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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.3 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Compulsão à repetição: pulsão de morte "trans-in-vestida" de libido

 

Compulsión a la repetición: pulsión de muerte "trans-in-vestidura" de la libido

 

Repetition compulsion: death instinct "trans-in-vested" with libido

 

 

Ignácio Alves Paim Filho1

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

O autor tem por meta neste escrito repensar a compulsão à repetição. Toma como ponto de partida o seguinte interrogante: Compulsão à repetição: pulsão de morte ou tentativa de simbolização? Diante dessa questão, busca retificar o que julga ser equívoco, no sentido de propor que no processo da repetição "com+pulsão" estão implicadas a pulsão de morte e a pulsão sexual. Propõe que o que determina o destino em compulsão à repetição é a ineficácia da pulsão sexual para domesticar a pulsão de morte. Seguindo o caminho proposto por Freud, entende que a compulsão à repetição sofre uma dicotomia, fazendo surgir dois grupos: uma compulsão impulsionada pelo princípio do prazer e a outra impulsionada pelo além do princípio do prazer. Decorrente desse processo compreende que a pulsão de morte e sua manifestação clínica, via compulsão à repetição, vai ser a resultante do estar transvestida ou investida pela libido.

Palavras-chave: pulsão de morte; pulsão sexual; compulsão à repetição; investimento.


RESUMEN

El autor tiene por objetivo repensar la compulsión a la repetición. Toma como punto de partida la siguiente pregunta: ¿Compulsión a la repetición: pulsión de muerte o intento de simbolización? Ante esta densa cuestión, busca rectificar lo que juzga ser equívoco, en el sentido de proponer que en el proceso de repetición "Com+pulsión" están implicadas la pulsión de muerte y la pulsión sexual. Proponer lo que determina el destino en la compulsión a la repetición y la ineficacia de la pulsión sexual para disminuir la pulsión de muerte. Siguiendo el camino propuesto por Freud, entiende que la compulsión a la repetición sufre una dicotomía, haciendo surgir dos grupos: una compulsión impulsión dada por el principio del placer y otra impulsión dada por el más allá del principio del placer. Derivado de este proceso, comprender que la pulsión de muerte y su manifestación clínica, vía compulsión a la repetición, va ser la resultante del estar travestida o invertida por la libido.

Palabras clave: pulsión de muerte; pulsión sexual; compulsión a la repetición; investidura.


ABSTRACT

The author has as his objective, in this paper, the rethinking of repetition compulsion. He takes as a starting point the following question: Repetition compulsion: death instinct or attempt at symbolization? In face of this inquiry, he attempts to rectify that which he considers a misconception, in terms of proposing that in the process of repetition "com+pulsion" ("com" meaning "with", in Portuguese), death instinct and sexual pulsion (drive) are implied. The author proposes that what determines the destiny in repetition compulsion is the inefficiency of the sexual instinct in domesticating the death instinct. Following the path proposed by Freud, he understands that repetition compulsion presents a dichotomy, causing the emergence of two groups: a compulsion driven by the pleasure principle and another driven by beyond the pleasure principle. As a result of this process, he comprehends that the death instinct and its clinical manifestations, through repetition compulsion, will be the resultant of being trans-invested or invested with libido.

Keywords: death instinct; sexual instinct; repetition compulsion; investment.


 

 

Em uma análise, no entanto, uma coisa que não foi compreendida, inevitavelmente reaparece; como um fantasma inquieto, não pode descansar até que o mistério tenha sido resolvido e que o encanto tenha sido quebrado. (Freud, 1909, p. 129)

Este escrito foi motivado pela seguinte questão: Compulsão à repetição: pulsão de morte ou tentativa de simbolização?2 Temos aí uma pergunta, no mínimo, intrigante, marcada por uma complexidade metapsicológica, que nos anuncia a impossibilidade de responder a ela de forma perene. Contudo, penso que devemos ousar, especular, ou ainda, como diz Freud, em 1937, fantasiar metapsicologicamente, pois, segundo ele, sem isso não avançaremos em nossa ciência. Com isso em mente, façamos algumas considerações hipotéticas.

Refletindo sobre o nosso interrogante, surgem-me algumas indagações: a conjunção "ou", que tem caráter excludente, faz sentido? A pulsão de morte, por si só, se opõe ao processo de simbolização? Qual o lugar da pulsão sexual na compulsão à repetição? Parece-me que temos aqui os ingredientes necessários, muitas interrogações, para produzir ideias, que, espero, façam surgir um texto fecundo. Porém, antes de discorrer prováveis respostas a essas questões, penso ser necessário revisitar o pensamento freudiano sobre os conceitos de compulsão, de repetição e, por fim, a enigmática compulsão à repetição.

Compulsão é basicamente um conceito energético, remete à força da pulsão. Se a decompusermos, teremos o prefixo "com", que significa "aglutinar", "somar". Quanto ao nome "pulsão", sabemos que é pura intensidade, não tem qualidade, simplesmente pulsa em busca da descarga. Ao defini-la nesses moldes, estou ancorado na conceituação: "a pulsão como sendo o conceito fronteira entre o somático e o psíquico" (Freud, 1911/1969e, p. 99). Portanto, de maneira sucinta, podemos dizer que compulsão é uma pulsão com mais intensidade, a apresentação, por excelência, de um fator econômico. Essa "com+pulsão", quando investida em uma inscrição psíquica, determina uma trilha a ser seguida, os destinos que levam à repetição.

A repetição, fenômeno constitutivo e constituinte do aparelho psíquico clama para ser pensada no seu vínculo indissociável da "com+pulsão" ou "com-pulsão". Entretanto, há que diferenciar o fator econômico (intensidade da pulsão) do fator dinâmico e topográfico, que remetem às inscrições psíquicas. Antes, porém, lancemos um olhar para o conceito linguístico da repetição. Repetição remete à ideia de fazer de novo, reprodução do idêntico, repetir uma ação. Como vemos, nesse sentido, a repetição não teria espaço para o novo. Assim sendo, vejamos como a psicanálise pensa essa função de repetir uma ação e ou repetir em ação.

A noção de repetição remete à própria origem da psicanálise. Encontramos uma espécie de marca inaugural desse fenômeno na ideia de facilitação (Bahnung), explicitada no Projeto (Entwurf) de 1895. Temos então postulado que a circulação da energia se faz preferencialmente pelas vias mais investidas, ou seja, mesmo resistentes à passagem, levando à tendência de percorrer o mesmo caminho. Com isso, a facilitação passa a estar implicada no processo da memória, essa definida por Freud como diferença entre as facilitações. Portanto a memória, produto do diferencial das facilitações, está vinculada, de um lado, ao fator econômico e, de outro, ao fator dinâmico através da experiência primária de satisfação, criadora do estado de desejo, que nos diz que toda a repetição busca percorrer as trilhas já conhecidas, que propiciem um possível reencontro com essa satisfação mítica de nossas origens.

Freud, em conexão com esse princípio, em 1900 e nos textos metapsicológicos de 1915, nos ensina que o desejo é a mola propulsora do psiquismo. Assim sendo, o princípio do prazer, mobilizado pelo desejo, busca o reencontro com a vivência primária de satisfação. Se pensarmos que a psique tem seu móbil na força pulsante do reencontro, temos posto que a repetição é algo constitutivo da própria essência do aparelho psíquico. Evidentemente, o desejo, ao ser interditado pela força negativadora do recalque, obriga o inconsciente a negociar com o pré-consciente (condensação e deslocamento), o que determina que a busca da gratificação seja, desde sempre, determinada pela matriz fundante do desejo, fazendo dos caminhos, do à posteriori (nachträglichkeit), ramificações desse originário.

A própria história do recalque, fundante do inconsciente recalcado, nos seus três tempos, vai se fazer acontecer devido à força de repetição do desejo recalcado primariamente (primeiro tempo). O recalque propriamente dito (segundo tempo) instala-se para reforçar a proibição do recalcado vir à tona, enquanto o retorno do recalcado (terceiro tempo) é a repetição transformada da busca de satisfação do desejo proibido, que, como sabemos, ganha manifestação nos sintomas, sonhos, transferência, atos falhos. Podemos afirmar que o retorno do recalcado é marca por excelência da dinâmica repetidora do aparelho psíquico. Ponderando esse processo na analise temos subsídios para sustentar o seu caráter interminável, por que o ser humano é portador de um processo interminável de repetição.

Diante disso, compreendemos que a repetição freudiana tem a característica ímpar de estar assentada sobre o arcaico (memória), com potencialidades de investi-lo pelo novo, uma vez que é produto de um trilhamento, que por sua vez, é uma trama de percurso facilitado em um sentido e dificultado para outros. Essa trama pelo caminho mais impermeável é passível de reordenamento de tempos em tempos, balizada por novos nexos. Seguindo esse raciocínio, podemos dizer que as estruturas psíquicas têm seus destinos marcados pela resultante do trânsito de uma repetição que se dê entre a força conjuntiva do pretérito e o potencial disjuntivo do presente. Com isso posto, temos subsídios para postular, de forma hipotética, que a repetição terá como indicador psicopatológico o seu caráter maior o menor de compulsão.

Após essas divagações sobre a compulsão e a repetição, vejamos como se vai estruturar a sua composição na compulsão à repetição. Esse conceito, de forma cabal, vai ser apresentado, em 1914, no artigo "Recordar, repetir e elaborar". Freud, mobilizado por sua clínica, centrado nas manifestações do retorno do recalcado, em especial a transferência, vai se apercebendo desse fenômeno, que se caracteriza pela impossibilidade de o sujeito recordar, tendo que repetir. Lembrando que toda repetição opera como resistência, que está a serviço do recalcado, que negocia, mas nunca renuncia à busca da satisfação do desejo.

Mas essa repetição tem uma presença marcante, uma intensidade que faz com que ganhe o adjetivo de compulsão. Nesse momento, para Freud, o psiquismo é regido pelo princípio do prazer versus o princípio da realidade, sendo a busca do prazer a grande meta das representações desejantes da pulsão sexual. Com essa premissa constituída, mais a ideia de pontos de fixação da libido, no decorrer do desenvolvimento libidinal, tem-se estabelecido que a compulsão à repetição é produto da história erótica de cada sujeito. E está comprometida com a busca do prazer, visando reviver o que foi gratificante em algum momento do passado esquecido. Portanto, essa compulsão à repetição está a serviço do princípio do prazer, calcada no processo primário, e temos um bom exemplo desse processo na narrativa que Freud nos forneceu do caso do "Homem dos lobos", que é contemporâneo a esse trabalho de 1914.

Visando não perder de vista a evolução do pensamento freudiano, observamos um silêncio de cinco anos, até que, nos meados de 1919, Freud retoma suas preocupações com a compulsão à repetição. Esse final da década será o marco pioneiro de uma verdadeira reviravolta na sua concepção dessa manifestação clínica, que terá ao seu ápice em 1920, em "Além do princípio do prazer", e sua finalização em 1924, em "Problema econômico do masoquismo".

Para dar o passo primeiro dessa virada exploratória, irá se reocupar, em 1919, de um texto que começou a escrever em 1913, "O estranho" (Das Unheimliche)3. Nesse artigo nos encontramos com as inquietudes do criador do conceito de pulsão, com uma repetição mais primitiva, que o faz refletir sobre a possibilidade do caráter repetitivo da própria pulsão. É por meio da sensação de estranhamento que Freud vai se valer para postular uma forma peculiar do retorno do recalcado, marcado pelo horror, pelo assustador produto de algo conhecido/familiar (heimlich) e ao mesmo tempo desconhecido (não familiar). Passando o estranho a ser considerado uma manifestação que guarda íntima relação com o repetir "com+pulsão". Com isso em mente, começa a se delinear no texto freudiano a ideia de uma compulsão à repetição não vinculada ao princípio do prazer. Escutemos seu pensar:

Pois é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma "compulsão à repetição", procedente dos impulsos instituais [pulsionais]4 e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos [pulsões] – uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco. (Freud, 1919/1969c, p. 297).

Ao mesmo tempo, que encerrava o trabalho sobre O estranho, Freud começa a escrever o "Além do princípio do prazer", que estará concluído em julho de 1920. Nesse artigo, segue dando sequência às suas preocupações com a compulsão à repetição. Talvez pudéssemos aventar a possibilidade de que o "retorno" de Serguei Pankejeff para tratamento (1919/1969c), com uma repetição que põe em xeque as leis que sustentam a hegemonia do princípio do prazer, tenha sido um fator a mais para que Freud avançasse e postulasse o conceito de pulsão de morte e da sua inter-relação com o traumático e a compulsão à repetição.

Esse momento vai marcar a história desse conceito e através dele Freud vai propor um novo modelo metapsicológico para pensar a gênese da compulsão à repetição, tendo ela sua origem no trauma, em impressões psíquicas precoces, decorrentes do caráter demoníaco da pulsão de morte. Diante desse novo contexto, vamos nos haver com uma repetição do que nunca foi prazeroso para o sujeito; e aqui já não se trata do velho aforismo freudiano: "pois é ao mesmo tempo desprazer para um sistema e prazer para outro" (Freud, 1920/2006, p. 145). Trata-se de algo inédito, uma repetição da vivência de dor, e o que era, até então, motivo de repulsa, vira pólo de atração. Eis aí o que literalmente encontramos nesse texto de 1920:

O fato novo e impressionante que iremos descrever em seguida é que a compulsão à repetição também5 faz retornar certas experiências do passado que não incluem nenhuma possibilidade de prazer e que, de fato, em nenhum momento teriam proporcionado satisfações prazerosas, nem mesmo para as moções pulsionais recalcadas naquela ocasião do passado. (Freud, 1920/2006, p. 145)

A partir desse trabalho está estabelecida uma dicotomia da compulsão à repetição, que o advérbio "também" revela. De um lado, temos uma repetição governada pelo princípio do prazer, centrada na força do desejo, a partir dos pontos de fixação; e, de outro, temos uma repetição do que nunca foi prazeroso, centrada na força do traumático.

Essa afirmação evoca uma pergunta: como explicar, à luz da teoria pulsional pós 1920, a possibilidade da vigência desses dois universos da repetição? Antes de tecer uma possível resposta a essa indagação, penso ser necessário reafirmar: parto do princípio de que a função da pulsão sexual é domesticar, enlaçar a pulsão de morte, sendo a resultante dessa interação, a responsável pelos destinos pulsionais que tramitam da repetição à compulsão a repetição. Recordando, que a repetição estruturante (com potencial cambiante) do aparato psíquico é produto de uma adequada sintonia entre a ruptura (pulsão de morte) e a síntese (pulsão sexual).

Vejamos que rumo podemos dar à pergunta feita acima. Postulo que a compulsão à repetição do prazeroso é produto de um excessivo investimento da pulsão sexual na pulsão de morte, determinando uma fusão que remeteria a completude. Sendo assim, teríamos uma psicopatologia decorrente do excesso de gratificação sexual, onde a pulsão de morte ficaria neutralizada, não exercendo sua função disruptiva. Quanto à repetição do além do princípio do prazer, penso na pulsão de morte não investida da pulsão sexual, mas, sim, transvestida pela libido, que a aprisiona, mas não cumpre a função de domesticá-la. Temos então a força pulsante da pulsão de morte impossibilitada de criar novos caminhos, e o destino que lhe resta é seguir gravitando em torno de seu carcereiro. Lançando um olhar para a cultura, podemos fazer uma analogia interessante com o nossa sistema prisional. Nele encontramos, via de regra, sujeitos presos, restritos em sua liberdade (transvestidos de libido); porém, o trabalho de transformação que deveria ser propiciado pelo agente interditor não ocorre (não há um adequado investimento libidinal). Quando se dá a liberação carcerária, normalmente nos deparamos com sujeitos que voltam a transgredir, diríamos, a repetir de forma compulsiva, encenando o desígnio mítico de que vive sobre a centelha do "eterno retorno do mesmo" (Freud, 1920/2006, p. 147).

Tendo como perspectiva a montagem acima, sobre a enigmática compulsão à repetição, reflitamos como podemos articular algumas respostas para perguntas do início do nosso texto. Recordemos nossas indagações: a conjunção "ou", que tem um caráter excludente, faz sentido? A pulsão de morte, por si só, se opõe ao processo de simbolização? Qual o lugar da pulsão sexual na compulsão à repetição? Acredito que a conjunção alternativa "ou" está sendo usada de forma equivocada, e o mais adequado seria a conjunção aditiva "e". A pulsão de morte deve ser compreendida como força pulsional não enlaçada, não ligada, que está nas origens do sujeito psíquico e não tem qualidade, não está subordinada à função ordenadora do aparelho psíquico. Vejo-a como pura potencialidade de um devir que vai ser determinado pela capacidade de ligação da pulsão sexual. Ao nos reportarmos ao princípio disruptivo da pulsão de morte, podemos especular seu potencial para fazer surgir o novo, por esse viés o criativo6.

Seguido por essas facilitações rememoro Freud, quando nos propõe a função ligante da pulsão sexual, o quanto Eros está comprometido com o manter o status quo: "provavelmente o anseio de Eros em agregar a substância orgânica em unidades cada vez maiores talvez funcione como um substituto para essa suposta "pulsão de atingir a completude" (Freud, 1920/2006, p. 165).

Se assim o for, seria a libido a protagonista da repetição da compulsão? Proponho que sim, tendo por escopo o proposto acima, que a pulsão sexual, ao falhar no seu trabalho de domesticar a força tanática da pulsão de morte, o traumático, deixa o sujeito entregue ao que Freud chamou, em 1920, de compulsão de destino ou, ainda, neurose de destino. Ao levantar essa hipótese, penso no texto freudiano de 1924, "O problema econômico do masoquismo", em que temos proposto o lugar do masoquismo original na constituição do sujeito. Entendo que esse masoquismo é a própria apresentação da pulsão de morte aprisionada, mas, enfatizo, não domesticada pela pulsão sexual.

Contudo, haveria uma parcela da pulsão morte que não teria participado dessas transposições. Ela teria permanecido dentro do organismo, e lá, com ajuda da solidariedade excitatória sexual, teria sido fixada libidinalmente. Ora, é essa parcela fixada que denominamos masoquismo original e erógeno (Freud, 1924/2007b, p. 109).

Acompanhando o pensar de Freud, no decorrer desse texto de 1924, vejo o masoquismo original como produto do primeiro encontro da pulsão de morte pela libido e do quanto a sua resultante vai ser um fator de relevância no desenvolvimento da psique: "ao surgir, a libido teria encontrado a pulsão de morte – ou de destruição – já predominando nos seres vivos" (1924/2007b, p. 109). Logo em seguida, textualmente, relata o lugar desse masoquismo no desenvolvimento libidinal: "O masoquismo erógeno teria participado de todas as fases evolutivas da libido, extraindo delas suas variadas e cambiantes roupagens psíquicas" (1924/2007b, p. 110). No trabalho citado, encontramos também considerações sobre as outras duas formas de masoquismo que derivam desse original: o masoquismo feminino, no sentido da passividade, e o masoquismo moral, ligado ao Supra-Eu que se manifesta pela necessidade de punição. É importante sublinhar que, nesse texto de 1924, não há menção à compulsão à repetição. Contudo, entendo que, em especial, o masoquismo moral, enquanto derivado do masoquismo original, está intimamente relacionado ao caráter imperativo da compulsão à repetição. O indivíduo repete de forma compulsiva desígnios alheios – no sentido de desprazer para o sujeito e prazer para o objeto – que sofre uma transformação no contrário; passando de vítima para algoz, portanto, faz vigente que todo crime merece um castigo. Nesse sentido, trago a lembrança, Freud (1923/2007a, p. 45), com o seu imperativo categórico: "farás". Quanto ao masoquismo feminino, especulo que esteja mais vinculado à compulsão à repetição que é regida pelo princípio do prazer, que como sabemos apresenta um menor grau de dessexualização, em relação ao masoquismo moral.

Reportando-me ao pensar freudiano de 1924, retomo suas palavras: "Variadas e cambiantes roupagens psíquicas do masoquismo erógeno" – eis uma frase que pode expressar- se em nossa temática – as vicissitudes da repetição. Visando dar maior consistência à proposição desenvolvida no desenrolar deste escrito, proponho a seguinte roupagem metapsicológica para os caminhos e descaminhos do pulsional: o masoquismo original, com sua força pulsante, seria a fonte a partir do qual teríamos os destinos da repetição, de acordo com a capacidade de metamorfose da pulsão sexual sobre a pulsão de morte. Compreendo, que a solidariedade excitatória sexual (S.E.S.)7, será o agente determinante desses rumos a serem percorridos pela demanda pulsional. Nesse sentido, sinteticamente podemos reafirmar: temos a repetição cambiante produto de uma adequada sintonia entre as forças pulsionais disjuntivas e conjuntivas, uma boa S.E.S; a compulsão à repetição do princípio do prazer, investimento da força conjuntiva da pulsão sexual (P.S) sobre a pulsão de morte, excesso da S.E.S; e a compulsão à repetição do além do princípio do prazer, a força disjuntiva da pulsão de morte (PM) tranvestida pela pulsão sexual, déficit da S.E.S. Dentro dessa perspectiva, com pretensões didáticas, sugiro a seguinte diagramação:

 

 

Quanto maior ligação e menor intercâmbio pulsional, mais estaremos na esfera de uma compulsão à repetição a serviço do princípio do prazer, nela encontramos uma quase morte da pulsão de morte – "pulsão de atingir a completude"? Encontramos uma ilustração desse processo num aspecto do caso clínico do "Homem dos lobos", que diz respeito às características das suas escolhas objetais e que vai se repetir no padrão de buscar envolverse com mulheres com recursos intelectuais, econômicos e sociais inferiores aos seus. Esse processo culminou com o seu casamento com Teresa, que foi sua enfermeira em uma das suas internações, logo após o término da sua primeira análise com Freud. Provavelmente, esse percurso está associado às experiências de sedução infantil vividas com a irmã (masoquismo feminino), mais velha e brilhante, a predileta do pai (transformação no contrário: vive ativamente o que sofre passivamente).

O outro destino, de uma compulsão à repetição do não prazeroso, significa uma defusão pulsional, algo ligado infimamente, que, como dissemos, contém a pulsão de morte, mas não a modifica, decorrente de uma frágil "solidariedade excitatória sexual". Para considerarmos essa situação, podemos exemplificá-la com outro aspecto do "Homem dos lobos", posterior ao tratamento com Freud. Em fevereiro de 1924, o paciente começou a ter estranhos pensamentos sobre seu nariz; esse foi um fato determinante para que procurasse tratar-se com Freud pela terceira vez, em 1926. Nessa ocasião, foi encaminhado para a psicanalista Ruth Brunswick.

Em função, do mal-estar com o que proliferava em seu nariz foi em busca de inúmeros dermatologistas que fizeram vários procedimentos, devido a episódios de buracos e/ ou glândulas obstruídas, que finalizaram com cicatrizes definitivas em seu nariz. Podemos especular que, faz essa busca mobilizado pela compulsão à repetição, permeado por uma necessidade de punição (masoquismo moral), para sofrer no próprio corpo a castração. Cabe ressaltar que um ano antes sua mãe havia apresentado uma verruga sobre o nariz, recusando-se a extirpá-la (estaria perpetuando a ideia da mãe fálica?). Evoco a possível gênese dessa repetição na experiência traumática vivida com a serviçal Grusha, depois com sua babá Nanya (deslocamento da figura materna), com quem viveu as ameaças da castração que culminaram na alucinação do dedo cortado.

Essas ilustrações nos falam da repetição e da sua característica de ser uma implacável resistência, que, como assinalou Freud em 19338, é uma resistência do Id9, que encontra no Supra-Eu um aliado, por albergar as mais primitivas identificações, que são originarias do Id. Por essa vertente o Supra-Eu ao exercer o seu poder de coerção sobre o Eu, impelindo-o a seguir seus desígnios, privilegia as demandas do Id em detrimento dos interesses do Eu. Assim sendo, compreendo, em termos topográficos, que a compulsão à repetição a serviço do princípio do prazer é uma forma de apresentação da resistência do inconsciente recalcado, enquanto a compulsão à repetição do além do princípio do prazer é uma resistência do inconsciente não recalcado.

Como disse no início de minhas reflexões, explorar respostas sobre a complexidade da compulsão à repetição é vislumbrar o pensável e o impensável. Essa manifestação clínica e seus desdobramentos metapsicológicos cumprem, entre outras funções, a função de nos reconectar com a transitoriedade do nosso saber. Contudo, essa repetição "com+pulsão" urge por ser pensada na sua inter-relação com a pulsão de morte versus a pulsão sexual. Não esquecendo que a pulsão de morte, antes de tudo, é a própria pulsão, o substantivo morte, inespecífico por natureza, vem para ressaltar o caráter indomado de uma força que persiste e insiste, como um fundo, além da ordem, em todo o indivíduo. Essa pulsão tem a fonte no soma, sua força é pura intensidade, tem como meta a descarga, e não a satisfação, pois, diferentemente da pulsão sexual, não tem objeto. Sendo assim, podemos inferir que a pulsão de morte é cega e que, ao ser enlaçada pela pulsão sexual, essa lhe dará o rumo a ser seguido.

Portanto, é imprescindível que sigamos conjeturando sobre essa problemática, tendo como meta desconstruir a ideia equivocada de que a pulsão de morte, por si só, é a vilã dos processos psicopatológicos. A pulsão de morte, ao pulsar via compulsão à repetição, cria uma possibilidade de ser escutada, e decorrente desse encontro, pode vir a ser capturada pela malha representacional. Esse acontecer viabiliza uma integração desse traumático (fantasma inquieto), que está nas origens da repetição "com+pulsão", na dinâmica psíquica. Ocorrendo esse processo, temos estabelecido os pré-requisitos para que o não simbolizável possa vir a ser simbolizado. Com isso posto, podemos conjecturar que o encanto do fantasma inquieto foi quebrado, o mistério desvelado, o desconhecido fez-se parcialmente conhecido.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Ignácio Alves Paim Filho
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA Centro de Estudos Psicanalítico de Porto Alegre CEPdePA]
Rua Felipe Néri, 457/401
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[Recebido 9.4.2010, aceito 7.5.2010]

 

 

1 Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre – SBPdePA. Membro pleno do Centro de Estudos Psicanalítico de Porto Alegre CEPdePA.
2 Ressonâncias do XXII Congresso da FEBRAPSI, 2009.
3 Remetemos o leitor ao artigo "Unheimlich: um estrangeiro iluminando a escuridão" (Paim et. al., 2009). Nesse texto os autores trabalham os derivativos dessa proposta estética de Freud.
4 Os comentários entre colchetes são do autor.
5 Itálicos do autor.
6 No artigo o "Pulsar da pulsão e os enigmas da criação", os autores (Paim e Frizzo, 2008) trabalham a ideia da pulsão de morte como potencialidade de desfazer conexões e com isso viabilizando novas ligações para a pulsão sexual.
7 Paim et al. (2010), trabalham a idéia da criação de um conceito metapsicológico: a solidariedade-excitatóriasexual.
8 Nesse trabalho, Freud descreve as resistências do: Eu – transferência, recalque e o beneficio secundário da doença; e do Supra-Eu – necessidade de punição.
9 Devemos estar atentos que o Id é composto pelo inconsciente recalcado e pelo inconsciente não recalcado.