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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo  2010

 

RESENHAS

 

A psicanálise nas tramas da cidade

 

 

Autores: Bernardo Tanis e Magda Guimarães Khouri (Orgs.)
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2009, 447 p.

Resenhado por: Pedro Luiz Ribeiro de Santi,1 São Paulo

Endereço para Correspondência

 

 

Do aglomerado à pólis: uma psicanálise implicada politicamente

O livro foi organizado a partir do registro de diversas atividades desenvolvidas entre 2007 e 2008 pelo setor de Cultura e Comunidade da FEPAL (Federação de Psicanálise Latino- americana) e pela Diretoria de Cultura e Comunidade da SBPSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de são Paulo).

Seguiu-se ao prazer do convite para resenhar este livro uma razoável preocupação: como abranger os mais de trinta artigos que o compõem? Como transmitir ao leitor desta Revista uma noção do que encontrar nele?

Lendo e relendo o livro, ora esperava que algum fio se desenhasse ao longo da diversidade de abordagens contidas na coletânea, ora aproveitava da variedade de experiência de leitura proporcionada. Vários desenhos de sentido se formaram, mas, certamente, dentro da perspectiva deste leitor. A experiência de leitura foi se aproximando do que vários dos autores apontam sobre a nossa relação com as cidades: vivemos dentro delas, temos certa noção de sua dimensão, mas sabemos que sua totalidade nos escapa; vivemos de fato dentro de um desenho circunscrito por nossos caminhos habituais ou por cenários urbanos expostos na midia. Para nós, esses locais existem: neles nos reconhecemos e temos história. Da casa aos locais de trabalho, às casas de parentes e amigos, aos locais de lazer e serviços. Se acontece de nossos caminhos estarem sujeitos a engarrafamentos – o que é quase inevitável que aconteça – exploramos desvios e caminhos alternativos através da capilaridade complexa de avenidas, ruas, vielas.

Porém, se nos virmos em determinadas partes da metrópole, estaremos francamente desorientados e tomados de estranheza: com todo o potencial de pânico e sedução que isto pode gerar. A desorientação pode mesmo gerar a impressão de que estejamos na mesma cidade e isto ser uma ilusão. Em megalópoles como São Paulo, municípios estão em continuidade indiferenciada. O recurso tecnológico do GPS pode nos ajudar a chegar ao nosso destino, mas provavelmente nos priva/poupa de nos relacionarmos de fato com as vias e rumos: basta seguirmos as instruções e não precisamos, de fato, ver a cidade. Mais um grau de alienação.

Em contrapartida, a excessiva utilização de nossos caminhos habituais também provoca mecanismos de saturação e insensibilidade. Perdemos a capacidade de olhar significativamente também para o que nos é mais próximo.

O que vale para a relação com as ruas e disposições geográficas da cidade vale em igual medida para os concidadãos: as outras pessoas. Um grande contraste recorrentemente apontado em artigos do livro é a relação entre o excesso de gente e o encapsulamento narcísico no qual nos abrigamos.

Voltando ao livro, o que se realiza em seu projeto é a implicação política da psicanálise. Não no sentido de política partidária, naturalmente, mas em sentidos que vão desde a conhecida afirmação de Freud nas primeiras linhas de "Psicologia de grupos e análise do eu" (1921/1967, p. 2563) de que toda psicologia é social, até o fato de que a clínica psicanalítica contemporânea intervém em contextos como hospitais, favelas ou escolas. A despeito da conhecida concepção segundo a qual a psicanálise é individualista e elitista – concepção que reconhecemos ser parcialmente justificada por determinados usos e implicações dela ao longo do século XX – suas concepções da constituição da mente humana e sua forma de intervenção trazem o outro humano implicado intrinsecamente.

Num passo além, a proposta do evento que originou a coletânea é assumir plenamente a psicanálise implicada no campo social e político e compartilhar e refletir sobre formas de intervenção psicanalítica neste sentido. Lemos no primeiro parágrafo da apresentação: "Guiados por nosso compromisso social de pensar e atuar no mundo em que vivemos, escolhemos a metrópole como foco de nossas reflexões, por considerá-la o lugar para o qual converge a subjetividade de cada um de nós" (p. 13).

Assim, a cidade é um ponto importante de inflexão nas relações entre o indivíduo e a cultura.

Em alguns dos artigos, cidades são representadas como entidades dotadas de identidade, história e memória. Em uma longa entrevista, Ruy Castro conta como sua obra ensaística e biográfica só existe e pode existir em torno do Rio de Janeiro: é pela relação de pertencimento que extrai o desejo e a segurança para se embrenhar nas histórias de alguns de seus personagens célebres e representativos de momentos históricos distintos. O também jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão passeia, num artigo com visíveis pretensões provocativas, pelo erotismo na cidade de São Paulo. Ele evoca referências e descrições precisas de hábitos e endereços clássicos da prostituição na cidade. A prostituição em seu aspecto mais desumano e mecânico é recoberta por camadas de erotismo saudosista, assim como certos endereços do centro da cidade: esquinas decadentes do centro da cidade ou as reurbanizadas estações Júlio Prestes e da Luz.

Mas dentre os artigos que tomam as cidades como entidades, chamou-me especialmente a atenção aquele do jornalista Roberto Pompeu de Toledo. O estudioso da história da cidade de São Paulo nos conta como ela foi sempre vivida de uma perspectiva utilitária por seus habitantes: seu progresso e falta de planejamento toma os espaços como caminhos, e os caminhos como empecilhos e estorvos a serem vencidos entre dois pontos. A cidade é predominantemente feia, os espaços e caminhos não são acolhedores ou convidativos. E, numa imagem belíssima e evocativa, o autor nos conta como a cidade foi progredindo sobre a repressão de suas águas, progressivamente recobertas de asfalto. Marcada e demarcada por rios, São Paulo teve sua urbanização caracterizada pela canalização dos rios, ocultando-os sob avenidas a serviço da decisão de privilegiar o transporte automotivo particular. Seus grandes rios – que em outras grandes cidades do mundo muitas vezes são pontos de encontro, visitação e referência e que um dia foram usados para navegação, pesca e lazer – foram poluídos de forma aparentemente irrecuperável. Sem que seja a intenção do autor, este acaba por ser um artigo genuinamente movido por uma perspectiva psicanalítica.

Ao escrever esta resenha, leio nos jornais um projeto do atual prefeito de São Paulo para demolir o Minhocão. Independente da consistência ou viabilidade do projeto, é unânime o quanto o minhocão é o melhor símbolo da degradação utilitária do espaço urbano; ao mesmo tempo, como substituir o serviço que ele de fato cumpre na ligação de áreas distantes da cidade?

E, a partir deste ponto, destaco um desenvolvimento teórico que perpassa vários artigos. Do artigo de Luís Carlos Menezes ("Memória e reconhecimento entre os aglomerados e a polis"), derivamos a ideia de que uma experiência de pólis é aquela que propicia as dimensões de memória e reconhecimento. Entre o 'ainda sem sentido' e o 'já sem sentido' – quer pelas dimensões desconhecidas da cidade, quer pela saturação de nosso olhar sobre o excessivamente familiar – nossas metrópoles passam a ser meros aglomerados, áreas de anonimato e indiferença intersubjetiva.

Nos artigos de Miguel Calmon du Pin e Almeida ("Culturas juvenis e realidade urbana"), Juan Vives Rocabert ("La prática psicoanalítica en las megaciudades"), assim como no de Maria Helena Rego Junqueira ("Tempo e ritmo na cidade") temos descrições precisas dos efeitos deste regime de experiência. Almeida enfatiza o que há de excessivo na experiência contemporânea, excesso que resulta na impossibilidade de ancoramento subjetivo, só restando uma repetição que não remete ao desejo inconsciente, mas à dimensão traumática do próprio excesso. No artigo de Junqueira, talvez tenhamos uma formulação concisa desta linha de reflexão:

Uma questão crucial da nossa vida atual diz respeito aos modos da relação com o mundo, com as condições de existir, mais frequentemente com as formas de vida urbana. A aglomeração nas cidades tornou-se cada vez mais intensa e concentrada, ao mesmo tempo em que aumentaram a decadência e a degradação dos modos de troca e convivência, acentuando-se o desequilíbrio social e a violência. (…) Esta tensão vem sendo delineada cotidianamente e resulta em grande parte de um descontrole no ritmo de vida, alterando-se a relação com as dimensões de tempo e provocando sérios problemas relativos ao espaço. A cidade é o cenário privilegiado em que ocorrem os processos sociais, que configuram as constantes transformações, cada vez mais intensamente frenéticas. (p. 301)

Quando se fala sobre "psicanálise e cultura" sempre se coloca a questão de saber como as dinâmicas sociais agem especificamente sobre a constituição subjetiva. Como se dá a comunicação entre a história, a cultura e aquilo que diz respeito aos cuidados dispensados à criança, o acolhimento e os sonhos e demandas dos pais com relação a ela. No livro que tratamos, a interface é constituída concretamente pelo ritmo urbano. Os aglomerados são incompatíveis com os laços simbólicos, tanto com sua construção quanto com sua sustentação.

E então há artigos que procuram refletir sobre as consequências da experiência contemporânea de viver em metrópoles sobre a constituição subjetiva. Rocabert considera que a ampla gama de transtornos narcísicos, psicossomáticos e compulsivos sejam expressões diretas das transformações da estrutura familiar na metrópole: nela, há uma guerra em torno da questão da territorialidade, gerando altos níveis de irritabilidade.

Ainda neste encaminhamento teórico, chamo a atenção, por fim, para o artigo de Marion Minerbo ("A lógica da corrupção: um olhar psicanalítico"). Nele, a autora analisa as consequências do que chama de fratura dos laços simbólicos. Fora do simbólico, atos transgressivos deixam de poder ser compreendidos como confronto com a lei edípica: seu sentido é o de gratuidade e desapego, de simples eliminação de um outro humano privado de investimento afetivo ou de fantasia que se apresenta como empecilho ao prazer imediato. Cito uma passagem que delineia consequências do tipo de experiência criada assim:

O que o psicanalista observa, contudo, é que a fragilidade do símbolo produziu duas novas formas de sofrer. A que decorre de uma violência pulsional que não pode contar com a malha simbólica – própria ao sujeito psíquico ou social – para contê-la, dando-lhe algum sentido e assim diminuindo a necessidade de atuá-la no real de maneira crua, direta e impulsiva. E a que decorre da falta de sentido de ser. Esta produz um vazio existencial que tem sido diagnosticado como "depressão". (p. 357)

É ante esta experiência que nos vemos em nossos consultórios e ao longo de nossos itinerários pelas cidades. E o trabalho do analista se coloca na direção da produção de efeitos simbólicos que possam transformar os aglomerados de estímulos que nos saturam em experiência subjetiva. Para concluir por aqui, parece-me que este livro assume a posição de que toda a clínica psicanalítica seja implicada politicamente, quer nos damos conta disso ou não enquanto mergulhamos com o analisando na experiência única e interiorizada de sua análise.

 

Referências

Freud, S. (1967). Psicologia de grupos e análise do ego. In S. Freud, Obras Completas. (Vol. 2, pp. 2563- 2564). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1921)         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Pedro Luiz Ribeiro de Santi
[COGEAE da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP]
Av. Paulista, 2073
Conjunto Nacional, Horsa I. cj. 510
01311-300 São Paulo, SP
e-mail: plrsanti@uol.com.br

 

1 Psicanalista. Professor do curso de Teoria Psicanalítica da COGEAE-PUC-SP. Doutor em Psicologia Clínica. Autor de A crítica ao eu na Modernidade. Em Montaigne e Freud, entre outros livros e artigos.