Graças a essa delicada artesania, a psicanálise, como corpo teórico, ganha vida e a sensação se torna criação. É em virtude da potência de um pensamento que propõe o permanente reengendramento do mundo e do sujeito que Deleuze, em sua crítica à psicanálise, frequenta o texto de Winnicott com enorme respeito. Ao lado de Guattari, ele afirma que a psicanálise se deixou assimilar pela máquina social, apesar de sua proposta revolucionária. A cena edípica teria territorializado o fluxo pulsional, deixando em segundo plano a questão da diferença e das intensidades, aquilo que eles denominaram multiplicidade. Em O anti-Édipo (Deleuze & Guatari, 1995) eles propõem que o inconsciente funciona como uma usina e não como um teatro; trata-se de produção e não de representação.

Ao mesmo tempo, Deleuze (1984) afirma que Winnicott se encontra no limite da psicanálise, em virtude da forma como a pratica. Segundo ele, "Winnicott pressente que há um momento em que não é mais preciso traduzir, nem interpretar, traduzir em fantasmas, interpretar em significantes ou em significados, não se trata disso. Há um momento em que será preciso compartilhar, é necessário entrar no sofrimento com o doente, é preciso compartilhar de seu estado" (p. 12). O que significa estar no limite da psicanálise? Essa afirmação não é ingênua. O conceito de transicionalidade não cabe dentro do paradigma da psicanálise? O paradigma da psicanálise aponta para um sujeito cindido, uma estrutura tripartida – ego, id e superego –, em que um ego é agente dessa engrenagem, ainda que seu agir seja assujeitado por um mais além. Diferentemente, Winnicott pensa um terceiro espaço, onde o mundo interno e o mundo externo se tornam íntimos; um ego com função integradora do self, self este que se encontra em permanente transformação: going on being, ou seja, "tornando-se". A criatividade só é possível graças à postulação desse espaço potencial, promotor do permanente devir. Se tomamos o encontro analista/analisando como o espaço potencial, espaço que engendra o simbólico e, por extensão, a cultura, estamos apostando na possibilidade da permanente criação de uma nova história, apesar do som e da fúria. Aqui a imagem metafórica dos moinhos de vento, citada na epígrafe, cai como uma luva.

Essas conjecturas evidenciam que a clínica contemporânea exige cada vez mais comprometimento do psicanalista no processo de análise. Não só sua formação teórica, suas análises e supervisões, mas também a humildade de reconhecer que, eventualmente, a reação terapêutica negativa de um paciente pode derivar de seus pontos cegos, de sorte que faz-se necessário que ele retome sua análise pessoal. Ogden, um leitor privilegiado da obra winnicottiana, dono, também, de uma produção seminal, vai mais longe ao afirmar que:

o analista precisa estar preparado para destruir e ser destruído pela alteridade da subjetividade do analisando, e para vir a escutar um som que emerge dessa colisão de subjetividades, que é familiar, embora seja diferente de qualquer coisa escutada antes… A destruição não deve ser completa, pois, nesse caso, o par cairia no abismo da psicose ou do autismo. Pelo contrário, o analista deve escutar o ruído da destruição desde sua borda, mesmo não tendo certeza da localização dessa borda. (1996, p. 3)

Ele vai mais adiante, afirmando que o processo analítico cria o analista e o analisando. Trata-se de um processo no qual o analisando não é simplesmente o sujeito "da" investigação analítica; deve ser, também, o sujeito "nessa" investigação, ou seja, deve criar essa investigação, pois sua autorreflexão é fundamental para o trabalho da psicanálise. Analogamente, o analista não pode ser apenas o observador, à medida que sua experiência subjetiva, nesse esforço, é o único caminho possível para adquirir conhecimento sobre a relação que ele está tentando entender. Analista e analisando, na qualidade de sujeitos da análise, criam um "terceiro analítico" (Ogden, 1966, p. 4). É a natureza deste terceiro termo que define a singularidade da experiência psicanalítica em relação a todos os outros acontecimentos intersubjetivos humanos. Embora analista e analisando nasçam na criação do terceiro analítico, não mantêm uma relação simétrica, sendo assim, a transferência e a contratransferência refletem uma a outra, mas não são imagens especulares uma da outra. Para Ogden, o analista não vivencia o passado do analisando, ele vivencia sua própria criação do passado do analisando gerada na sua vivência do terceiro analítico. Simultaneamente, o analisando vivencia seu próprio passado vivo como criado, pela primeira vez, intersubjetivamente, no terceiro analítico, promovendo uma recontextualização fundamental de suas experiências, até então clivadas, impossíveis de integrar e de utilizar.

Concluindo, gostaria de abordar uma questão que me inquieta, especialmente: Winnicott trata da criatividade ao longo de toda a sua obra, porém raramente usa o conceito de sublimação. É certo que a sublimação, sendo um destino pulsional, é um fenômeno intrapsíquico e Winnicott está às voltas com o espaço trans, o entre, logo, não caberia falar no pulsional. É possível admitir, então, que o simbolizar/brincar é impedido ou prejudicado frente à erotização/agressão, porque o aparelho psíquico não foi capaz de dar conta do excesso pulsional que o acossou? Seria a impossibilidade de sublimar que transtornaria o brincar? Esse desenlace seria fruto da inexistência ou insuficiência do espaço transicional? Haveria uma complementaridade? Ou seja, para que o aparelho psíquico possa metabolizar a energia que o instiga é preciso que exista um espaço onde a pulsão, contornando o recalque, possa ser transformada, volatilizada em palavra: a força metabolizada diretamente numa obra, evidenciando o espaço onde eternamente se criarão os símbolos. A palavra limita e sustenta o excesso, experimentado como angústia ou como sintoma. É nesse limite que se engendra o ato psicanalítico, a terceira margem do rio.

Winnicott lembra que tomamos equivocadamente o conceito de saúde como ausência de doença. Viver é muito mais do que isso, viver é a grande arte, é ser arteiro, sendo a psicanálise o espaço potencial, capaz de oferecer uma oportunidade sui-generis para o sujeito descobrir seu estilo singular de viver. Analogamente, em seu último ensino, Lacan (1975-1976/2007) nomeia o sujeito, ser falante, propondo que este seja identificado ao seu sinthoma. Aproximando-se da definição freudiana de caráter, define o sinthoma como a forma de subjetivação possível para o ser falante frente ao encontro inevitável e traumático entre simbólico e real. Sendo assim, na carência dos ideais, torna-se imperioso que o paciente/ser falante encontre na experiência analítica recursos que lhe propiciem a criação de novas formas de satisfação que, ao mesmo tempo, engendrem ou conservem os laços sociais.

Penso que, neste caso, o conceito de sublimação merece ser frequentado. Aqui, a pulsão evita o recalque, contorna o vazio deixado pela Coisa (Lacan, 1959-1960/1991), gestando nesse percurso algo que não se propõe a substituí-la, porém, serve de semblante a velar uma falta inelutável. Inventa-se uma habilidade singular de se haver com a falta no Outro. Inventa-se um estilo de viver em que se está comprometido com as consequências dessa invenção. Sujeito e objeto criam-se ao mesmo tempo, como afirma Freud no ensaio sobre Leonardo da Vinci: a obra é o autor. O valor de nosso esforço reside em buscar na articulação entre a teoria e a clínica, o savoir-faire exigido pela práxis da psicanálise desde sua invenção. O desafio está em aceitar, ainda que relutantemente, que "ninguém explica… tudo".

 

Referências

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Endereço para correspondência

Aida Maria Moraes Ungier
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
Av. Henrique Dodsworth, 180/602 – Lagoa
22067-030 Rio de Janeiro, RJ
e-mail: aidaungier@globo.com

 

[Recebido em 11.5.2010, aceito em 4.6.2010]

 

 

1 Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ. Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da UFRJ.