SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 issue2What is at stake in psychoanalytical work? The contributions of André Green to the metapsychology of analytical situationO tempo da clínica: dimensão investigativa e terapêutica author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Paradoxo e racionalidade no homem winnicottiano: a sombra de Heráclito de Éfeso1

 

Paradoja y racionalidad en el hombre concebido por Winnicott: la sombra de Heráclito de Éfeso

 

Paradox and rationality in the man conceived by Winnicott: the shadow of Heraclitus of Ephesus

 

 

Alfredo Naffah Neto2, São Paulo

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo postula dois tipos de razão operando no homem saudável, tal qual concebido por Winnicott. O primeiro tipo (que guarda afinidades com aquele característico do pensamento de Heráclito de Éfeso) é a razão paradoxal: psíquica por excelência, dominando sempre que se trata de questões afetivas/sentimentais. A outra razão é a utilitária (que corresponde à lógica formal, tal qual formulada por Aristóteles), mental por excelência, operando sempre que o self tem de lidar com questões de utilidade prática, envolvendo suas relações com o mundo sociocultural. O espaço potencial (situado entre o objeto subjetivo e o objeto objetivo) constitui o instrumento de tradução bidirecional entre as duas razões.

Palavras-chave: razão; psique; mente; Winnicott.


RESUMEN

Este artículo presenta dos tipos de razones que operan en el hombre saludable, tal como es postulado por Winnicott. El primer tipo (que está relacionado con Heráclito de Éfeso) es una razón paradójica, exclusivamente psíquica, y que aparece siempre que se lidia con asuntos afectivos/sentimentales. La otra es una razón utilitaria (que está relacionada a la lógica formal, tal como es formulada por Aristóteles) y es exclusivamente mental, operando siempre que se lidia con asuntos de utilidad práctica, envolviendo relaciones con el mundo socio-cultural. El espacio potencial (situado entre el objeto subjetivo y el objeto objetivo) es el instrumento de traslación bilateral entre las dos razones.

Palabras clave: razón; psique; mente; Winnicott.


ABSTRACT

This article postulates two kinds of rationality operating in the healthy man, such as conceived by Winnicott. The first kind (which is related to the one supported by Heraclitus of Ephesus) is paradoxical rationality: exclusively psychical, dominating whenever one deals with affective/sentimental matters. The other kind of rationality is useful rationality (which is related to formal logic, such as defined by Aristotle) and is exclusively mental, operating whenever one deals with matters of practical utility, concerning relationships with the socio-cultural world. The potential space (situated between the subjective object and the objective object) is the instrument of bi-directional translation between the two rationalities.

Keywords: rationality; psyche; mind; Winnicott.


 

 

O coração tem razões que a própria razão desconhece...
Marino Pinto/Zé da Zilda. Aos pés da cruz.

 

À guisa de introdução

À primeira vista, o título deste artigo pode surpreender. Afinal, por que querer associar Winnicott, psicanalista inglês do século XX – que, apesar de possuir uma grande cultura, nunca prestou grandes tributos à filosofia, tendo sempre desenvolvido a psicanálise dentro dos moldes de uma ciência humana – a Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático do séc. VI a.C.?

Acontece que, tendo sido marginalizadas e banidas pela razão instituída desde o séc. V a.C. – com o advento da filosofia racional de Sócrates e Platão e, posteriormente, de Aristóteles –, as filosofias pré-socráticas permaneceram à sombra de tudo o que se fez desde então no Ocidente, como uma espécie de cultura recalcada. Ora, como psicanalistas, sabemos que o recalcado psíquico sempre retorna, seja disfarçado, seja buscando espaço e abrigo em alguma abertura ocorrida nos códigos vigentes na consciência. Com o recalcado cultural, talvez possamos pensar da mesma forma. E, se assim for, é possível que Winnicott constitua, para a racionalidade heraclitiana, uma abertura desse gênero, nos códigos vigentes da psicanálise contemporânea.3

Neste percurso, estarei trabalhando a partir das hipóteses enumeradas a seguir:

1. opera por meio de dois tipos de razão distintos. O primeiro, que eu chamo de razão paradoxal, é a razão psíquica por excelência, vigente em todas as questões afetivas/sentimentais. Constitui-se na formação do objeto subjetivo e, mais adiante, espraia-se por todo o mundo interno, guardando afinidades com a razão heraclitiana. O segundo tipo, que denomino razão utilitária, opera por meio do pensamento lógico formal e constitui a razão mental propriamente dita, vigorando sempre que o self tem de lidar com questões de utilidade prática, envolvendo os códigos sociais e culturais, sendo de grande utilidade na produção da filosofia, da ciência e da técnica. Ela se constitui na formação do objeto objetivo, domina o espaço da mente e rege o funcionamento do falso self (saudável ou patológico). Esse segundo tipo de razão tem a sua raiz na lógica aristotélica e em todas as formas de racionalidade que se desenvolveram, a partir dela, no mundo ocidental.4

2. No homem saudável, há uma possibilidade de tradução entre as duas razões, nos dois sentidos, ou seja, as solicitações socioculturais podem encontrar correspondência na razão dominante no mundo psíquico e vice-versa. Essas traduções são operadas por meio do espaço potencial, funcionando como uma ponte entre as solicitações do mundo subjetivo e do mundo objetivo e, mais adiante, entre o interior e o exterior. Entretanto, mesmo na saúde psíquica, a possibilidade de tradução entre as duas razões nunca é completa; sobram sempre dimensões intraduzíveis que vão constituir, por exemplo, a dimensão isolada e incomunicável do self ou mesmo certas dissociações entre a psique e a mente, comuns no homem saudável.

Para fundamentar essas ideias, percorrerei algumas formulações de Winnicott, tendo, entretando, de fazer um pequeno desvio para falar da filosofia de Heráclito de Éfeso e da lógica aristotélica, como parte do percurso. Na interpretação do filósofo pré-socrático, utilizo principalmente a leitura de F. Nietzsche.

 

2) Do aforismo heraclitiano ao silogismo aristotélico

Heráclito de Éfeso nasceu no séc. VI a.C., tendo atingido o ápice de sua produção entre 504 e 500 a.C.; considerado por muitos um pensador obscuro, sobraram de sua obra um conjunto de aforismos.5

De forma geral, concebia os entes mundanos como constituídos por tensões opostas e o Logos (= razão) "... seria a unidade nas mudanças e nas tensões, a reger todos os planos da realidade" (Motta Pessanha, 1978, p. XXX). Nietzsche (1978) nos dá uma bela descrição desse movimento tensional:

Constantemente uma qualidade entra em discórdia consigo mesma e separa-se em seus contrários; constantemente esses contrários lutam outra vez um em direção ao outro. O povo julga, por certo, conhecer algo fixo, pronto, permanente; na verdade, há em cada instante luz e escuro, amargo e doce lado a lado e presos um ao outro, como dois contendores, dos quais ora um ora o outro tem a supremacia. O mel, segundo Heráclito é a um tempo amargo e doce, e o próprio mundo é um vaso de mistura que tem de ser continuamente agitado. (p. 104)

Isso significa dizer que, para Heráclito, os entes estão sempre em devir: nunca prontos, fixos, permanentes. Mais do que isso, que os atributos dos entes transformam-se o tempo todo, já que são determinados pelo movimento dessas tensões opostas e da supremacia, sempre provisória, que um dos lados consegue sobre o outro. Assim, para ele, temos que afirmar que o mel é doce e amargo, claro e escuro, líquido e sólido etc., ao mesmo tempo, pois os atributos que o definem dependem da supremacia provisória e momentânea que o doce conseguiu sobre o amargo, o claro sobre o escuro e assim por diante. Por esse motivo, a identidade dos entes é sempre paradoxal, ou seja, comporta sempre e ao mesmo tempo a sua afirmação e a sua negação.

Veja-se, por exemplo, o seguinte aforismo heraclitiano: "Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos" (Heráclito de Éfeso, B – Fragmentos, 1978, p. 84). Podemos desdobrar essa afirmação e referendá-la a partir de alguns argumentos. 1ª afirmação: "Nos mesmos rios entramos"; com relação a ela posso pensar: é verdade, eu possuo em mim a lembrança da última vez que entrei nesse rio, de como eu estava vestido, do caminho que percorri até chegar a ele, do frio das águas em que me banhei; se tiver ainda dúvidas, posso consultar o mapa e ver que é a mesma localização e a mesma geografia que revisito nesse momento. 2ª afirmação: "Nos mesmos rios não entramos"; ela me faz conjeturar: é verdade; embora a minha lembrança me faça recordar do mesmo caminho e das mesmas águas, se prestar um pouco mais de atenção verei que o caminho já não é o mesmo: cresceram novas plantas, flores desabrocharam, a própria trilha mudou de formato; também as águas não são as mesmas: estão mais quentes, talvez devido ao clima ou pela interferência de alguma nova corrente aquática; também mudaram de cor: estão mais esverdeadas. Então, constato que a afirmação de que o rio é o mesmo constitui apenas uma referência mundana para eu me localizar, utilizando os códigos socioculturais vigentes, entre eles, a linguagem comunicativa; num sentido mais profundo, não se trata do mesmo rio. Assim, a afirmação original procede: "Nos mesmos rios entramos e não entramos".

A segunda parte da frase: "... somos e não somos" propõe paradoxo equivalente, envolvendo agora a identidade do sujeito. Também aqui posso afirmar, simultaneamente, que sou e não sou o mesmo nas duas entradas no rio, desdobrando argumentos equivalentes.

Outras constatações importantes relativas ao pensamento de Heráclito: 1) ele está sempre tratando de entes singulares e do lugar que esses entes ocupam no todo, no Logos; 2) o próprio Logos (= razão), não é uma faculdade humana, mas uma espécie de ordem cósmica, podendo o ser humano participar dela em maior ou menor grau; 3) os múltiplos sentidos das palavras – no interior dos aforismos – deslizam uns sobre os outros, produzindo polissemia e isso faz parte integrante de uma descrição fiel à natureza do mundo.

Essa maneira heraclitiana de filosofar, que Gilles Deleuze considera trágica por excelência, foi suplantada, marginalizada, recalcada pelo racionalismo de Sócrates e Platão, no séc. V a.C. e culminou, um século depois, na lógica de Aristóteles.6

Aristóteles começa propondo, de cara, dois princípios básicos que desqualificam, de cara, as afirmações heraclitianas: o princípio da não contradição, que diz basicamente que é impossível que algo seja e não seja ao mesmo tempo; e o princípio do terceiro excluído, que reforça o primeiro, afirmando que uma coisa qualquer ou bem deve ser afirmada ou bem deve ser negada, ou seja, que qualquer terceira opção (como afirmá-la e negá-la ao mesmo tempo) está excluída, por princípio. A propósito desse tema, Nietzsche (1978) nos fala de certo prazer que Heráclito parece sentir em contradizer a lógica racional, a partir de uma verdade adquirida intuitivamente, e complementa, dizendo: "... e isso ele faz, em proposições como: 'Tudo tem, em todo tempo, o oposto em si', com tanta insolência, que Aristóteles o acusa do crime supremo diante do tribunal da razão, de ter pecado contra o princípio de contradição" (p. 101).

Vamos examinar a forma mais simples e conhecida de silogismo e, por meio dela, destacar as transformações operadas por Aristóteles na concepção de racionalidade. Tomo, aqui, um silogismo bastante popularizado; 1ª premissa: todos os homens são mortais; 2ª premissa: Sócrates é homem; conclusão: Sócrates é mortal.

Em primeiro lugar, não estamos mais lidando, aí, com entes singulares, mas com conceitos: o que está em questão é o conceito de homem e o conceito de mortalidade, como atributo do conceito de homem. Em segundo lugar, as conclusões a que chegamos por meio do silogismo são sempre de inclusão (ou exclusão) em categorias: todos os homens estão incluídos na categoria dos mortais e Sócrates não é exceção à regra, já que faz parte da categoria homem. Trata-se de um tipo de conhecimento mais abstrato (já que o conceito constitui uma espécie de invariante abstrato dos diferentes entes singulares) e classificatório (de inclusão em categorias). Por fim, para que o silogismo possa funcionar, é necessário que os conceitos em questão não mudem de sentido no decorrer do processo, ou seja, que todo e qualquer devir semântico seja congelado; para isso Aristóteles propõe um inventário dos múltiplos sentidos das palavras, para que elas sejam utilizadas de forma sempre controlada e disciplinada.

A lógica aristotélica constituiu, ao mesmo tempo, um avanço e um retrocesso perante o Logos heraclitiano. Um avanço, à medida que abriu espaço para o desenvolvimento dos raciocínios dedutivo e indutivo, matriz de todas as formas de racionalidade que vigoraram no mundo ocidental, produzindo as matemáticas, as ciências, a técnica e o controle da natureza com vistas à produção da vida. Um retrocesso, à medida que desqualificou, marginalizou, recalcou uma forma de pensamento complexo, produzido por múltiplas determinações e capaz de traduzir o devir. A partir de Aristóteles, Heráclito passou a ser considerado um pensador irracional, ilógico. Seria, entretanto, retomado e estudado por filósofos do porte de Hegel, Nietzsche e Heidegger, tendo sido especialmente enaltecido pelos dois últimos.

O Oriente – pelo menos antes do processo de globalização – conheceu pensamentos e filosofias aparentadas com a de Heráclito. Por exemplo, a filosofia do Tao – que também concebe todo o mundo como constituído a partir das tensões opostas de Yin e Yang, os elementos feminino e masculino –, e cujos desdobramentos produziram, entre outras coisas, a medicina chinesa das ervas e a acupuntura. O que nos mostra que não é somente por meio do pensamento lógico formal que se pode produzir ciência e técnica. Mas o Tao produziu, além disso (com a ajuda do Confucionismo) o belíssimo I Ching, o livro chinês das mutações, bastante consultado no mundo inteiro para clarificar questões humanas, ainda que colocado pela racionalidade ocidental na estante dos objetos místicos-esotéricos.

 

3) As razões do coração e a razão da mente

"O coração tem razões que a própria razão desconhece", já disse o poeta popular.7 A esse propósito, num outro dia, um paciente – que é extremamente bem dotado intelectualmente, além de ser bastante sensível – tentava traduzir um estado de alma e não encontrava palavras apropriadas. Então, me disse: "Eu poderia falar disso de forma racional e até tentar entender o que me faz sentir assim, mas isso não me serviria para nada". Testemunhava, assim, a partir da sua experiência própria, a diferença radical entre as diferentes razões, as do coração e as da mente.

Os assuntos do coração, dos afetos, são sempre controvertidos e paradoxais: quero/ não quero; amo/não amo; odeio/não odeio. Além disso, estão sempre em devir, transformando- se a todo instante. Impossível traduzi-los na forma de um pensamento lógico formal sem achatá-los, truncá-los, ou, numa só palavra: simplificá-los. A lógica paradoxal comporta sempre múltiplas perspectivas de visão, além da afirmação e da negação do mesmo afeto, simultaneamente. Um pouco como nas pinturas cubistas.

O pensamento lógico formal simplifica tudo isso, congelando o devir e abstraindo os entes singulares, a fim de obter conceitos imutáveis e poder operar por meio deles. Assim sendo, ele só pode se processar numa sequencialidade ordenada, enquanto a lógica paradoxal, com sua polissemia – em que cada sentido remete a vários outros – opera em uma simultaneidade semovente. Resultado: achatamento, simplificação, ordenação. Por esse motivo, denomino essa razão de utilitária, já que toda essa redução obedece a fins pragmáticos de comunicação, de domesticação e domínio da natureza, a fim de promover a subsistência humana.8

A linguagem da razão paradoxal, por excelência, é a poesia, com a polissemia que lhe é característica; a da razão utilitária é o conceito e, num sentido ainda mais refinado, o algoritmo.

Mas, poder-se-ia perguntar: o que tudo isso tem a ver com Winnicott?9

 

4) A constituição do objeto subjetivo e da razão paradoxal

Todos conhecemos o célebre paradoxo proposto por Winnicott na criação do objeto subjetivo, dizendo que o bebê cria o seio que encontra disponível. Essa forma de pensar valeu-lhe críticas como as de Greenberg e Mitchell, que argumentam que os temas centrais da sua teoria são geralmente apresentados na forma de paradoxos evocativos que instigam o leitor. E complementam: "Os argumentos são mais discursivos do que firmemente arrazoados" (Greemberg e Mitchell, citados por Oliveira Dias, 2003). Não há, nessa afirmação, algo que beira uma acusação de irracionalidade?

Pois bem, "criar aquilo que encontra disponível" é uma forma de traduzir um acontecimento extremamente rico e nuançado. O bebê recém-nascido é transpassado por uma urgência instintiva que o impele à busca de algo desconhecido e esse algo surge, como num passe de mágica, para saciar a sua urgência. Se esse objeto se adapta à forma do bebê, ele é vivido como tendo sido magicamente criado pelo próprio movimento que o transpassava. Quanto ao bebê – que, nessa fase, possui uma identidade totalmente dispersa e evanescente –, num primeiro momento, ele é o movimento instintivo que o transpassa; num segundo momento ele é o seio e o leite que engole. Portanto, cabe a afirmação: "o bebê cria o seio que encontra disponível".

Isso define basicamente aquilo que Winnicott descreveu posteriormente como a constituição do female element (que eu prefiro traduzir como elemento fêmea), que tanto homens quanto mulheres possuem.10 Ao elemento fêmea, formado por essa identificação primária com a mãe, Winnicott associa a questão do ser. Se o seio disponível é, ele permite ao bebê também vir a ser, via identificação; se o seio simplesmente age, mas não é, o bebê também não será, ou, no mínimo, terá o seu ser truncado. Entendo que afirmar que "o seio é" pressupõe, aí, uma forma materna de existir autônoma, serena, tranquila, que não depende de nada nem de ninguém que a confirme enquanto tal; portanto, capaz de ultrapassar o próprio narcisismo para se adaptar às necessidades do bebê. Por outro lado, o "seio que não é" indica uma mãe que depende da confirmação de um outro para existir, portanto, que simplesmente age, moldando a sua ação não às necessidades do bebê, mas às urgências de afirmação e confirmação dela própria como ser humano (e, em particular, como mãe).11

Mas essa questão da constituição do objeto subjetivo é ainda mais complexa do que aparenta. Elsa Oliveira Dias (2003) nos diz:

O paradoxo contido na ilusão de onipotência consiste no fato de que aquilo que o bebê criou foi, na verdade, encontrado por ele (do ponto de vista do observador) e já estava lá antes de ele tê-lo criado. Mas, além disso, aquilo que o bebê criou não é exatamente aquilo que a mãe ofereceu, do mesmo modo que jamais encontramos na realidade aquilo que imaginamos. Essa disparidade jamais terá solução. É inerente à natureza humana e, ao longo da vida, teremos sempre de lidar com ela. (p. 173)

Ou seja, se fôssemos dar a essa questão uma formulação fiel à sua natureza, diríamos: O objeto subjetivo é e não é, ao mesmo tempo, o seio real da mãe. Por um lado, ele é o seio real da mãe, já que não existe nenhum outro seio disponível; Winnicott não acredita nem em proto-fantasias, como Freud, nem em phantasias, nessa fase de vida, como Melanie Klein; portanto, o único seio disponível é o da percepção do bebê, especialmente o da percepção tátil e olfativa (forma, calor, cheiro etc.). Por outro lado, o objeto subjetivo não é o seio real da mãe, já que constitui uma criação do bebê, única, singular, não disponível em nenhum outro espaço e tempo que o daqueles encontros, naqueles momentos. E aqui, reencontramos, sem dúvida alguma, Heráclito de Éfeso ou, pelo menos, a sua sombra, na formulação winnicottiana.

Na criança saudável, a razão característica do mundo subjetivo terá sempre esse caráter paradoxal, que descrevi anteriormente, envolvendo simultaneamente múltiplos pontos de vista, afirmações e negações. Podemos dizer que nos primeiros tempos do bebê, embora não haja, para Winnicott, inconsciente recalcado – já que este só será constituído mais adiante, na fase de uso do objeto – todo o psiquismo funciona num nível inconsciente, num sentido descritivo, ou seja, por meio de processos que não chegam à consciência, já que essa última ainda está em formação. É por esse motivo que a razão paradoxal possui um funcionamento que recobre, em grande parte, aquele que Freud descreveu como característico dos processos inconscientes. Nessa direção, com a constituição da sexualidade, essa razão continuará através do processo primário, no qual terá ressaltadas as suas características próprias: ausência do princípio de contradição; devir polissêmico generalizado, presente nos processos de condensação e deslocamento; redes de memória se intercruzando o tempo todo, multiplicando os índices temporais e espaciais. Nessa função específica, a razão paradoxal também será posta a serviço do princípio do prazer, embora, como funcionamento geral do psiquismo, ela o extrapole de ponta a ponta.

Ao mesmo tempo, à medida que o self do bebê começa a se integrar numa unidade psicossomática, uma porção dessa unidade se diferencia enquanto mente. A mente, que inicialmente visa oferecer ao bebê alguma previsibilidade ambiental – capaz de apaziguar, em parte, o desconforto gerado pelas frustrações ambientais –, terá, de cara, de traduzir a temporalidade subjetiva em Cronos e de mensurar o espaço. A ela caberão as funções de comparar e categorizar eventos, armazenar e classificar memórias, fazer uso de tempo e espaço, relacionar causa e efeito e fazer previsões (cf. Winnicott, 1965, p. 7). Sendo aquela que mediará as relações do self com o mundo exterior, a mente e seu funcionamento se articulam ao falso self saudável, ou seja, à porção do self que se relaciona com o mundo sociocultural e que se forma por meio das identificações secundárias.12 Nessa direção, caberá à atividade mental a transformação do princípio do prazer em princípio de realidade. Nos indivíduos saudáveis, seu funcionamento estará sempre articulado à psique, como um todo, por meio do sistema de traduções bilaterais entre as duas razões, conforme já salientei anteriormente.

Mas para que tudo isso aconteça, é preciso que o bebê possa criar a externalidade do mundo e ter acesso ao objeto objetivo.

 

5) O advento do objeto objetivo e da razão utilitária

A fase do uso do objeto foi descrita por Winnicott (1968/1969) já mais no final de sua obra, mas é por meio dela que podemos entender como o bebê cria a externalidade do mundo e tem acesso ao objeto objetivo.

A descrição winnicottiana é, mais ou menos, a seguinte: o bebê, já na fase do sadismo oral, ataca o seio da mãe com voracidade e desejo de destruí-lo e incorporá-lo a si. Se a mãe resiste a esses ataques sem retaliar o bebê – ou seja, sem se misturar à sua dinâmica agressivo-destrutiva – e sobrevive ilesa, ela termina por emergir para o bebê como um objeto independente da sua área de onipotência, à medida que essa dinâmica for se repetindo ao longo do tempo. Assim cria-se o mundo externo, real, discriminado do mundo interno, fantasiado. A partir de então, o bebê pode desfrutar de uma mãe real, o objeto objetivo, ao mesmo tempo em que pode continuar a destruir o seio materno na sua fantasia (objeto subjetivo). É somente a partir desse processo que Winnicott entende que podemos falar de fantasia no psiquismo do bebê e é aí, também, que se inicia a possibilidade de recalcar conteúdos psíquicos, iniciando-se a constituição do inconsciente recalcado e das fantasias inconscientes.

Ora, se formos examinar o tipo de razão por meio da qual podemos descrever esse processo, veremos que ele guarda, igualmente, características paradoxais. Teremos de dizer, de cara, que o seio que o bebê ataca é e não é, ao mesmo tempo, o seio real da mãe. Por um lado, é o seio real da mãe, já que não existe nenhum outro seio presente, seja em fantasia, ou qualquer outra forma; por outro, não é o seio real da mãe, já que para o bebê a dimensão do "real" sequer existe ainda, e o seio que ele ataca é uma criação sua, denominada objeto subjetivo. E, aqui, novamente, reencontramos a sombra de Heráclito de Éfeso.

De qualquer forma, com a discriminação entre um mundo externo e um mundo interno, constitui-se o que Winnicott denominou de elemento macho da personalidade do bebê, que lhe dará condições de fazer, ou seja, de poder perseguir as metas dos seus desejos, na articulação com as condições impostas pelo mundo: princípio de realidade. Para subsidiar esse fazer, o bebê necessitará de vir a dominar simbolicamente o mundo e as suas regras e, para isso, utilizará as funções da mente que, por sua vez, contará, nessa tarefa, com o desenvolvimento da linguagem e do pensamento consciente. Gradualmente, os processos mentais primitivos irão se transformando nessa função de incorporar o mundo e se adaptar às suas regras, até atingir o pensamento lógico formal, dominante na cultura ocidental.13

 

6) O espaço potencial e as traduções bilaterais

Nos indivíduos saudáveis, é o espaço potencial que funciona como ponte entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo, entre as necessidades e desejos e as regras e limites impostos pela realidade. Ele tem as suas primeiras sementes já na época da constituição do objeto subjetivo, quando o bebê, ao longo da amamentação, realiza uma série de experimentações com o seio materno, que já preludiam o brincar.14 Entretanto, ele somente se constitui como terceira zona – como Winnicott muitas vezes o designa –, na época dos fenômenos transicionais – quando a presença da mãe passa a ser gradativamente substituída por objetos que a simbolizam, como uma fralda, um ursinho, ou um balbucio do bebê, imitando a voz materna.

Os assim designados objetos transicionais têm uma capacidade simbólica limitada, dependendo da presença da mãe de quando em quando para manterem a sua eficácia. Mas possuem uma função importante: realizar a transição do mundo subjetivo para o mundo objetivo. Por isso constituem-se em uma terceira zona, nem unicamente subjetiva nem somente objetiva, mas subjetiva e objetiva ao mesmo tempo. E, aqui, encontramos, mais uma vez, a razão paradoxal.

Num indivíduo adulto saudável, quando um estado de alma necessita ser traduzido para o mundo objetivo, há sempre, pelo menos, duas opções: se essa tradução tem um cunho fundamentalmente afetivo – por exemplo, se se trata de uma conquista amorosa – a linguagem mais apropriada será, possivelmente, a poética; mas se essa transmutação tiver, porventura, como objetivo uma descrição científica, esse estado de alma terá de ganhar forma conceitual. Nesse processo, a razão paradoxal – que funciona sempre associada ao mundo interno, subjetivo – e a razão utilitária – que se desdobra preferencialmente sobre os acontecimentos externos – podem se traduzir uma na outra simplesmente, ou formar diferentes combinações, por intermédio do espaço potencial.15 Contribuem para isso a relação entre a consciência e o inconsciente – que, quanto mais porosa é, mais possibilita intercâmbios e trocas – e o poder intelectual da mente, além do desenvolvimento da linguagem, com as suas múltiplas possibilidades – que vão da poesia ao algoritmo matemático –, todas colocadas a serviço desse trabalho criativo.16 Mas, além das produções verbais, outras formas de expressão criativa como: pintar, tocar um instrumento musical, cantar etc. podem dar forma e expressão a esses intercâmbios entre as duas razões.

Há, entretanto, casos em que o espaço potencial não se forma ou se constitui muito precariamente no desenvolvimento do bebê. São as psicoses e patologias de tipo borderline, nas quais forma-se um falso self arcaico e prematuro, com a finalidade de proteger o self verdadeiro do bebê dos traumatismos oriundos de um ambiente insuficientemente bom. Nesses casos, esse falso self passa a ocupar as funções de mediação com o meio ambiente, no lugar do espaço potencial, e cinde-se do restante da personalidade justamente para poder exercer essa função protetora. Advém daí uma grande redução ou mesmo a total impossibilidade de traduções entre as duas razões, que tenderão a permanecer isoladas uma da outra, privando o sujeito de contato ora com o seu mundo subjetivo, ora com o mundo exterior. Mas, evidentemente, não é o objetivo deste ensaio se alongar no detalhamento dessas questões.17

 

Referências

Heráclito de Éfeso (1978). Fragmentos. In Pré-Socráticos (Os Pensadores). São Paulo: Abril.         [ Links ]

Motta Pessanha, J. M. (1978). Os pré-Socráticos: vida e obra. In Pré-Socráticos: os pensadores. (pp. VI-XXXVIII). São Paulo: Abril.         [ Links ]

Naffah Neto, A. (2007). A problemática do falso self em pacientes de tipo borderline. Revista Brasileira de Psicanálise, 41 (4), 77-88.         [ Links ]

Nietzsche, F. (1978). A filosofia na época da tragédia grega (partes 5, 6, 7 e 8). In Crítica Moderna (a Heráclito de Éfeso), Pré-Socráticos (Os Pensadores). São Paulo: Abril.         [ Links ]

Oliveira Dias, E. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Suzuky, S. (1994). Mente zen, mente de principiante. São Paulo: Palas Athena.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1965). The family and individual development. London & New York: Routledge.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1969). On the use of an object and relating through identifications. In D.W. Winnicott, Psycho-analytic explorations. (pp. 218-227). Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press. (Trabalho original publicado em 1968)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1971). The split-off male and female elements to be found in men and women. In Winnicott, D. W., Psycho-analytic explorations. (pp. 169-183) Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press. (Trabalho original publicado em 1966)        [ Links ]

 

Endereço para correspondência

Alfredo Naffah Neto
[Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP]
Cons.: Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 309, cj. 73, Vila Olímpia
04544-000 São Paulo, SP
e-mail: naffahneto@gmail.com

 

[Recebido em 9.3.2010, aceito em 9.4.2010]

 

 

1 A primeira versão deste texto recebeu as leituras críticas dos psicanalistas Luis Cláudio Figueiredo e Ignácio Gerber, a quem agradeço as contribuições.
2 Psicanalista, mestre em filosofia pela USP, doutor em psicologia clínica pela PUC-SP, professor titular da PUC-SP, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, autor de vários livros e artigos sobre psicanálise e música.
3 Dizer que o pensamento de Winnicott talvez possa constituir uma abertura desse tipo não significa, absolutamente, dizer que outros autores psicanalistas também não possam sê-lo; entretanto, eles não serão objeto deste trabalho (sobre esse tema, conferir também a nota 7 deste texto).
4 É importante salientar, aqui, as diferenças postas por Winnicott entre psique e mente. A psique forma-se por meio da elaboração imaginativa das funções corporais, desde o absoluto início; as funções fisiológicas são elaboradas imaginativamente, tornando-se, assim, humanas e passíveis de serem apropriadas pelo self do bebê. E essas experiências que, com o passar do tempo, vão se complexificando – indo da simples elaboração das funções biológicas para o registro da experiência como memória, a formação de fantasias, a construção do mundo interno e a própria formação do inconsciente recalcado –, tenderão a se integrar no conjunto das sensações corpóreas, formando uma unidade psicossomática. A mente designa um funcionamento especializado dessa unidade psicossomática, destinado às funções intelectuais. O funcionamento da mente inicia-se para dar apoio ao bebê diante das frustrações que sofre do meio externo, proporcionando-lhe compreensão e certa previsibilidade ambiental, daí o seu funcionamento se associar à dimensão do falso self saudável, que designa justamente aquela parte do self que se diferencia em contato com o meio exterior. O falso self patológico, comum nos pacientes de tipo borderline, forma-se, na grande maioria das vezes, por uma hipertrofia dessa função intelectual, que passa a funcionar cindida do restante da personalidade.
5 Estes aforismos, na verdade, consistem nos fragmentos da sua obra Sobre a natureza, que se perdeu, as únicas partes que nos sobraram, tais quais aparecem nas citações feitas por outros pensadores importantes que dela tomaram conhecimento.
6 É importante ressaltar que, como esses assuntos são extremamente complexos e escapam aos objetivos deste ensaio, só me estenderei sobre eles o suficiente para demarcar a radical distinção entre a razão paradoxal heraclitiana e a lógica aristotélica.
7 Esses versos são do samba Aos pé da cruz, de Marino Pinto e Zé da Zilda.
8 É evidente que a hegemonia do pensamento lógico formal no mundo ocidental obedeceu a razões utilitárias. Veja-se, por exemplo, o seguinte fenômeno: observo que no mesmo lugar em que havia carvão incandescente apareceram cinzas. Deduzo então – por meio do pensamento lógico formal e como bom homem ocidental que sou – que as cinzas são um produto do carvão incadescente. Para a cultura zen-budista, por exemplo, não há nessa dedução nada de evidente. Cito Shunyu Suzuki (1994): "O mestre Dogen disse: 'Carvão não se torna cinzas'. Cinzas são cinzas. Elas não pertencem ao carvão. Elas têm seu próprio passado e futuro. Elas são uma existência independente porque são uma centelha no vasto mundo dos fenômenos. Onde há carvão preto, não há brasas. Portanto, carvão preto e brasas são independentes; cinza e lenha são independentes; cada existência é independente" (p. 102). A questão toda é que, para fins utilitários, o primeiro tipo de relação causal nos é fundamental: precisamos obter carvão por meio da lenha incandescente para poder abastecer nossas churrasqueiras, por exemplo.
9 O que tudo isso tem a ver com Winnicott, é o que tentarei evidenciar a seguir. Mas não somente com ele. Matte- Blanco, por exemplo, é um autor que também pensa em duas razões psíquicas: a primeira, que ele considera a dos afetos – e, de forma geral, do inconsciente – e que denomina lógica simétrica, e, a segunda, que concerne às representações – portanto, à consciência e ao pré-consciente – que chama de lógica assimétrica, sendo que somente esta última guarda relação com a racionalidade vigente, originária de Aristóteles. Esse autor tem sido bastante relembrado em nosso meio por Ignácio Gerber (em vários dos seus textos), ao lado de outras fontes mais antigas – como o Tao-Te-King e o Koan Zen – e a outras mais recentes – como as postulações da física quântica e das matemáticas paraconsistentes e contraditórias –, todas elas questionadoras da lógica aristotélica. Isso nos mostra que Winnicott constitui apenas uma das vertentes por onde essa temática passa, na contemporaneidade.
10 Penso que se Winnicott quisesse denominá-lo "elemento feminino", ele teria usado o adjetivo inglês feminine em vez de female, da mesma forma que usaria masculine em vez de male para designar o elemento macho (cf. Winnicott, 1966/1971).
11 Trata-se, em geral, de mães que não foram reconhecidas e referendadas (no seu ser próprio) por suas respectivas mães e que, então, continuam buscando essa referência em alguma outra fonte externa do tipo: regras e prescrições estereotipadas (de cuidado de bebês); a palavra do pediatra, tornada lei; valores da moda etc.
12 A identificação primária ocorre na constituição do objeto subjetivo, quando o bebê se identifica com o seio materno. As identificações secundárias, bastante posteriores – já que implicam a distinção dentro e fora e a existência de relações objetais – envolvem simultaneamente as figuras materna e paterna (além de outras, presentes na educação da criança) e seu conjunto formal é que dará uma identidade à criança (com caracteres masculinos e/ou femininos e objetos de escolha sexual definidos).
13 Quem nos dá uma bela descrição dessa transformação da mente, passo a passo, é a epistemologia genética de Jean Piaget e penso que vale a pena recorrer a ela, sempre que se quiser estudar esses processos a fundo, já que Winnicott não caminha nessa direção. O único problema é que Piaget, como bom representante da cultura pósaristotélica, toma, indevidamente, o pensamento lógico formal como razão universal. Também, no seu pensamento, temos sempre a impressão de ver a mente ocupar o lugar do todo. É preciso, pois, tomar certo cuidado aí.
14 Eu, pessoalmente, penso que toda essa atividade experimentadora do bebê com o seio, que excede a pura alimentação e que compõe a elaboração imaginativa da função alimentar, introduz já, precocemente, as sementes da atividade lúdica, que é aquela que formará o espaço potencial (e que será a base a partir da qual o bebê caminhará para formas simbólicas e aquisições culturais mais complexas).
15 Penso que a produção literária de João Guimarães Rosa constitui o melhor exemplo de colaboração profícua entre as duas razões (a paradoxal e a utilitária). Nela, como talvez em poucas outras, podemos reencontrar os motivos humanos mais íntimos descritos nas cores que lhe são próprias, com as mais diferentes nuanças, numa linguagem plena de paradoxos, mas, ao mesmo tempo, acessível à razão e aos códigos vigentes.
16 Evidentemente, cabe diferenciar, aqui, consciência e mente. A consciência, em princípio, está aberta ao uso das duas razões, a paradoxal e a utilitária, podendo, entretanto – em casos especiais – ficar sob o domínio estrito de uma delas, como acontece em quadros psicopatológicos. Cito, como exemplo, o pensamento obsessivo – em que a razão utilitária, estritamente racional, domina a consciência, tentando organizar no exterior o que não consegue controlar no interior –, e os delírios psicóticos, em que a razão paradoxal dos processos inconscientes se apropria da consciência, impossibilitando qualquer tradução dos processos subjetivos na razão utilitária e impedindo, assim, a compreensão do conteúdo dos delírios psicóticos pelos códigos vigentes. A mente, conforme já disse anteriormente, designa a parte intelectual da unidade psicossomática, operando unicamente pela razão utilitária.
17 Para maior aprofundamento do funcionamento do falso self cindido nas patologias de tipo borderline, cf. Naffah Neto, 2007.