SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 número3Método "a escuta da escuta"A especificidade do tratamento psicanalítico hoje índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.3 São Paulo  2010

 

ARTIGOS TEMÁTICOS - A ESCUTA EM QUESTÃO: OS GRUPOS DE TRABALHO

 

Grupo de Trabalho sobre questões teóricas1

 

Grupo de Trabajo sobre cuestiones teóricas

 

Working Party on theoretical issues

 

 

Jorge Canestri2

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Estas notas oferecem um panorama dos últimos dez anos de trabalho do Working Party on Theoretical Issues, da Federação Europeia de Psicanálise. Descrevem projetos de pesquisa, começando pelo tema das teorias implícitas, pré-conscientes e privadas do analista em sua prática clínica, chegando- se ao projeto em andamento sobre teorias implícitas relacionadas ao trauma, conforme pôde ser analisado em textos, bem como, principalmente, em entrevistas com sete analistas experientes no assunto. Explica-se a metodologia aplicada e o significado que este tipo de trabalho, de nosso ponto de vista, adquire na psicanálise contemporânea. Este trabalho serve para reunir analistas de diferentes partes do mundo, línguas e culturas, com a intenção de se favorecer o compartilhar do conhecimento e o respeito às diferenças teórico-clínicas.

Palavras-chave: Grupos de Trabalho; pesquisa; metodologia; teorias implícitas; prática teórico-clínica.


RESUMEN

Estas notas ofrecen un panorama de los diez años de trabajo del Working Party on Theoretical Issues de la European Psychoanalytical Federation. Ellas describen los proyectos de investigación que han sido iniciados, comenzando con el tema de las teorías implícitas, pré-conscientes, privadas del analista en la práctica clínica, para llegar al proyecto en curso sobre las teorías implícitas sobre el trauma como ha podido ser analizado en textos y especialmente en entrevistas con siete expertos de trauma. Explico la metodología aplicada y el significado que este tipo de trabajo adquiere en el psicoanálisis contemporáneo, desde nuestro punto de vista. Este trabajo sirve para reunir analistas de diferentes regiones, lenguas y culturas con la intención de facilitar la condivisión del conocimiento y el respeto de las diferencias.

Palabras clave: Grupos de Trabajo; investigación; metodología; teorías implícitas; práctica teóricoclínica.


ABSTRACT

These notes provide an account of the ten years of work of the Working Party on Theoretical Issues of the European Psychoanalytical Federation. They describe the research projects that have been initiated, beginning with the theme of the implicit, preconscious, private theories of the analyst in clinical practice, and ending with the on-going project on the implicit theories on trauma as analyzed in texts and especially in interviews with seven experts on trauma. I explain the methodology applied and the significance that, in our opinion, this type of work acquires in contemporary psychoanalysis. It serves to bring together analysts from different regions, languages and cultures in order to facilitate the sharing of knowledge and respect for differences.

Keywords: Working Parties; research; methodology; implicit theories; clinical and theoretical practice.


 

 

As notas a seguir objetivam tratar, de forma abrangente, de certa experiência de trabalho particular, iniciada há dez anos, quando David Tuckett assumiu a presidência da Federação Psicanalítica Europeia.

Durante as reuniões inaugurais, buscou-se responder algumas perguntas que circulavam frequentemente entre colegas: Por que era tão difícil criar Grupos de Trabalho em torno de temas cruciais à psicanálise? Por que seria tão complicado dialogar sobre a clínica real dos analistas, sobre sua prática concreta, sem cair imediatamente numa supervisão do material apresentado? Por que a experiência de inúmeros congressos científicos que se sucediam no tempo não era cumulativa, e cada vez parecia ser necessário recomeçar, como se não fosse possível capitalizar e desenvolver conhecimentos? Por que o intercâmbio entre analistas nos congressos nacionais, regionais e internacionais não se caracterizava pela escuta atenta das razões do outro, e sim pela tendência a imporem-se as próprias? A lista poderia ser muito mais extensa, mas não há necessidade de sermos prolixos.

A proposta consistiu na criação desses Grupos de Trabalho que apresentariam um programa a ser desenvolvido ao longo do tempo; idealmente, nos próximos dez anos. O grupo que coordeno tem um coordenador e três conselheiros. Os conselheiros são: Werner Bohleber, Paul Denis (antes era Gilbert Diatkine) e Peter Fonagy. A configuração dos diversos Grupos de Trabalho não é idêntica. Depende, em grande medida, das tarefas que foram ou vêm sendo designadas a cada grupo, visto que os mesmos nascem e diversificamse continuamente. Nosso grupo apresentou uma lista de argumentos para trabalhos possíveis e, após discuti-la com o corpo diretivo da Federação, elegeu-se um tema que parecia convidar a uma articulação frutífera com outro Grupo de Trabalho, o "Grupo de Trabalho sobre Questões Clínicas" (Working Party on Clinical Issues), então coordenado por Haydée Faimberg.

Enumero sumariamente as dez questões que propusemos:

1. Quais são os pressupostos fundamentais, bem como os pontos de conflito e coincidência entre os diferentes modelos?

2. Qual a relação destes modelos com a prática clínica individual?

3. Quais evidências poderíamos oferecer para identificar os diferentes modelos na prática clínica?

4. Qual a relação entre modelos, prática e parâmetros (frequência das sessões etc.)?

5. Seria possível identificar diferentes objetivos terapêuticos para diferentes modelos?

6. Por que modelos e teorias têm implicações emocionais para o analista e/ou para as instituições psicanalíticas?

7. Há motivações psicanalíticas (inconscientes) para escolherem-se diferentes paradigmas (modelos)?

8. Qual a influência da linguagem/cultura na criação e/ou escolha dos diferentes modelos?

9. Qual o papel e o sentido de teorias pré-conscientes na prática clínica? Como podemos coletar evidências sobre elas? Como usar a supervisão para produzir evidências sobre sua existência? Qual seria o valor heurístico destas teorias préconscientes, se elas pudessem ser reconhecidas?

10. Como o trabalho clínico poderia ser aprimorado, hipoteticamente, usando-se o feedback destas pesquisas?

O grupo elegeu o tema das teorias pré-conscientes ou implícitas, por numerosos motivos. O primeiro e fundamental era que o tema adequava-se ao tipo de trabalho que o "Grupo de Trabalho sobre Questões Clínicas" planejava, à medida que tinha por objetivo investigar o que efetivamente fazia o analista em sua prática clínica. Era, além do mais, um tema que, desde quando fora proposto por Joseph Sandler em 1983, não produzira desenvolvimentos significativos, e que me interessava particularmente. Em distintas ocasiões, eu havia escrito acerca do assunto, sem encontrar possibilidades de traçar um programa de pesquisa específico.

Nosso grupo tem se reunido periodicamente, seja em congressos da Federação,3 nos quais normalmente são apresentados resultados do que vem sendo feito ao longo do ano, seja fora dos congressos, conforme o orçamento disponível. Este último tende a ser modesto, bastando, em geral, para pagar passagens aéreas e duas noites de hotel. As reuniões acontecem em sedes de sociedades ou em universidades, e o resto do trabalho é feito inteiramente por e-mail. Nas reuniões fora dos congressos participam unicamente os quatro membros do núcleo central, coordenador e conselheiros.

Os congressos da Federação aceitam, no entanto, reuniões com grupos numerosos, compostos por membros que participam do trabalho clínico, desde que inscritos com antecedência. Inicialmente, participavam destes Grupos de Trabalho ao redor de vinte pessoas, que podiam ser monolíngues (de língua inglesa, francesa ou alemã – as três línguas oficiais da Federação) ou podia-se falar em mais de um idioma simultaneamente. Explicitamos, quando em 2006 publicamos um primeiro livro sobre o trabalho (Canestri, 2006), que era, na realidade, muito difícil, se não impossível, discriminar a propriedade intelectual das ideias nele contidas. Embora o núcleo central do Grupo de Trabalho direcionasse o tema e houvesse desenhado o instrumento metodológico e organizado o trabalho, foram os diálogos e elaborações no trabalho em grupo que enriqueceram constantemente nossas ideias. A consciência da impossibilidade de atribuir-se a cada pesquisador a propriedade de sua respectiva ideia ou raciocínio deu-nos a clara sensação de havermos conquistado algo: criáramos Grupos de Trabalho compostos por membros mais interessados em produzir conhecimento do que em atribuir a eles próprios o mérito da produção.

Formamos dezenas de grupos de análise de material clínico, aplicando certo instrumento metodológico que havíamos criado, acerca do qual falarei subsequentemente. O instrumento foi enriquecendo-se ao longo dessas análises e, com ele, nossa compreensão do projeto e de suas implicações. Centenas de colegas colaboraram; inicialmente na Europa (embora colegas de outras regiões tenham participado de vários grupos) e, sucessivamente, na América do Norte e na América Latina. Se somarmos os participantes de todos os Grupos de Trabalho, creio que poderíamos dizer, sem temor a equívocos, que esta iniciativa possibilitou compartilhar e produzir ideias coletivamente, como nunca antes havia ocorrido.

Nosso Grupo de Trabalho continuou a desenvolver o tema das teorias pré-conscientes (implícitas) na prática clínica durante os últimos dez anos, embora o conteúdo de nossas pesquisas tenha se diversificado, abarcando outros assuntos, aos quais foram aplicados os conhecimentos adquiridos.

Antes de entrarmos nos desenvolvimentos, vejamos quais foram as ideias iniciais e qual o instrumento ao qual aludi anteriormente.

Conforme mencionado, o pioneiro deste assunto foi Joseph Sandler, que em seu trabalho de 1983 escreveu:

Com crescente experiência clínica, o analista, ao tornar-se mais competente, irá pré-conscientemente (descritivamente falando, inconscientemente) construir uma variedade de segmentos teóricos que se relacionam diretamente com seu trabalho clínico. São produtos de pensamento inconsciente. Em grande parte, tratam-se de teorias parciais, modelos ou esquemas, que se caracterizam, digamos, pela disponibilidade de serem requeridos quando necessário. Que possam contradizer-se, não é problema. Coexistem vivamente, contanto que inconscientemente. (Sandler, 1983, p. 38)

A reflexão de Sandler punha em evidência algo que parecia bastante óbvio para qualquer analista experiente que estivesse familiarizado com o trabalho clínico e a prática da supervisão. A aplicação mecânica das teorias oficiais à experiência clínica é sempre redutora, inadequada e pouco eficaz. A "teoria oficial" funciona – quando funciona bem – como uma estrutura de base que deve necessariamente ser enriquecida e modelada a partir da singularidade do encontro clínico. Um exame minucioso do que o analista realmente faz na prática clínica (e não do que diz ou acredita que faz), indica que a passagem da aplicação acrítica e banal da "teoria oficial" a um modelo que melhor corresponda à especificidade do caso, se realiza, como sugeria Sandler, pela construção de esquemas ou teorias parciais. A construção destes segmentos teóricos é pré-consciente (descritivamente inconsciente), motivo pelo qual demos a estes modelos, ou esquemas, o nome de teorias pré-conscientes, privadas ou implícitas. Buscaremos explicar em detalhe o conteúdo semântico destas três denominações (Canestri, 2006).

Estes segmentos teóricos nem sempre adquirem uma dignidade que permita adotálos nas "teorias oficiais": sua utilidade é limitada à sua relação direta com o trabalho clínico. No entanto, em alguns casos, após certa elaboração adequada, podem ser incorporados ao corpo de conhecimentos de que nos servimos em nossa compreensão do funcionamento psíquico. Um exemplo, entre outros, é o nascimento e desenvolvimento do conceito de função α descrito por Bion em seu livro Cogitações.

Por esse motivo, resgatamos, em nossa análise da prática clínica real, o valor heurístico do pensamento pré-consciente, que tem suas raízes no inconsciente do analista atuante. Este fato era naturalmente conhecido do ponto de vista da contratransferência, sobretudo por seu valor emocional. Seu valor cognoscitivo foi menos considerado. Poder-se-ia dizer, sem dúvida, que o projeto geral estava orientado na direção de aprofundar o tema mente do analista no trabalho clínico.

Para fazer uma análise exaustiva e com muitos exemplos clínicos, fez-se necessário reunir a maior quantidade possível de analistas experientes, criar ocasiões de trabalho, assim como desenhar um instrumento idôneo de análise.

Nossa pesquisa era qualitativa, baseada em grande quantidade de material empírico ao qual se aplicou um instrumento de leitura que denominamos The Map of private (implicit, preconscious) theories in clinical practice, sinteticamente chamado Mapa4 (Map). À criação deste instrumento, que requereu muitos meses de análise de material clínico e reflexão para ser construído, acrescentou-se uma definição teórica que visava levar em consideração a nossa experiência. Por conseguinte, definimos a teoria como: o pensamento baseado na teoria pública ou oficial + o pensamento privado + a interação do pensamento privado com o pensamento explícito (ou seja, o uso implícito da teoria pública ou oficial).

É fácil intuir, de acordo com o que foi dito anteriormente em relação ao projeto como um todo, que o próprio instrumento é resultado de uma obra coletiva. Cada trabalho grupal, cada diálogo com colegas, enriquecia o instrumento com novas ideias que foram sendo incorporadas ao nosso corpo de conhecimentos. Mencionamos, no último congresso da IPA, a contribuição de Juan Pablo Jiménez, que nos permitiu adicionar um novo, valioso e necessário elemento ao Mapa, mas não é fácil apontar um autor responsável por todos os elementos que o compõem, pelas razões acima descritas. O Mapa é um instrumento de análise permanentemente aberto à integração e a sofisticações.

Os elementos centrais desse instrumento foram chamados vetores para indicar as trajetórias que organizavam nossas análises. Realidade alguma pode ser analisada sem o uso de categorias organizadoras. Inicialmente formulamos hipóteses acerca de seis vetores – a contribuição de J.P. Jiménez elevou esse número para sete – embora sendo este um sistema aberto, permite a incorporação de outros parâmetros sempre e quando necessário.

Transcrevo a seguir uma versão sintética do Mapa para permitir que o leitor tenha uma noção de que estamos falando.

Vetores

1. Vetor topográfico ("three box model")

a. Consciente, mas não público
b. Teorias e teorização pré-conscientes
c. Influências inconscientes no uso de teorias

2. Vetor conceitual

a. Visão mundial ou cosmologia
b. Conceitos clínicos
c. Generalizações clínicas
d. Processo psicanalítico
e. Teorias de mudança

3. Vetor de ação

a. Escuta
b. Formulação
c. Fala ou interpretação
d. Comportamento

4. Relações objetais do vetor de conhecimento

a. História do conhecimento
b. Influências transgeracionais
c. Sociologia do conhecimento
d. Internalização da teoria
e. Teoria do apego

5. Vetor de coerência versus contradição

a. Público no qual a coerência é esperada
b. Uso de metáforas ou conceitos polimórficos
c. Soluções criativas

6. Vetor de desenvolvimento

7. Vetor de heurística intersubjetiva

A construção, aplicação e elaboração do Mapa, a análise cuidadosa e repetida do material clínico, bem como as inumeráveis reuniões de grupo e apresentações em congressos da Federação do progresso do projeto de pesquisa, permitiram, em 2006, sintetizar nosso trabalho no livro Psychoanalysis: From Practice to Theory (Canestri, 2006). O título indica claramente a direção do projeto: ir da prática, ou seja, da realidade da clínica efetivamente praticada à teoria. Essa tarefa baseou-se em algumas decisões epistemológicas que não descreverei no momento. Basta mencionar a recusa à clássica divisão popperiana entre o contexto da demonstração e o do descobrimento. Popper, assim como Reichenbach, negava a possibilidade de se realizar uma análise lógica deste último. De nosso ponto de vista, evidentemente a separação taxativa entre os dois contextos é contrária à experiência psicanalítica.

O leitor do livro poderá notar que nele colaboraram, além dos integrantes do núcleo central do Grupo de Trabalho, dois colegas norte-americanos e dois colegas latinoamericanos, além de D. Tuckett, que havia organizado um novo Grupo de Trabalho (On Comparative Clinical Methods), e começava a delinear com seu grupo um livro, que seria publicado em 2008.

Essa colaboração entre colegas de outras regiões não foi casual, e era perfeitamente coerente com a concepção que desde o começo guiara, seja a criação do grupo, seja o projeto como um todo: a possibilidade de se trabalhar em equipe, com todos os analistas que quisessem fazê-lo e de toda parte do mundo, na produção de conhecimentos compartilháveis. Convidamos para participar do livro quatro analistas que haviam demonstrado interesse em pesquisar esse assunto.

Embora inicialmente as reuniões de trabalho grupais tenham se limitado à Europa – tanto em participações dentro como fora dos congressos da Federação, visto que diversas sociedades e universidades organizaram reuniões de trabalho sobre esse tema e sobre a aplicação do Mapa a material clínico (organizaram-se, por exemplo, seminários com candidatos seguindo o modelo de trabalho criado pelo Grupo de Trabalho). Rapidamente o interesse pelo projeto gerou convites de outras partes do mundo. A American Psychoanalytic Association organizou uma mesa em um de seus congressos, na qual expusemos os princípios do projeto e analisamos o material clínico de uma colega americana; Napsac começou a criar grupos estruturados, como o Grupo de Trabalho, nos quais passamos a oferecer consultoria; a FEPAL organizou uma reunião de trabalho em Buenos Aires, e nos ofereceu espaço de participação em seus congressos. Esta expansão estava dentro de nossos objetivos quando iniciamos o projeto.

Um segundo livro, intitulado Putting Theories to Work, está em fase final de preparação e será publicado em 2011. Nele expomos algumas das novas linhas de trabalho sobre as quais nos concentramos nos últimos anos. São essencialmente trabalhos referentes a "o que fazer com o pluralismo teórico", que foi o título de nossa última apresentação no congresso de Chicago, em mesa organizada por Samuel Zysman. Propusemos operar em três níveis: operações conceituais no nível teórico, confrontações com a prática clínica e com os desafios da psicopatologia. Sublinhamos, ademais, a necessidade de se estudar em profundidade a consequência lógica de negar a separação radical do contexto da demonstração e do contexto do descobrimento, ou seja, a necessidade de considerar sempre a teoria com sua heurística, a teoria com o como se chegou a ela, visto que, o modo pelo qual uma teoria é construída torna-se essencial para avaliar seus méritos científicos. Neste caso, a pergunta central à qual se busca responder, é: como reunir evidências, conscientes ou inconscientes, para formular uma hipótese? Uma possibilidade é trabalhar com o teorema de Bayes, aplicando o conceito heurístico de conhecimento ambiental. Parece interessante para se traçar uma linha de pesquisa.

Trata-se da ambiciosa ideia de se desenvolver um novo contexto conceitual para pensar o pluralismo psicanalítico, fazendo um uso mais pragmático da teoria, baseado no conhecimento psicanalítico implícito.

Paralelamente, o Grupo de Trabalho tratou de outros assuntos que constituíram linhas paralelas de pesquisa. Um deles deu lugar a um programa e a uma apresentação intitulada Why do we fail to understand each other. Nela analisamos uma mesa em congresso internacional, na qual era evidente a dificuldade de compreensão entre o apresentador da plenária e seu debatedor. Utilizamos, nesse caso, alguns conceitos da filosofia da linguagem, como o principle of charity de Donald Davidson. Esse programa ainda deve ser desenvolvido.

Nosso foco de interesse dos últimos três anos tem sido o conceito de trauma em psicanálise. O projeto começou por uma análise conceitual: a história, o conteúdo semântico e o lugar desse conceito na teoria psicanalítica. A seguir, construímos um instrumento que intitulamos Trauma questionnaire e utilizamos para estudar 15 apresentações sobre o assunto no congresso da IPA, no Rio de Janeiro, entre key-note lectures e plenárias. O Questionnaire permitiu descrever com clareza as convergências e divergências que imperam nas diferentes concepções do conceito de trauma, bem como a variedade, em certos aspectos inverossímil, de significados atribuídos ao termo.

Nosso passo seguinte foi organizar um programa complexo de entrevistas semiestruturadas com especialistas em trauma. O Questionnaire foi usado como referência nas entrevistas semiestruturadas, bem como na análise sucessiva das mesmas.

Os sete colegas especialistas que generosamente colaboraram neste projeto de pesquisa são: Marilia Aisenstein, Lewis Kirschner, Ilany Kogan, Dori Laub, Janine Puget, Mary Target e Sverre Varvin.

Neste momento do processo, muito complexo por certo, estamos analisando as entrevistas registradas, buscando identificar as teorias implícitas que guiaram os colegas em seus conceitos e trabalho clínico. Pode-se ver que, embora tenhamos levado a cabo uma análise conceitual das diferentes teorias psicanalíticas sobre o trauma, conforme dito anteriormente, nosso interesse central não reside em fazer uma análise puramente conceitual da teoria, mas especificamente em descobrir as teorias implícitas que estão operando na mente dos analistas mais experientes.

Isto garante certa continuidade e unidade de nosso programa, quanto a seu núcleo central: a análise das teorias implícitas, pré-conscientes, privadas do analista. É possível diversificar os objetos de análise, conservando, no entanto, a perspectiva central escolhida.

Este projeto sobre o trauma revela-se particularmente interessante de muitos pontos de vista. A partir da realidade da prática clínica, pela abundância de casos de trauma precoce bem como de traumas resultantes de guerras, migrações, problemas interétnicos, e sequelas transgeracionais da Shoa. Por oferecer uma grande variedade de acepções e interpretações do ponto de vista teórico o conceito de trauma mostra-se um bom campo de provas para a análise conceitual e para o questionamento sobre o pluralismo teórico. Do ponto de vista da técnica psicanalítica, porque o tratamento do paciente traumatizado é fonte permanente de desafios relativos às modalidades de cura e à sua efetividade. O projeto será finalizado provavelmente em 2011, quando um livro reunirá todo o material teórico, a descrição do instrumento e sua aplicação à análise de trabalhos do congresso do Rio de Janeiro, bem como as entrevistas, incluindo sua análise e nossos comentários.

Podemos agora pensar em quais tem sido, até o momento e de maneira geral, os resultados da criação deste tipo de grupo e quais perspectivas se abrem para o futuro.

Para oferecer ao leitor uma visão de conjunto e dos prós e contras deste trabalho, faz-se necessário levar em consideração vários planos de análise.

Comecemos pelo plano teórico, que no caso do "Grupo de Trabalho sobre Questões Teóricas" é muito relevante.

Nossa perspectiva privilegia a direção da prática para a teoria, sustentando que esta última deve ser estudada levando-se em conta sua gênese e o contexto de sua descoberta o qual, contrariamente à posição de Popper, pode ser estudado logicamente, levando-se em consideração os conhecimentos psicanalíticos.

Pensamos que o pluralismo teórico não é um drama, e que não se trata de ter como objetivo a unificação teórica, mas acreditamos que, todavia, é necessário afinar nosso pensamento conceitual, reconhecer as congruências e divergências, evitar a babelização da linguagem e da teoria psicanalítica. (Leuzinger-Bohleber, Dreher, Canestri, 2003)

No plano clínico pensamos ser necessário estudar a clínica psicanalítica pelo que ela é, e não pelo que desejaríamos que fosse com a intenção de se compreender as diferenças. A confluência do reconhecimento por parte da IPA de três modelos de formação (Eitingon, francês e uruguaio), conjuntamente com a presença de numerosos analistas nas iniciativas clínicas dos Grupos de Trabalho, produziu, ao menos na Europa, uma crescente fluidez das comunicações entre analistas nas discussões clínicas. Diminuiu a tendência a se pensar que psicanálise é o que eu e minha escola ou grupo fazemos, e o resto não é psicanálise. Melhorou a escuta de concepções de outros grupos ou escolas, facilitando a reflexão teórica.

Uma discussão exaltada atravessou a psicanálise contemporânea, acerca do que é ou deve ser a pesquisa em psicanálise. Para alguns, é útil diferenciar a pesquisa sobre psicanálise de pesquisa em psicanálise, esta última é identificada com o famoso Junktim freudiano (ou seja, a união insolúvel entre prática clínica e pesquisa).

Muitas objeções e críticas acerca dos Grupos de Trabalho provinham de quem pensava que o tipo de pesquisa produzida estava distante da especificidade da psicanálise, que mal tolerava as exigências e constrições metodológicas de uma pesquisa. Em muitas ocasiões revelou-se necessário especificar que pesquisa não é sinônimo de pesquisa empírica (se aceitamos a noção difusa em questão no caso de se acumularem cifras, que é característica da pesquisa quantitativa). Em muitos casos, fez-se necessário superar preconceitos, que às vezes caíam por terra diante do conhecimento concreto e da participação em um determinado projeto. Tudo isto não exclui, certamente, as diferenças de opinião e de posições frente à pesquisa em psicanálise.

Nem todos os Grupos de Trabalho trabalharam ou trabalham com os mesmos princípios, nem com as mesmas posições frente ao problema da pesquisa em psicanálise.

Creio ser necessário esclarecer que, de nossa parte, em cada um de nossos projetos, definiu-se uma metodologia específica e construíram-se instrumentos específicos. Toda pesquisa conceitual, que vai além de um trabalho sobre textos (como, por exemplo, o projeto de E. Both-Spillius sobre as diferenças na concepção da identificação projetiva nas diferentes regiões da IPA), de nosso ponto de vista, tem a necessidade de contar com uma base empírica: em nosso caso, apresentamos e analisamos grande número de sessões. A recíproca também é verdadeira: toda boa pesquisa empírica tem absoluta necessidade de uma boa pesquisa conceitual prévia etc. Estas colocações visam difundir a ideia de que nem tudo o que se faz em psicanálise pode ou deve ser chamado de pesquisa e que, muito provavelmente, faz-se necessário redimensionar o automatismo do Juktim freudiano.

O reconhecimento do pluralismo teórico não pode se separar do reconhecimento das diferenças culturais, da globalização em todos os níveis, não só econômicos, mas da necessidade crescente de se fazerem as contas com o "outro". A filosofia e o trabalho dos Grupos de Trabalho contêm algo que, a meu ver, marcha na direção certa: o respeito pelo "outro", o interesse pelo "outro", o desejo de se trabalhar com o "outro". O desejo de se trabalhar coletivamente, de compartilhar e difundir o conhecimento obtido, de envolver nos projetos a maior quantidade de analistas possível, provenientes da maior quantidade de regiões do país, de países e de sociedades possível. A difusão dos resultados estimulou outras duas regiões da IPA a organizarem Grupos de Trabalho regionais, que estão adquirindo características próprias.

Um resultado marginal, porém muito importante de nosso projeto, foi a utilização das teorias implícitas no ensino, com a finalidade de formação clínica de nossos candidatos. Observamos que esse tipo de ensino desestimula a adoção de soluções dogmáticas, e habitua os candidatos a um exercício clínico-teórico não convencional, à medida que eles têm de pensar no por que e como da construção e uso da teoria, bem como promove a ausência de automatismo em conexão com a técnica. É possível conceber que este trabalho de traçar teorias como conjuntos de teorias "oficiais" e teorias privadas poderia propor, no futuro próximo, um panorama teórico diferente do atual.

Não existem soluções perfeitas ou gerais para muitos dos problemas que a psicanálise deve enfrentar na atualidade. Existem, sem dúvida, soluções progressivas e regressivas. Minha impressão é a de que o trabalho dos Grupos de Trabalho tem representado e representa uma novidade progressiva no panorama psicanalítico contemporâneo.

 

Referências

Leuzinger-Bohleber, M., Dreher, A. U., Canestri, J., (Eds.) (2003). Pluralism and Unity? Methods of Research in Psychoanalysis. Londres: The International Psychoanalysis Library.         [ Links ]

Canestri, J. (Ed.) (2006). Psychoanalysis: from practice to theory. New York/London: Wiley.         [ Links ]

Canestri, J. (2007). Supervision in der psychoanalytischen Ausbildung: Zur Verwendung impliziter Theorien in der Psychoanalytischen Praxis", in Psyche. Zeitschrift fur Psychoanalyse und ihre Anwendungen, 1017-1041. Also in Revista de Psicoanálisis, Sociedade Peruana de Psicanálise, 6.         [ Links ]

Sandler, J. (1983). Reflexões acerca de algumas relações entre conceitos e a prática psicanalíticos. International Journal of Psychoanalysis, 64, 35-45.         [ Links ]

 

Tradução de Fernanda Sofio Woolcott

Artigo especialmente escrito para este número da Revista Brasileira de Psicanálise

 

Endereço para correspondência

Jorge Canestri
[Associação Italiana de Psicanálise AIPsi]
Via Sesto Rufo 23
00136 Roma, Itália
e-mail: canestri@mclink.it

 

[Recebido em 27.8.2010, aceito em 17.9.2010]

 

 

1 NT. Usaremos "Grupo de Trabalho sobre Questões Teóricas" para nos referirmos ao que o autor denomina Working Party on Theoretical Issues.
2 Membro efetivo e analista didata da Associação Italiana de Psicanálise. Membro efetivo da Associação Psicanalítica Argentina.
3 Federação Europeia de Psicanálise.
4
NT. Usaremos Mapa (Map) e mapa de teorias privadas/particulares (implícitas, pré-conscientes) na prática clínica para The Map of private (implicit, preconscious) theories in clinical practice.