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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.3 São Paulo  2010

 

EDITORIAL

 

A escuta psicanalítica e os Grupos de Trabalho (WP)

 

 

A escuta em questão, título outorgado a este número, faz parte da proposta editorial para 2010, cujo mote articulador, "Atualidade da clínica psicanalítica", contempla um vasto espectro temático que aponta na direção do diálogo entre a prática clínica e a reflexão que a sustenta e interroga.

Embora o debate clínico tenha feito parte do intercâmbio entre colegas desde os primórdios da Psicanálise, a realidade originada pelas diferentes culturas nas quais a psicanálise desenvolveu-se somada ao correlato fenômeno das escolas psicanalíticas tornou este diálogo mais complexo. O dogmatismo e os mal-entendidos muitas vezes ocupam o lugar de uma aproximação aberta e sem preconceitos à diversidade que reina no exercício da clínica. Qual o lugar das teorias explícitas e implícitas na escuta analítica? Como ouvimos uma narrativa clínica? A partir de que pressupostos dialogamos com nossos colegas? Almejamos uma padronização da escuta, ou a escuta analítica só faz sentido no après-coup (nachträglich)?

Ainda mais, pressionada por outros campos de conhecimento e práticas clínicas, a psicanálise e os psicanalistas viram-se ameaçados. Isto não constitui uma novidade para nossos leitores, estes temas já foram longamente abordados em congressos e debates. Sabemos da nossa consistência e dos avanços teórico-clínicos que a fundamentam. O que se apresenta hoje como desafio são as modalidades que encontramos para aprimorar nossa escuta, dialogar com colegas psicanalistas e não psicanalistas em um campo no qual a alteridade é a marca distintiva em contraposição à qualquer homogeneização doutrinária.

Dentre as várias possibilidades para encaminhar as discussões a respeito dos diversos modos de se pensar e trabalhar em psicanálise, surgiu, no seio da Federação Europeia de Psicanálise (FEP), a prática dos Grupos de Trabalho que vem se desenvolvendo e aprimorando há aproximadamente dez anos. Apresentamos neste número aos leitores brasileiros os Grupos de Trabalho (Working Parties) e suas diferentes propostas. Conhecer mais deste instrumento, avaliar criticamente seus objetivos e resultados, despertou o interesse da equipe editorial, ainda mais que estas práticas fizeram parte do Congresso da FEPAL em Bogotá e farão parte do Congresso da FEBRAPSI.

Aos nossos convidados, pioneiros na criação dos Grupos de Trabalho no seio da Federação Europeia de Psicanálise (FEP), a comissão editorial transmitiu sua inquietação: "Em um horizonte de globalização, no qual estamos imersos, como preservar a língua artesanal, tecida ponto por ponto que caracteriza o rico trabalho psicanalítico? Como explicitar, de forma inteligível para os colegas, a escuta e a fala tão íntimas e particulares com que cada sessão é tramada? Em uma tentativa de estabelecer trocas fundamentais visando a um crescimento e ampliação da psicanálise, corremos o risco de perder a especificidade?"

Graças ao trabalho dedicado e persistente da equipe editorial e à gentil contribuição dos autores apresentamos quatro textos de autoria respectiva de David Tuckett, Haydée Faimberg, Jorge Canestri e um elaborado em conjunto por Evelyne Séchaud, Serge Frisch e Leopoldo Bleger. Nestes textos os autores apresentam respectivamente suas modalidades de trabalho, suas propostas e objetivos, assim como uma sumária avaliação dos resultados e futuros projetos. O leitor terá oportunidade de tomar contato com práticas diversas, com objetivos e pressupostos muitas vezes conflitantes, decorrentes da diversidade pela qual cada proposta busca expandir seu entendimento acerca da escuta e da função analítica. As diferentes concepções e controvérsias em torno do que se entende por pesquisa em psicanálise não permanecem fora do escopo destes debates. Distante de uma perspectiva totalizadora, que englobe a psicanálise e esta prática em uma formatação única, reconhece-se em cada abordagem o esforço e a busca de um maior entendimento do nosso fazer clínico.

Convidamos Luís Carlos Menezes que, na sua função de Coordenador Científico do XXVIII Congresso da FEPAL (2008-2010), teve a seu cargo a implementação dos Grupos de Trabalho e nos apresenta sua esclarecedora visão em torno do momento atual da psicanálise, o contexto no qual surge esta prática, os riscos e ganhos que ela comporta. Incluímos os depoimentos dos nossos colegas José Carlos Calich e Miguel Calmon du Pin e Almeida que participaram de diferentes grupos e generosamente trazem vivas reflexões a partir das suas intensas experiências pessoais.

A questão da subjetividade do intérprete não é exclusiva do campo psicanalítico, ela é inerente à produção do conhecimento de modo geral e às ciências humanas, em particular, apagando a ilusão de uma objetividade esterilizante; convidamos para tratar desta interface Adélia Bezerra de Meneses, livre docente em Teoria Literária e Amâncio César Santos Friaça, astrofísico, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. Seja no campo da astrobiologia ou na literatura ambos aludem à dimensão inconsciente e subjetiva do intérprete, fenda ficcional que se abre para a função interpretativa, interpelando um determinado campo, uma determinada ordem espaço-temporal, abrindo assim as possibilidades de novos sentidos.

A riqueza deste número é ampliada pelas contribuições de Homero Vetorazzo Filho, Cecil José Rezze, Ignácio Alves Paim Filho e Felipe Lessa em densos e interessantes trabalhos em torno da prática clínica e dos possíveis usos das teorias. Na seção de intercâmbio publicamos o trabalho do analista italiano Giuseppe Civitarese, membro da Sociedade Italiana de Psicanálise. No seu texto a figura de linguagem metalepse é utilizada como instrumento heurístico do trabalho analítico. O autor sublinha a natureza construtiva, antiessencialista ou "ficcional" do trabalho interpretativo na análise: "a cada deslocamento metaléptico, redescrição ou reenquadramento narrativo, o sujeito é simultaneamente desconstruído e reconstruído, isto é, tanto relativizado quanto fortalecido na consciência de si e do mundo."

Encerramos este número como o fazemos habitualmente com três resenhas e notícias sobre lançamentos, atualizando deste modo nossos leitores acerca das publicações no campo psicanalítico. Esperamos que este estimulante conjunto de trabalhos contribua para reflexão em torno da clínica e para o transformador contato com alteridade.

 

Bernardo Tanis
Editor