SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 número3Os Grupos de Trabalho na América Latina: minha experiência pessoal e breves reflexões sobre suas possibilidades na América LatinaSob o signo de Hermes índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.3 São Paulo  2010

 

DEBATE- COMENTÁRIOS

 

Para clinicar, clinico (parafraseando Pablo Neruda em "Para nascer, nasci".)

 

Para clinicar, clinico

 

In my Practice, I practice.

 

 

Miguel Calmon du Pin e Almeida1

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Um relato subjetivo da experiência vivida pelo autor no Grupo de Trabalho "Especificidades",
mediado por Leopoldo Bleger e Ruggero Levy no congresso da Fepal em Bogotá. O autor traça paralelos entre a clínica contemporânea e a experiência do grupo, em especial no corpo a corpo a partir do qual as representações se dão.

Palavras-chave: experiência corpo a corpo; representação; Grupo de Trabalho.


RESUMEN

Este texto es el relato subjetivo de la experiencia vivida por el autor en el Grupo de Trabajo "Especificidades", mediado por Leopoldo Bleger y Ruggero Levy, en el XXVIII Congreso de Fepal, en Bogotá. El autor traza paralelos entre la clínica contemporánea y la experiencia del grupo, especialmente en el cuerpo a cuerpo a partir del cual tienen origen las representaciones.

Palabras clave: experiencia cuerpo a cuerpo; representación; Grupo de Trabajo.


ABSTRACT

This paper is a subjective report of the author's experience in one of the Working Parties held during the Fepal Congress in Bogota, Colombia, namely the one entitled "Specificities", mediated by Leopoldo Bleger and Ruggero Levy. In this paper the author describes the parallels between contemporary clinical practice and group experience, mainly in the direct, hand-to-hand experience from which the representations are originated.

Keywords: hand-to-hand experience; representations; Working Party.


 

 

Dentre as muitas questões que suscita, a clínica contemporânea nos propõe um novo desafio: o estabelecimento de uma metapsicologia da presença para estender e complementar uma metapsicologia da ausência (aquela da qual derivam as teorias da representação – representar é representar uma ausência). Isso significa que não se trata apenas de propiciar a ausência por intermédio da qual o recalcado retorna, mas da exigência da presença do analista no exercício da função materna, de modo a criar condições de a pulsão se fixar e daí se representar. Ou seja, da necessidade de se produzir uma experiência, um corpo a corpo por meio do qual se viva e se espelhe o que poderá vir a ser representado. Clivagem e intrincação masoquista ganham o primeiro plano em detrimento da castração e do recalque.

Foi com esse espírito que aceitei o convite que Ruggero Levy me fez para apresentar o material clínico no Grupo de Trabalho que se reuniria em Bogotá, nos dias que antecederiam o Congresso da Fepal. Como seria possível transmitir uma experiência somente a partir da presença real do analista? Sem o apoio da lógica e da razão, como essa vivência se transmite? Mais do que uma supervisão ou um seminário clínico, interessou-me a ideia de compartir as angústias do clínico que sou com analistas de diferentes orientações e países, sob o olhar amigo e protetor do Ruggero. Mais do que os referenciais teóricos – e não porque eles não me interessem –, seria o empenho por uma experiência capaz de produzir e/ ou reproduzir os esforços envolvidos na urgência de criar vínculos ali, onde as representações verbais ainda não chegaram. Um corpo a corpo que antecede à linguagem verbal.

Creio que no momento em que estamos na clínica psicanalítica temos muito a pesquisar e aprender com a relação mãe-bebê e com o trabalho com os autistas.

Ruggero me disse que eu deveria retirar os dados biográficos do paciente e apresentar pelo menos três sessões seguidas. Elogiou a experiência já vivida em outros encontros assim como os mediadores do grupo. Nada mais. E eu aceitei, sem saber de mais nada sobre o funcionamento do grupo. Permitam-me a sinceridade: não fui a Bogotá para o congresso, fui para viver essa experiência. Não porque não me interesse o trabalho dos demais colegas, mas por uma questão de ênfase. Soube que o trabalho se estenderia pela manhã e tarde de terça-feira e pela manhã de quarta-feira. Bastante tempo para a discussão de um caso clínico. Soube na véspera que seríamos uns quinze ou vinte participantes. Isso foi útil para poder fazer cópias em espanhol do material clínico.

Um dia antes, ao ser perguntado sobre como seria o grupo, pouco sabia responder, e, de certo modo, contentava-me com isso. Dava a dimensão de aventura que eu buscava. Lembrei que na década de 80, em minha sociedade, a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (Rio 2), a dra. Rosa Beatriz Pontes de Miranda e o dr. Paulo Roberto Sauberman propuseram seminários clínicos com esse formato, onde apresentávamos o material da sessão sem mais qualquer informação biográfica ou historial clínico e construíamos juntos os seminários a partir do que cada um de nós imaginava. Foi uma experiência bem rica e talvez isso tenha se somado aos motivos que me animaram a aceitar a provocação do Ruggero.

Na véspera, porém, dei-me conta de algumas diferenças importantes entre as duas experiências e, diante da proximidade de seu começo, fiquei um tanto tenso e nervoso. Lá, com a dra. Rosa Beatriz e com o dr. Sauberman, éramos um grupo homogêneo, nos conhecíamos há bastante tempo (todos em formação e/ou pertencendo à mesma sociedade), e por isso compartíamos de um mesmo vocabulário; aqui não.

Lembrei de Rilke na Oitava Elegia a Duíno:

Tudo aqui é distância – lá

era alento. Depois da primeira

pátria, como parece a segunda

incerta e sem abrigo!

Pela manhã percebi que estava tenso. Será que conseguirei passar, para essas pessoas que nunca vi, o que aconteceu nas sessões, sem me apoiar em nenhum outro elemento que não a própria sessão? Parecerei autista a todos eles?

Começa a sessão. Sou informado que além de não acrescentar nada da biografia do paciente que pudesse encadear logicamente o material, eu nada poderia dizer durante todo o trabalho. Deveria ler a sessão e permanecer em silêncio durante todo o tempo da discussão: nenhuma explicação, nenhum esclarecimento, nenhuma retificação. Fiquei mais tenso ainda. Olhei para o Ruggero, um dos mediadores (soube quando começamos a sessão), para a Magda Khouri, amiga presente dentre os participantes, me assegurei de mim com o olhar da presença deles, e me acalmei o quanto pude. Mas permanecia a inquietação. Pedem-me para ler a primeira sessão. Imagino que a tensão tenha me desconectado por alguns momentos durante e leitura. Chego ao final da sessão. Bom, agora começam os comentários. Momentos difíceis. Sentia que os participantes, gente de vários países da América Latina, tinham dificuldades em conectar-se com o material. Alguns falavam da necessidade da tradução e dos ruídos e perturbações que essa necessidade implica. Ouviam a sessão em português e liam em espanhol, o que os obrigava a estarem constantemente traduzindo, o que por fim, diz um deles, repete o que em psicanálise estamos obrigados a fazer: traduzir uma língua estrangeira. "Bom começo", pensei eu, que não podia falar. Apesar disso, sentia que todos estavam cuidando de mim, como se tivessem pensado coisas muito duras e não teriam como dizê-las. Surge o primeiro comentário sobre a sequência do material na sessão. Saio da berlinda e me sinto reconhecido. Tocam, precisa ou imprecisamente, nas dificuldades e questões que vivi ao começar esse tratamento. Isso me acalma. Refazem sem o saber, os caminhos e descaminhos que marcaram o começo desse processo psicanalítico. Algo da sessão passou. Por não poder falar, tomo notas e assim reajo, corrijo, rebato, debato com o que os participantes associavam.

Pedem-me a segunda sessão. Leio mais pausadamente, menos tenso e mais convicto de que valia a pena o que estava vivendo. Afinal viera a Bogotá para isso. O processo de livre associação repete-se até levar o grupo à exaustão. No meio da tarde alguns falam que preferiam estar passeando. O grupo se silencia. Tenso. Exaurido. Reclamam do rigor da condução dos mediadores. Faltam elementos para pensar. Faltam lógica e razão. Foi para mim o momento de maior identificação com o grupo. Mais uma vez, percebia subitamente que o grupo refazia o mesmo caminho que eu fizera no processo com esse paciente, ou seja, depois de um primeiro momento onde tudo parecia tão claro e evidente, sugerindo interpretações tão óbvias quanto cultas e inteligentes, o grupo, assim como eu no convívio com o paciente, deprimia e sentia-se impotente ao esbarrar com a ineficácia de todas aquelas conjecturas. Pensei que eu também, por um longo ano, me senti gratificado e seduzido por tanta inteligência e cultura até me perceber, contratransferencialmente, vazio. Desejei ou compreendi que ali alguma coisa no grupo mudaria de caminho e lugar. Pausa para um café e na volta, pedem-me que leia a terceira sessão. A discussão, de fato, aconteceu de forma diferente. A regressão do paciente e a precariedade de seu funcionamento mental foram percebidas e várias questões acerca de como abordá-lo foram propostas. Eu estava perplexo. Tinha visto reproduzir-se na minha frente, bem diante do meu silêncio, todo o processo vivido por mim. Até mesmo com os erros de interpretação, e/ou descaminhos,percebia-me identificado. Senti-me profundamente satisfeito por notar que a experiência tinha sido passada. Transmitida. Conseguiria eu dizer ou explicar como? Ou isso se dá ao acaso, sem que possamos esboçar alguns dos limites onde esta transmissão se dá?

Esperei o dia seguinte com alegria. Imaginava que a sessão começaria em tom depressivo, afinal de contas trabalháramos intensamente durante todo o dia anterior e ouso até mesmo dizer que já formáramos uma pequena comunidade em torno das afinidades que íamos descobrindo. E, além disso, chegaria a hora de eu falar. De tanto anotar, pensei que teria muito a dizer, como se fosse compensar o tempo que ficara em silêncio.

No final da manhã de quarta-feira, a palavra me é concedida. Contrariamente ao que pensara, tinha apenas vontade de agradecer imensamente aos mediadores pela condução da experiência, aos colegas pelo fôlego e coragem com que dispuseram de suas fantasias e conhecimento e ler três poemas que me ocorreram durante o trabalho como forma de retribuição. Pareceu-me pouco, afinal tanto se empenharam no trabalho, que me senti na obrigação de dirigir uma palavra a cada um, comentando a propriedade do que me tinham dito, precisa ou imprecisamente. Era minha vez de resgatá-los das angústias do risco do autismo.

Ao final, lembrei-lhes um conto de Julio Cortazar (1976, p. 3), "La autopista del sur", que trata de um imenso engarrafamento na chegada de um final de semana prolongado em Paris. Carros desligados e espera são suficientes para que as pequenas urgências comecem a se mostrar: a água ou biscoito para uma criança com sede ou fome, um remédio para alguém que se sentia mal. Uma comunidade solidária rapidamente se forma em torno dessas urgências. As pessoas não tinham nome e sobrenome. Eram identificadas pelas marcas e cores de seus carros. Os laços afetivos se estabelecem e o engarrafamento se desfaz, e as pessoas se estranham ou desconhecem na esperança de chegarem logo em casa.

A sessão terminou. Mas a cada vez que nos encontrávamos nos corredores do congresso, um ar de cumplicidade se refazia, como se fôssemos amigos que não nos víamos há algum tempo e que ali nos reencontrávamos, depois do engarrafamento.

 

Referências

Cortazar, J. (1976). La autopista del sur. In J. Cortazar, Todos os fogos o fogo. São Paulo: Civilização Brasileira.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência

Miguel Calmon du Pin e Almeida
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
R. Carlos Gois, 375, 310 e 311, Leblon
22440-040 Rio de Janeiro, RJ
e-mail: mcalmon.trp@terra.com.br

 

[Recebido em 23.9.2010, aceito em 30.9.2010]

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ.