SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 número3O dia a dia de um psicanalista Teorias fracas. Teorias fortesMetalepse ou a retórica da interpretação transferencial índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.3 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

O masoquismo masculino nos sujeitos: a repetição inconsciente1

 

El masoquismo masculino en los sujetos: la repetición inconsciente

 

The masculine masochism in subjects: unconscious repetition

 

 

Felipe Lessa da Fonseca2

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

O masoquismo nos homens é refletido tendo em vista a compulsão à repetição que, nas neuroses obsessivas, pode ser caracterizada para além do sentimento inconsciente de culpa, tal como Freud o descreveu. Diferente das fantasias de castração do masoquismo feminino, o masoquismo masculino implica o narcisismo fálico dos sujeitos que teimam em escolhas de cujo mal-estar tem pressentimento. A despeito da vergonha causada pela suposição do olhar dos outros, o prazer envolvido na atitude autodestrutiva de muitos homens configura a possibilidade de um estilo rude e falacioso na posição amorosa masculina. Como exemplo apresenta-se o caso de uma jovem mulher.

Palavras-chave: masoquismo; masculino; compulsão à repetição; teimosia.


RESUMEN

El masoquismo en los hombres se refleja teniendo en vista la compulsión a la repetición que, en las neurosis obsesivas, puede ser caracterizada fuera del sentimiento inconsciente de culpa, tal como Freud lo describió. A diferencia de las fantasías de castración del masoquismo femenino, el masoquismo masculino implica el narcisismo fálico de los sujetos que insisten en elecciones de las que anticipan un malestar. A pesar de la verguenza causada por la suposición de la mirada de los otros, el placer envuelto en la actitud autodestructiva de muchos hombres configura la posibilidad de un estilo rudo y falaz en la posición amorosa masculina. Como ejemplo, se presenta el caso de una joven mujer.

Palabras clave: masoquismo; masculino; compulsión a la repetición; obstinación.


ABSTRACT

Masochism in men is reflected in view of the repetition compulsion that, in obsessive neuroses, can be characterized beyond the unconscious feeling of guilt, as described by Freud. Different from the castration fantasies of feminine masochism, masculine masochism implies the phallic narcissism of subjects who persist in choices in which the malaise is foreseen. Despite the shame caused by the supposition of the look of others, the pleasure involved in the self-destructive attitude of many men configures the possibility of a rude and fallacious style in the man's position in love. As an example, a case of a young woman is presented.

Keywords: masochism; masculine; repetition compulsion; stubbornness.


 

 

A compulsão à repetição é um mecanismo psíquico; a teimosia, um sentimento... Reduzida a seus termos mais gerais, a teimosia é uma paixão vazia. Ela busca negar todo estado passional e, por extensão, a própria subjetividade. (Herrmann, 1997, p. 196)

O tema do masoquismo no ser humano tem uma desagradável abrangência, bem maior do que muitas vezes gostaríamos de supor. Um estudo completo sobre o problema do masoquismo teria de levar em conta algumas das grandes questões éticas da humanidade. Poder-se-ia abordar questões relativas às aproximações possíveis do prazer ao mal, à sujeição, à autodestrutividade, à servidão voluntária e, mesmo, à supremacia da natureza em relação aos homens. O masoquismo é, portanto, um grande problema ligado à existência e à origem da subjetividade humana, porém, nos focaremos apenas em algumas questões psicanalíticas sobre o assunto. O que vamos ver neste artigo reflete o desenvolvimento de uma vertente da minha tese de doutorado intitulada Reflexões ético-estéticas do masoquismo, realizada na PUC-SP em 2004. Embora já tenha se passado algum tempo, acredito que a reflexão sobre a classificação dos tipos de masoquismo nos sujeitos continue atual e pertinente. Assim, observando as relações sociais, éticas e estéticas, entre as mulheres e os homens, analisaremos a categoria de masoquismo masculino, atentando à importância da compulsão à repetição em relação à culpa, à vergonha e às fantasias de castração.

A maioria das questões psicanalíticas sobre o masoquismo, de um modo ou de outro, envolve os problemas éticos trazidos pela noção de pulsão de morte, particularmente no que toca às relações entre o prazer e a destrutividade, ou melhor, a autodestrutividade. A própria ideia de a pulsão dirigir-se para a morte já sugere uma força suicida ou masoquista. Assim, o problema do masoquismo situa-se no cerne da inclinação letal da pulsão, em que a tendência da pulsão a exaurir-se na satisfação, o pendor a cumprir-se no encontro com objetos que aliviem sua tensão, como diz Freud (1981a/1920, p. 2526), indica a inclinação humana ao retorno a um estado prévio e inanimado, satisfeito e imóvel. Na constante busca de um prazer total, cada impulsão vivida pelo sujeito extingue-se parcialmente em seu fim, muitas vezes aproximando-se dos limites do princípio de prazer. Neste movimento, as pulsões do sujeito encontram diferentes formas possíveis de gozo, algumas autodestrutivas, outras não, mas todas sempre, enquanto se estiver vivo, revestidas pela sensualidade e pelas disposições vitais do sujeito, no âmbito da economia estética dos prazeres, influindo na formação do estilo particular de ser de cada um.

Embora todas as formas de gozo masoquista tendam a romper com o princípio de prazer, enquanto a pulsão de morte não se consumar definitivamente, a problemática éticoestética dos sujeitos estará viva, e como veremos, engendrará sentimentos inconscientes de culpa e de vergonha, permitindo-nos a discussão sobre diferentes formas de classificar o masoquismo. De acordo com Freud, podemos reconhecer pelo menos cinco formas de adjetivar o masoquismo nos sujeitos; são as conhecidas noções de masoquismo primário e secundário, masoquismo erógeno (condição do erótico), masoquismo moral e feminino. A esses predicados juntaremos mais dois: o estético e o masculino, os quais terminam de descrever a gramática do masoquismo, ou seja, os sentidos possíveis em torno do masoquismo, tal como podemos pensá-lo na psicanálise.

Seja na frequência contemporânea de traços claramente obsessivos nas mulheres, ou no descaramento da repetição compulsiva e autodestrutiva própria à dinâmica de tantos homens, a experiência masoquista destes sujeitos pede que passemos em revista as distinções deste fenômeno. Nesta perspectiva cabe indicar a forma pela qual o masoquismo apresenta-se com mais evidência entre os homens, focando o perfil da teimosa insistência masculina no pior, o qual, entretanto, configura-se também entre as mulheres. Assim, por meio de um exemplo de repetição inconsciente iremos caracterizar aquilo que se pode chamar de masoquismo masculino. Adjetivar o masoquismo de masculino, em termos psicanalíticos, não significa dizer que ele só ocorra nos homens, mas ao mesmo tempo nos faz lembrar o quão simples e frequente são as formas da determinação autodestrutiva do masoquismo entre os homens.

 

O adjetivo masculino do masoquismo

É intrigante o fato de a moral moderna ter atribuído tão fortemente o masoquismo às mulheres quando nos textos de Sacher-Masoch, e em boa medida também nos textos do Marques de Sade, os homens são na maior parte das vezes os masoquistas e as mulheres são as sádicas. No plano das neuroses, com um pouco mais de observação e com um pouco menos preconceito, também podemos reconhecer o aspecto masoquista da compulsividade obsessiva masculina. A insistência dos cabeças-duras, a perseverança cega, a repetição de gestos inúteis e de escolhas sabidamente piores, ou as posições tinhosas, as cismas e as implicâncias desgastantes, tudo isso parece dizer respeito a um embrutecimento do desejo. Esse estilo duro, seco e maquinal do desejo acontecer, tantas vezes assim figurado entre os homens, faz o sujeito repetir-se nas mesmas formas de gozar.

Convencido de sua razão, o macho turrão não cede em suas posições mesmo quando o mundo lhe mostre seu erro. Sem fugir às regras pelas quais ele supõe suas certezas e, entregue à sua confiança, volta àquilo que lhe faz sofrer. O sadismo masculino parece sofrer um efeito ricochete. As fantasias infantis sobre a perfeição e onipotência paterna ecoam entre os sentimentos masculinos ligados à paternidade, porém hoje em dia, visto o sucesso e o poder profissional feminino, a pretensão onipotente e as fantasias de dominação mais do que nunca fazem parte do universo feminino. A mulher obsessiva reproduz a cilada sadomasoquista masculina. Assim, é nesse ponto que, diante do outro, opera a culpa da impotência e a vergonha da imperfeição, as quais por uma exigência compulsiva de seus ideais penitenciam homens e mulheres em uma espécie de cilada inconsciente quase indestrutível.

Entre a feminilidade e o masoquismo pode-se discutir a capacidade das mulheres suportarem a dor física das menstruações, dos partos e das primeiras penetrações, e daí, a posição aparentemente passiva da mulher no ato sexual e a sua condição de castrada segundo a lógica fálica. A vulnerabilidade feminina encontra-se em quase toda sua história e em muitos aspectos pouco mudou até hoje. Em que pesem as melhores considerações feministas, como se pode ver, muitos são os motivos que podem ter levado Freud (1924) a considerar a disposição às fantasias de castração – em "O problema econômico do masoquismo" – como base de um masoquismo que chamou de feminino. Hoje ainda se vê na cultura vários elementos que sugerem uma relação entre o masoquismo e a mulher. Além da tradição conjugal machista que, ainda como um ideal, submete a mulher ao homem, à ideia de que a mulher deva depilar-se, fazer ginásticas localizadas, dietas, cirurgias plásticas, ir o cabeleireiro por horas, usar saltos difíceis etc., são elementos masoquistas da condição social e estética feminina. Na época de Freud havia ainda outros costumes do gênero: os apertados espartilhos, as pesadas anáguas, golas e meias quentes etc.

Em A sujeição das mulheres, Stuart Mill (1869/2006) publicara uma crítica contumaz à condição social e jurídica das mulheres, entretanto, pouco depois, em 1886, Krafft-Ebing (p. 227) ainda dizia que "na mulher uma inclinação a subordinação ao homem... é em certo grau uma manifestação normal" e, em seguida ponderava que, embora os "instintos de sujeição, no sentido do masoquismo feminino, sejam bastante frequentes", poucos casos de masoquismo erótico feminino são vistos pelos médicos, pois os costumes e a cultura reprimiriam nelas a manifestação do aumento patológico do tal instinto de sujeição. Krafft-Ebing (1886/1965, p. 223) acreditava que os "costumes e a modéstia" intrínsecos "na mulher constituem obstáculos naturais" contra a expressão do impulso sexual perverso, e ainda afirmava que a prova disso seria a ausência quase total de casos cientificamente relatados. Ora, se há um "instinto de sujeição" ele existe em todo ser humano.

Seja como for, tudo indica que o masoquismo sexual feminino é menos frequente. Contudo, o masoquismo feminino possui uma acepção mais ampla que opera entre a fantasia e a cultura, entre a castração, a moral e a estética. As fantasias de castração do masoquismo feminino têm implicações específicas para sexualidade da mulher, embora tenham implicações subjetivas para todos – voltaremos neste ponto mais adiante. Por outro lado, na figura do masoquismo amoroso ressoa a imagem dos homens apaixonados, encantados e subservientes, ajoelhados aos pés da amada. A mulher é a figura ativa, a imperatriz sádica e dominadora. Nas práticas sexuais sadomasoquistas, na maioria das vezes, é o homem que ocupa a posição do masoquista do par perverso. Krafft-Ebing (1886/1965, p. 227) também observou que "o masoquismo masculino é indubitavelmente frequente". Embora negligenciado, o masoquismo erótico masculino parece ser evidente, pois um século mais tarde, abordando o mesmo aspecto da questão, o Diagnostic and Statistical Manual (A.P.A., 1994, p. 524) indica a prevalência masculina no "Masoquismo Sexual, em que a proporção entre os sexos está estimada em 20 homens para cada mulher".

Aquém das práticas sexuais ditas parafílicas, o masoquismo masculino poderia ser facilmente associado ao masoquismo moral, em oposição ao masoquismo feminino, pois as exigências inconscientes de castigo, típicas das neuroses obsessivas, são tradicionalmente associadas aos homens. Contudo, à diferença do masoquismo moral, o que procuramos enfatizar aqui é o caráter repetitivo das piores escolhas masculinas, de sua insistência ignorante na eleição daquilo que lhe faz sofrer. Trata-se de uma atitude neurótica que não exclui os sentimentos inconscientes de culpa, mas que à semelhança da prevalência masculina no masoquismo sexual, apresenta-se como um gesto bastante comum entre os homens. Diremos aqui que, enquanto forma de repetição de escolhas autodestrutivas, a atuação da compulsão masculina representa ao mesmo tempo um complemento e uma diferença em relação à obsessão dos pensamentos neuróticos que carregam a culpa inconsciente.

Seguindo Freud, a psicanálise tem tradicionalmente refletido sobre as seguintes dualidades envolvidas no problema do masoquismo: sadismo-masoquismo, ativo-passivo, moral-feminino, obsessão-histeria. Entretanto, para que possamos tirar o melhor proveito clínico que esta reflexão oferece, tenho insistido que ao significante moral do masoquismo corresponde outro estético e que, ao sentimento inconsciente de culpa corresponde o sentimento inconsciente de vergonha, como dispositivo homólogo à necessidade inconsciente de castigo. Assim, as dualidades em jogo também podem ser pensadas segundo as antinomias: moral-estético e culpa-vergonha. O masoquismo estético como sentimento inconsciente de vergonha foi precisamente minha tese de doutoramento, a que me referi no início deste artigo. Lá, procurei mostrar que se a vergonha da castração pode facilmente associar-se à mulher, o masoquismo estético arma-se na suposição dos jogos de olhar seja nas mulheres ou nos homens. Porém, a lógica dos predicados do masoquismo pede ainda que exploremos melhor o binômio: masculino-feminino. Neste sentido, o que procuro frisar aqui é que o adjetivo masculino do masoquismo, por sua vez, alinha-se à série relativa à moral, à culpa, à atividade e à obsessão, implicando diretamente a reversão do sadismo contra o próprio sujeito, mas, sobretudo, implicando a atividade imperativa e a repetição de suas pulsões sobre objetos e/ou circunstâncias que lhe causam mal-estar.

A ideia de que o masoquismo implique a passividade nos pareceria evidente. Krafft- Ebing ao propor a noção de masoquismo comentou que Dimitri Von Stefanowsky, em 1891, falava em passivismo. Entretanto, para psicanálise, a total passividade masoquista só faz sentido quando falamos de uma disposição originária do masoquismo, anterior a qualquer atividade de reversão pulsional e de produção fantasmática. O masoquismo primário, em que se encontra sua dimensão originária, está na base do problema do masoquismo e envolve toda subjetividade humana. Não obstante, a atividade masoquista além de implicar o ato de colocar-se à disposição do gozo do outro, implica o movimento pelo qual ao reverter a pulsão sádica contra si o sujeito produz suas fantasias, sejam elas de castração, de punição ou simplesmente de culpa e de vergonha. No masoquismo masculino, a atividade pulsional porta consequências nefastas, porém gozosas para o sujeito, pois a insistência da pulsão de morte, no afã de uma satisfação total, traça um perfil teimoso para o sujeito, fazendo com que suas fantasias obliterem a visão de suas escolhas autodestrutivas.

Ainda, a desconcertante ideia de um masoquismo originário liga-se à proposição da pulsão de morte e está no centro do problema econômico do masoquismo. O caráter primário do masoquismo erógeno, além de explicar parte das práticas sexuais do tipo sadomasoquistas nas quais os sujeitos gozam com a dor física, indica a importância do paradoxo do prazer no sofrimento na constituição dos sujeitos – na origem da subjetividade humana. O fenômeno erógeno do prazer na tensão (que é a síntese do problema econômico do masoquismo) cria a possibilidade de se extrair prazer de castigos corporais e de violações da própria pele, o que secundariamente desenvolve-se nos jogos eróticos de dominação e humilhação como formas de controle do gozo, desdobrando-se nas neuroses em culpas e vergonhas ativas e reincidentes. Assim, o masoquismo primário está na base de todas as formas do masoquismo, pois aquilo que tem de originário é a condição prévia que torna possível toda reversão do mal ou destruição compulsiva de si.

 

A repetição masoquista ativa

Para clarear nossa reflexão sobre o masoquismo nos sujeitos retomemos os principais pontos vistos até aqui. Em síntese: a evidência de um masoquismo social e estético nas mulheres, a prevalência do masoquismo sexual entre os homens, o conceito de masoquismo feminino ligado às fantasias de castração, o conceito de masoquismo moral ligado à culpabilidade obsessiva e, a passividade primária do masoquismo em relação a sua atividade secundária. Agora, se queremos especificar o sentido pelo qual vale a pena falarmos de um masoquismo masculino, então, precisamos nos familiarizar com as disposições ativas do masoquismo feminino, para em seguida, clarearmos o lugar do masculino em relação ao masoquismo moral, tendo em vista a destreza da compulsão à repetição no narcisismo fálico, tão próprio à masculinidade.

A histórica sujeição feminina reflete sua aparente passividade frente à atividade sádica masculina. Foram necessários milhares de anos e uma série de adventos sociais e tecnológicos para que a supremacia masculina pudesse ser questionada e, para que a superioridade física do homem não se prestasse à justificativa de qualquer dominação social e subjetiva da mulher. Freud tinha isso em conta, e por esta razão concebia a lógica da castração no campo das fantasias, no registro imaginário. Os efeitos subjetivos da percepção da diferença sexual anatômica são da ordem das fantasias fálicas e, são postulados como derivados imaginários relativos ao temor da castração. No campo ético-estético das restrições subjetivas duas grandes marcas simbólicas podem representar a condição (mais ou menos livre) dos sujeitos; ser ou não ser castrado. As fantasias de castração, portanto, dizem respeito ao sentimento ou à sensação pela qual o sujeito acredita-se já castrado, já impedido ou limitado em sua liberdade, censurado em sua expansão narcísica. Neste sentido a vergonha da castração é o flagelo do masoquismo nas mulheres, pois se as fantasias de castração representam a posição imaginária das meninas na trama edípica, o masoquismo feminino torna-se o emblema de qualquer subjetividade caracterizada pelas fantasias de castração.

Entretanto, graças à capacidade de simbolização humana, as meninas não sustentam a convicção de que já foram castradas, nem os meninos acreditam que o serão. Mesmo se a cultura ainda hoje alimente prerrogativas masculinas, em geral ninguém está disposto a defender direitos apoiados na percepção de diferenças sexuais anatômicas. A vergonha e a inveja das meninas, assim como o medo e a culpa dos meninos não têm fundamento no real, mas, para ambos tem incontáveis efeitos simbólicos e imaginários. Assim, a atividade social e sexual das mulheres, em que pesem os conservadorismos históricos, depende apenas de sua capacidade subjetiva de elaborar e relativizar os valores e os ideais que podem predispor à passividade. A atividade feminina, de fato, não deve nada à superioridade física masculina, seu pudor e sua inveja, portanto, são também imaginários.

"A pergunta: o masoquismo é feminino e passivo, o sadismo viril e ativo? Só tem uma importância secundária" nos diz Deleuze (1973, p. 73). Esta afirmação reflete bem aquilo que estamos tratando aqui. Para ele, "entre o sadismo e o masoquismo revela-se uma profunda dessimetria", exigindo que não os tratemos como "exatos contrários", pois eles não são simples pulsões parciais, mas sim completas. "No caso do masoquismo, a pulsão viril", própria à atividade masculina, "encarna o papel do filho" ao mesmo tempo em que "vive em si a aliança da mãe oral com o filho", ao passo que, "a pulsão feminina", alusiva à passividade da mulher, "é projetada no papel da mãe". No masoquismo estão presentes a pulsão viril e a pulsão feminina, de tal modo que "a figura do masoquista é hermafrodita" (Deleuze, 1973, p. 74). Por outro lado o sádico vive em si a aliança oral "do pai com a filha" e, numa cumplicidade incestuosa contra a mãe, "em função de uma projeção do pai" pode ao mesmo tempo desempenhar o papel feminino. De acordo com Deleuze (1973), em Sade encontram-se tantos matricídios quantos parricídios, de tal modo que o pai violento unido à filha má torna a figura do "sádico andrógina" (p. 63, p. 74). Esta é parte da argumentação pela qual Deleuze relativiza o rigor e a importância das distinções simétricas entre os pares masoquismo-sadismo, passivo-ativo, feminino-masculino. Na figura completa do masoquismo, primariamente passivo, também se encontra a posição masculina ativa e viril e, naquilo que ele chamou de pulsão feminina, supostamente passiva, também está o ativo sadismo.

Do ponto de vista da composição das fantasias, a disposição masoquista implica a reversão da atividade sádica que articula o discurso e os sonhos do sujeito contra ele mesmo. No calor identificatório com o pai, o masoquismo viril assume para si o destino sombrio e funesto do pai morto, pois a despeito de seu ódio parricida o sujeito ama o pai que ele deseja ser. Porém, ao desejar o lugar do pai a ser destruído termina por conferir às suas pulsões um apertado circuito, no qual o cumprimento de seus desejos deve obter satisfação da forma mais imediata e total possível. este restrito circuito da pulsão de morte, a posição masculina executa seus pensamentos e impetra suas escolhas, prontificando-se ao sofrimento dos combates e desejando apresentar-se como quem é forte e tolera as incríveis dores do amor. No masoquismo masculino, a compulsão à repetição articula as certezas apaixonadas das escolhas dos sujeitos, seja no plano amplo dos princípios intelectuais que animam as mentiras sobre seus triunfos, seja na fixação banal de suas satisfações imediatas mais desastradas.

Se no masoquismo feminino as fantasias de castração envolvem uma alusão ao corte, a perda ou a restrição fálica, o simbolismo da castração não deixa de representar as culpas que no masoquismo moral castigam inconscientemente os sujeitos. A castração também opera no masoquismo estético, quando a vergonha inconsciente faz o sujeito sucumbir, bastando para isso suas suposições sobre o olhar dos outros. Também no masoquismo masculino, a identificação com o pai e, ao mesmo tempo, com a lei da castração não o livra das ameaças e das fantasias de ser castrado. Daí o ímpeto cego do sofrimento masculino, pois, ao buscar evitar a vergonha da castração o homem antecipa-se no castigo, revertendo o ódio contra si num ajuste fantasmático que o impede de flagrar-se com o falo perdido. A eficácia do fantasma masoquista masculino exige que ele sempre recupere firme e habilmente a crença em sua potência fálica. Para isso, a compulsão à repetição encontra com precisão as fantasias que, mantendo o sentido de suas falhas e faltas sob o manto da ilusão amorosa, pontualmente submetem o sujeito aos descaminhos de suas suposições sobre a vida.

O traço rude da masculinidade ou sua truculência pautam a destrutividade e a brutalidade das fantasias que impelem o sujeito às escolhas que o machucam. A racionalização obsessiva e o pragmatismo das fantasias disfarçam explicitamente o desconforto causado pela suposição do olhar dos outros sobre seus desenganos. Desavergonhados, os homens redundam em suas culpas sem desistir de suas preferências e, atravessados pelo registro dos masoquismos moral e estético, impõem a si um destino amoroso marcado pela insistência de suas pulsões e pela protuberância de suas vaidades. Entretanto, se o masoquismo masculino caracteriza-se por um narcisismo fálico enrijecido e pela exigência de precisão na repetição da pulsão de morte nos homens, ele também acontece entre as mulheres.

 

Uma mulher determinada

Joana era uma jovem executiva recém-formada que se saía muito bem no plano de carreira de uma grande empresa. Segundo ela, o pai seria um empreiteiro de origem humilde que, sendo "ousado e eficiente", tivera um grande sucesso comercial, era um self-made man. A mãe, uma dona de casa simples, amorosa e atenciosa. Joana morava com os pais e, como filha única, descrevia um convívio basicamente harmonioso em sua casa. Dizia brincando que, "ele gosta de muito beber e ela gosta muito de comer!" No entanto, desde que começara a ganhar seu próprio dinheiro, a ideia de sair de casa tornara-se uma constante em seu discurso. Joana começara um namoro poucos meses antes de vir ao meu consultório e, referia-se a seu relacionamento como "ótimo, sem problemas". Embora sentisse uma vaga distância de seu pai em relação ao rapaz, acreditava que ele fosse bem aceito na família, pois ele, inclusive, parecia-se com o pai; ele gostava muito de beber e era bem decidido.

Apesar dos repetidos pesadelos que vinha tendo, a princípio Joana viera consultarme apenas por causa de crises de choro incontido, as quais lhe pareciam não ter razão de existir. Nunca fizera uma análise e "queria saber como era!". Resistiu um pouco para deitarse no divã, mas como havia se proposto a saber como era uma "terapia", deitou-se e passou a contar seus pensamentos, sonhos, ambições e fantasias. Acostumada com o sucesso profissional, logo disse: "não gosto de perder tempo, quem perde tempo, perde prazos", o que, compreende-se, para uma administradora é algo importante. Numa outra ocasião disse com ênfase: "se perco tempo, perco mais!" Estas frases não puderam deixar de evocar a expressão corrente que diz "tempo é dinheiro" (time is money). De fato, o pragmatismo de seu pensamento revelou-se bem mais do que um cuidado ou uma astúcia econômica; representou uma marca do estilo de Joana, uma mulher metódica, objetiva e determinada.

"Quem perde tempo, perde prazos" revela o empenho da razão em livrar-se de aspectos subjetivos que pudessem levar à perda de tempo no trabalho, mas representa também os prazos imaginários de sua vida amorosa e familiar. A frase refletia uma identificação com seu pai, que não perde prazos e ganha dinheiro. Se perder tempo leva a perder mais, então, eram várias as perdas em risco. Sua ansiedade e sua pressa davam boas mostras disso. Falava sobre sair de casa e morar sozinha, contava conflitos profissionais e refletia sobre seu namoro. Queixava-se um pouco de uma pequena diferença sociocultural que dizia sentir entre eles, mas imediatamente procurava desfazer-se dessas percepções. O namorado, que logo seria seu noivo, era vendedor de seguros e, quanto mais ela pensava em casamento, mais intensos eram seus pesadelos com animais ferozes, monstros, incêndios e roubos. O sinistro ia além das perdas que ela imaginava, porém se negava a analisar os receios que lhe afligiam em vigília, evitando falar da insegurança que ela supunha contrair com aquele noivado. Eu, do outro lado, entendia que, para não perder tempo, ela preferia considerar menores as diferenças que lhe incomodavam.

Ela perguntava-se se seria viável ou razoável morar sozinha, quando o namorado já morava só num apartamento. Então disse: "já passei da fase dos motéis, quero o nosso cantinho." Podemos reconhecer aqui muito de sua autoimagem. Via-se como uma mulher liberada, senhora de seu amor pragmático, sóbria e elegante, mas também capaz de cuidar de uma casa. A expressão "nosso cantinho" fazia ecoar a candura própria à sua mãe, que ela considera simples, porém boa mãe e ótima dona de casa. Ao mesmo tempo, o tom carinhoso de sua fala era acompanhado de exigências de otimização do tempo e do espaço: "já passei a fase dos motéis." O noivo parecia responder às suas expectativas, ele alugava um apartamento e a satisfazia sexualmente, o que compunha o quadro do bom desempenho no qual ela gostava de reconhecer-se. Para ela tudo se encaixava corretamente. Para mim, um estranho senso de dever se cumpria na consecução de seus desejos. Um suspense mudo insinuava as vésperas de seu casamento. Mesmo quando percebeu que as angústias dos sonhos estavam ligadas à relação entre seu noivo e seus pais, Joana não quis incomodar-se muito com seus pesadelos recorrentes. Neste momento, vibrava a marca de seu estilo prático e decidido de ser; ela traçara seus planos de vida e iria executá-los em boa hora.

A maior parte de suas fantasias dizia respeito ao futuro: à casa própria, aos benefícios, carros, viagens. Joana falava abertamente que desejava casar-se e ter filhos. Porém, sua independência e sua carreira profissional estavam em primeiro lugar; ela reconhecia-se na figura de uma mulher livre, bonita e dinâmica, uma executiva competente e produtiva. Não queria ser apenas uma "dona da casa" e, dizia desejar uma vida amorosa e sexual mais ativa do que a da mãe. Algumas vezes mostrou-se bastante irritada ao comentar a submissão da mãe ao pai. Lamentava a dependência da mãe em relação a tudo e preocupava-se em não engordar como ela. A ambivalência em relação à mãe apontava para o jogo identificatório que sustentava sua obstinação masoquista; ser independente (como o pai) implicava em ligar-se a um dependente (como a mãe) o que, inconscientemente, lhe causava mal-estar. A ideia de que Joana desejava casar-se com um homem de quem ela não dependesse repetiase nas sessões, fazendo-a planejar obsessivamente os detalhes de um casamento que, exceto aos seus olhos, evidentemente, a deixava insegura.

Joana sentia-se um pouco estranha ao perceber a maneira do namorado agir junto aos pais dela; sentia como se ele não soubesse estar na casa deles, sentia "certo constrangimento". "Falta de postura", disse ela de modo um pouco reticente, mas preferiu supor que fosse apenas "alguma timidez". Pensava, mas só indiretamente dizia que, embora ele fosse mais velho, ela já ganhava mais dinheiro do que ele e logo ganharia ainda mais. Preferia abertamente não falar disso, agia como quem quer evitar preconceitos. Tudo deveria se passar como se seu namorado fosse, antes de tudo, um self-made man, como seu pai. Ele era trabalhador e enfrentara dificuldades financeiras desde cedo, o que não fora o caso dela. Em face disso, qualquer traço de humildade deveria ser entendido como um honrado resquício de seu passado simples e honesto. Convencida de seu amor por ele e cumprindo a meta que ela imaginou para si, com precisão, Joana marcou a data do seu casamento quase sem consultar o rapaz.

Ao deparar-se com as vergonhas de seu namorado Joana pressentia que ele disfarçava suas hesitações bebendo e brincando, mas preferia negar sua intuição sobre a fragilidade do noivo. Embora a análise de seus sonhos indicasse claramente a relação entre a angústia de seus choros e essas impressões desagradáveis, ela, de mau humor, insistia em descartar aquilo que podíamos pensar sobre suas escolhas. Uma teimosa obstinação a fazia rumar para realização de seu desejo de casar-se sem perda de tempo, como se uma satisfação certeira e absoluta fosse ser encontrada neste destino. O estilo de Joana pedia um tipo de homem que pudesse apresentar a determinação exigida por seus ideais (inspirados em seu pai), porém dada a intensidade de sua identificação paterna ela não poderia sustentar uma relação com alguém tão dominante como ela (ou como o pai). Sua armadilha inconsciente estava armada, pois o acanhamento do noivo eleito indicava que o rapaz era apenas aparentemente tão forte e competente como ela gostaria.

O espírito de independência que o pai transmitira a ela permitia-lhe sustentar seu estilo de mulher moderna que não tem pudor de falar sobre sexo, que trabalha e é bem remunerada e, que luta para produzir um relacionamento tal como ela sonha e deseja. Tudo seria perfeito se sua fantasia não implicasse um poderoso conflito entre a escolha de um homem decidido (e dominador como o pai) e sua posição de mulher independente e decidida (também como pai). Joana desejava um marido que fosse tão forte e ousado (como o ela e o pai), no entanto, essa mesma escolha gerava um impasse, pois ambos tenderiam a querer fazer valer um sobre o outro. Eis o sentido de sua cilada masoquista: ao desejar alguém que ela imaginava ser forte e ousado como o pai, complicava-se para ser diferente de sua mãe dependente, ou seja, para ser independente e casar-se. Fazendo-se o inverso de sua mãe encontrou uma solução temporária, pois sua autonomia logo acarretou conflitos que trouxeram de volta as impressões descartadas pela hiperafirmação de seu projeto de vida. O eco das escolhas parentais de Joana reativava a moral edípica, ressexualizando os dispositivos éticos e estéticos que inconscientemente lhe castigavam com crises de choro e sonhos de angústia, mas reverberavam também o cumprimento compulsivo da pulsão de morte que se realizava numa repetição apaixonada por seu método, dando forma e ritmo à estrutura de suas fantasias ao escolher um alvo que presumivelmente não atenderia a suas necessidades subjetivas.

Joana casou-se e, dois anos depois, separou-se, sem filhos. Seu pressentimento praticamente consciente veio a se confirmar, pois aquilo que lhe parecia ser a determinação e a ousadia do marido viria a gerar conflitos e confrontos cotidianos, não lhe permitindo reproduzir as relações harmoniosas de sua família. Ao contrário, o que antes parecia ser um discreto acanhamento de seu noivo, tornou-se motivo de diferenças significativas que terminaram por ampliar a insegurança de Joana no casamento, desdobrando-se em suspeitas, acusações e discórdias insustentáveis. A diferença de suas competências profissionais, por sua vez, transformara-se em um importante conflito financeiro relativo ao custeio da casa e, finalmente, sentia-se explorada. O marido tornara-se seu dependente e bebia demais. Joana pediu o divórcio. Um ano mais tarde visitou-me algumas vezes no consultório e, com muita dignidade, contou-me então que as crises de choro e os pesadelos já eram eventuais e que seus relacionamentos eram curtos. Embora mais madura e ponderada, ainda mostrouse pouco disposta à análise dos aspectos mais autodestrutivos de sua impulsividade e de suas certezas.

 

A masculinidade masoquista

Como síntese das fantasias obsessivas de Joana, o refrão eficiente, "quem perde tempo perde prazos", refletia um encantamento oco de seu projeto de vida. Agarrada, ao modelo paterno, seu bordão representava a razão de sua teimosia, mas ignorava a repetição inconsciente que sustentava sua determinação cega em direção ao casamento. Embora fosse ainda bem jovem e dispusesse de tempo, em seu discurso e em seus pesadelos procurava elaborar os desejos ameaçados pelo temor de não se casar em boa hora. Os ogros, ursos, incêndios e roubos remetiam-na inconscientemente à impostura e à insegurança do noivo e, neste sentido, ao horror da falta e do abandono. Joana, filha única, deixara clara sua aversão à dependência e à vulnerabilidade que reencontrou em seu marido dependente. O temor ruminante de ser como a mãe e o desejo de ser e ter alguém como o pai, ligados à vergonha e à culpa inconscientes, cultivavam o receio da falha imaginária na perda dos prazos. Estes medos obrigavam-na a reafirmar reativa e compulsivamente a certeza teimosa de suas escolhas, eliminando aparentemente todas as dúvidas de seu horizonte. Dúvidas típicas do obsessivo sobre o tempo, os prazos e as normas, dúvidas que o levam a aderir rigidamente às regras e às leis. De modo defensivo, sua atitude fálica e onipotente, quase sádica, correspondia a uma disposição inconsciente, passiva e obediente, pois Joana desejava obsessivamente seguir sua regra fundamental: a de não perder tempo nem prazos, conforme aprendera com seu pai.

Chemama (1999, pp. 21-22) comenta a importância da identificação com o falo (falo que a mãe não tem) na obsessão feminina. No caso de Joana a identificação com o falo está evidente, pois ela não apenas pretendia uma vida sexual mais ativa do que a de sua mãe, mas queria ser tão destemida e objetiva como o pai. Na tentativa de diferenciar-se de sua mãe, dona de casa carinhosa, mas submissa, Joana preserva sua identidade feminina, mas via-se compelida a lidar com suas pulsões à moda masculina, tomada por um narcisismo fálico. Ela estabelecia uma aliança sádica com o pai, porém ao mesmo tempo, projetava-se no papel da mãe, o que resulta em uma importante atitude masoquista pela qual se fazia senhora de um saber iludido quanto à destrutividade de sua persistência pulsional. Vale dizer que com uma postura tipicamente fálica, mal conhecendo o sentido da culpa e da vergonha que atrapalhavam seu sono e, carregada pelo sentido mais ou menos desafortunado de suas pulsões, Joana realizava suas fantasias sem muita análise.

No masoquismo masculino não deixa de existir o masoquismo moral, pois o retorno aos objetos parentais está presente nas duas situações. O que acontece é que além de existirem sentimentos inconscientes de culpa penitenciando o sujeito, no masoquismo masculino a infelicidade de determinadas escolhas encontra-se praticamente disponível para a consciência, quando não, encontra-se deliberadamente negligenciada pelo sujeito. Fora das negações mais psicóticas, o disfarce consciente da assunção das escolhas mais estranhas, ilógicas e repulsivas para nós mesmos, ainda comporta a implicação do malogro que elas representam. O embrutecimento do desejo, na escalada das determinações pulsionais de nossas fantasias e ambições, prende-nos às preferências que não nos livram de suas consequências. Assim como Joana assumia os riscos envolvidos em sua meta de casamento, os obsessivos são impelidos a sustentar suas metas e seus métodos, mesmo se estes lhes pareçam inconsistentes.

Na obsessão, a certeza arrogante da legitimidade das regras e de suas verdades é acompanhada de percepções íntimas e confusas sobre suas falhas e suas falsificações, tal como fazia Joana. O obsessivo sofre ao pressentir em si a deficiência que denuncia no outro, pois sua teimosia oculta o blefe de suas pretensões, levando-o a antecipar imaginariamente o desastre que julga compatível a sua ignorância. "Muito das tristes histórias de fracassos repetidos" são os efeitos disso, pois como diz Kehl, "ao ser posto à prova, o obsessivo prefere falhar ou mesmo desistir, convicto de que não sabe o suficiente". O pressentimento da insuficiência do projeto obsessivo anuncia os riscos reais que o sujeito assume ao ceder à compulsão de repetição como forma de preservar sua entrega narcísica. A aposta intelectual e amorosa do obsessivo subestima suas limitações e notamos isso porque se o sujeito mantiver seu blefe teimoso aquém da análise, como Joana, em algum tempo ele reencontrará suas faltas e inconsistências, ou seja, posto à prova o compulsivo enfrenta as consequências de sua escolha, pois sua implicação é uma exigência da lógica obsessiva.

Preocupado com os efeitos de sua potência sobre os outros, o obsessivo ao mesmo tempo desacredita de si. Paradoxalmente, convicto do amor investido na verdade de suas escolhas, o sujeito dedica esse amor à conquista dos outros e desvaloriza-se em sua intimidade. Assim, como uma formação reativa, muitos homens reafirmam sua honra ao sustentar decisões e posturas que uma vez assumidas, não podem mais ser modificadas, mesmo quando já reconhecem suas consequências. O contragolpe embutido na compulsividade fálica reflete-se na repetição das ignorâncias e incoerências sustentadas por discursos masculinizados que, embrutecidos, procuram disfarçar seus medos, suas falhas e suas dependências, repetindo-se em impulsos prepotentes, mas humilhantes. Reflete-se também no blefe das muitas opiniões obsessivas expressas contundentemente em conversas triviais, na ignorante relutância aos cuidados médicos, no descuido com a forma física e até na falta de asseio pessoal. Também, a estranha complacência social com o desleixo e a fealdade da aparência dos homens, além de certa tolerância social à promiscuidade masculina, parecem fomentar o traço perverso do masoquismo fálico que leva o sujeito a destruir-se por força da repetição em suas fantasias.

Em Introdução ao Narcisismo, Freud (1981a/1914, p. 2025) reflete sobre as diferentes formas de eleição de objeto: a do tipo narcisista e a do tipo de apoio, ou anaclítica. Depois de ponderar que ambas ocorrem tanto nos homens como nas mulheres, Freud diz que "o amor completo ao objeto... é característico do homem", pois dada à supervalorização sexual do objeto inspirado em seu narcisismo infantil, os homens tendem a identificar-se com o objeto para o qual dirigem seu amor. Esta supervalorização sexual do objeto "permite a gênese do estado de paixão, que é tão peculiar e que tanto lembra a compulsão neurótica", mas que, como diz Freud, tem como efeito "o empobrecimento da libido do eu em favor do objeto" (p. 2025). Diferente da eleição narcísica de muitas mulheres para quem, sobretudo, a escolha amorosa depende de que o escolhido a ame, a posição masculina ao dedicar seu amor completo ao outro hipervalorizado ignora a diminuição do investimento em si e dedica-se à mulher, insistindo na fortuna de sua compulsividade amorosa. Foi isso que fez Joana.

O masoquismo masculino despreza os pressentimentos mais infelizes em nome da consecução de um amor que se apresenta completo. O pai protetor e a mãe nutriz marcam o tipo de amor anaclítico que é característico da masculinidade, mas que claramente encontrava lugar na compulsão dos prazos amorosos de Joana. Como mulher inspirada em ideais contemporâneos estava disposta a ocupar uma posição obsessiva, estava sujeita aos impasses do masoquismo masculino. Sua feminilidade, carinhosa e elegante, felizmente também compunha seu estilo de ser, garantindo espaço para a estesia de sua vida pulsional e fantasmática. Por sorte, o masoquismo faz seus pactos nos limites do sofrimento suportável na vida, desenhando estilos de sofrimento singulares para os sujeitos. O equilíbrio precário do gozo masoquista, nos homens e nas mulheres, relaciona-se aos balanços entre as diferentes maneiras de se lidar com a satisfação pulsional junto à dor de viver, assim, quando o azar e o pior insistem em compor os objetivos do sujeito, a análise do traço masculino do masoquismo pode ser um bom antídoto.

 

Referências

APA (1994). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-IV). (4ª ed.). Washington: American Psychiatric Association.         [ Links ]

Chemama, R. (1999). A neurose obsessiva feminina hoje. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 17, 16-25.         [ Links ]

Deleuze, Gilles (1973). Sade/Masoch. Lisboa: Império.         [ Links ]

Fonseca, F. L. da, (2004). Reflexões ético-estéticas do masoquismo: os estilos no gozo e a vergonha inconsciente. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.         [ Links ]

Freud, S. (1981a). Introduccion al narcisismo. In S. Freud, Obras Completas. (Vol. 2, pp. 2017-2033). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1914).         [ Links ]

Freud, S. (1981b). Mas alla del principio del placer. In S. Freud, Obras Completas. (Vol. 3, pp. 2507-2541). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1920)         [ Links ]

Freud, S. (1981c). El problema econômico del masoquismo. In S. Freud, Obras Completas. (Vol. 3, pp. 2753- 2759). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1924)        [ Links ]

Herrmann, F. (1997). Psicanálise do quotidiano. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Kehl, M. R. (1999). Blefe! Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 17, 79-82.         [ Links ]

Krafft-Ebing, R. V. (1886/1965). Psychopathia sexualis. (p. 223). New York: G.P. Putnam's Sons.         [ Links ]

Mill, S. (2006). A sujeição das mulheres. São Paulo: Escala. (Trabalho original publicado em 1869)        [ Links ]

 

Endereço para correspondência

Felipe Lessa da Fonseca
[Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP]
Rua: Cristiano Viana 292, Pinheiros
05411-000 São Paulo, SP
e-mail: flessaf@uol.com.br

 

[Recebido em 6.4.2010, aceito em 8.5.2010]

 

 

1 O artigo apresenta o desenvolvimento de uma vertente de minha tese de doutorado, intitulada Reflexões ético-estéticas do masoquismo: os estilos no gozo e a vergonha inconsciente, realizada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do professor Renato Mezan. A convite do professor Fabio Herrmann, o argumento central e o caso clínico em questão foram apresentados em 2003, no II Encontro Psicanalítico da Teoria dos Campos, sob o título de O masoquismo masculino.
2 Psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), líder de Grupo de Pesquisa CNPq no Laboratório de Saúde Mental Coletiva (Lasamec) da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo USP.