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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.3 São Paulo  2010

 

RESENHAS

 

O duplo limite: o aparelho psíquico de André Green

 

 

Autora: Talya Candi
Editora: Escuta, São Paulo, 2010, 344p

Resenhado por: Iliana Horta Warchavchik,1

Endereço para Correspondência

 

 

Lembremos que, na concepção psicanalítica apresentada por Green, o sujeito é um operador submetido inevitavelmente ao trabalho psíquico que, poderíamos acrescentar, oscila entre o 'trabalho do sonho' e o 'trabalho do luto', duas modalidades diferentes do trabalho de representação. (p. 255)

O trabalho do negativo tanto constitui o psiquismo como o ameaça...quando prevalece a ameaça, teremos que nos defrontar com o negativo do negativo, que são os aspectos destrutivos do trabalho do negativo, que se manifestam por causa da ausência ou presença excessiva dos objetos primários. (p. 255)

Lembremos de nossa premissa de base, segundo a qual o psiquismo é o efeito da relação entre dois corpos na qual um está ausente. (p. 268, nota de rodapé)

Essas afirmações instigantes dão uma pequena amostra do livro O duplo limite: o aparelho psíquico de André Green, tese de doutorado de Talya Candi, sob orientação de Luís Cláudio Figueiredo. A autora faz um minucioso exame do complexo pensamento de André Green, por meio de seus textos e conferências. Abrangente e de muito fôlego, o livro, no entanto, consegue manter a fluidez, trazendo inúmeras apreensões claras e interessantes para o leitor.

Talya explicita os objetivos de sua tese: fazer trabalhar suas inquietações teóricas e clínicas, e apresentar ao futuro leitor as concepções de Green sobre o nascimento do psíquico. Ela descreve o modelo de aparelho psíquico que Green desenvolve para sustentar a "hipercomplexidade" do psiquismo concebido por ele.

O trabalho nos leva pelos caminhos teóricos de Green com os cortes e costuras resultantes de sua prática, nos situando concomitantemente na história dos movimentos da psicanálise. Talya descreve a luta que Green empreende contra a fragmentação do saber em psicanálise, que Figueiredo chama de "transferência com a psicanálise trans-escolar". Sua pesquisa tem a capacidade de despertar a curiosidade do leitor, e rastreia a maneira original como Green paulatinamente incorpora conceitos de outras escolas na sua trajetória pessoal. Ela não perde de vista, no entanto, a proximidade com a obra de Freud: "estamos definitivamente após Freud, mas estamos sempre com ele para interrogar nosso saber". (p. 26)

Na introdução é apresentado o pensamento metapsicológico de Green, que pensa com a história e pensa com a clínica. Dada a extensão de sua obra, Talya elege como fio condutor a questão do nascimento psíquico. Partindo da hipótese de que "O pensar com a história" e "O pensamento clínico" são paradigmas das ideias mais originais da teoria de Green, ela organiza sua pesquisa em torno desses dois eixos epistemológicos. Embora eles se entrecruzem continuamente, correspondem às duas partes do livro.

Ainda na introdução, Talya cita o historiador Carl Schorske, nos convidando a acompanhar os movimentos de Green em seu modus operandi, ou seja, convocando o leitor como sujeito pensante: "pensar com a história não é o mesmo que pensar sobre a história" "...quando concebemos a história como um processo ... ela se torna então dinâmica, ligando ou dissolvendo elementos estáticos num modelo narrativo de mudança."

Talya, no entanto, não busca uma reconstituição histórica com um caráter unificador que seria provavelmente reducionista, mas um olhar retrospectivo sobre a psicanálise que temos interiorizada, a história subjetiva da Psicanálise. Cada um de nós, diz ela, constrói uma história da psicanálise e escolhe os autores nos quais se reconhece, na maioria das vezes de forma impensada. Essa apropriação subjetiva se dá numa temporalidade complexa, e evolui por processos conscientes e inconscientes no percurso psicanalítico de análise e autoanálise.

Na primeira parte do livro, "As interlocuções de André Green (ou as vicissitudes da ausência nas obras de M. Klein, W. Bion, D.W. Winnicott e J. Lacan)" Talya nos leva em uma perspectiva histórica a acompanhar o diálogo de Green, nos encontros e desencontros com esses autores que dão contorno ao seu desenvolvimento conceitual.

Na segunda parte, Talya nos familiariza com sua construção teórica inovadora, "O duplo limite na obra de André Green: a construção de um modelo clínico/teórico da psique", de forma articulada com as interlocuções da primeira parte. Aqui a ênfase é no "pensamento clínico" de Green, como uma modalidade original e específica de racionalidade proveniente da experiência prática, diferente da racionalidade das outras ciências, já que ele aponta na psicanálise um hiato insuperável entre teoria e clínica, onde a incerteza está sempre presente. Essa perspectiva da clínica, fruto da experiência com o inconsciente, evoca a experiência afetiva do leitor, promovendo associações e desenvolvendo a imaginação clínica de uma leitura flutuante.

Dessa forma Talya consegue passar a mesma riqueza que o contato com o pensamento clínico de André Green suscita, onde leitor é convidado a pensar afetivamente situações particulares de sua experiência clínica.

Assim como Green, a autora faz um esforço constante para não deslizar em leituras dogmatizantes coladas ao autor, buscando criar novos sentidos através da circulação de ideias. Ela nos apresenta então uma dupla leitura, tal como Figueiredo propõe: uma leitura sistemática, próxima e contextualizante, que ordena o pensamento do autor, e uma leitura próxima desconstrutiva, que busca novos sentidos e explora trilhas perdidas que a leitura clássica tende a fechar.

Nas interlocuções de Green somos convidados a pensar junto com Klein, Bion, Winnicott e Lacan os conceitos de pulsão (vida e morte), de objeto, de presença e ausência na constituição do psiquismo, de afeto e de representação, integrando assim as ideias e quebrando o isolamento das teorias dessa segunda geração de psicanalistas.

O texto Trop c'est trop é analisado pela autora, situando-nos na concepção de inconsciente de Green como uma linguagem afetiva, enraizado numa pulsionalidade sempre excessiva. Lembrando que a noção de excesso figura desde Freud no trauma, Talya descreve sua função no aparelho psíquico, e os mecanismos pensados por Green que transformam esses excessos e contém, temporariamente, a força pulsional. Sendo o fluxo de excitação que vem do corpo e do mundo externo contínuo, ele coloca o psiquismo para trabalhar modulando e organizando essas quantidades. Quando a angústia é excessiva, a possibilidade de elaboração psíquica fica bloqueada.

Talya afirma: "Essa posição teórica nos permite dizer que a realidade psíquica não se opõe a uma realidade material, mas sim a uma realidade externa ao psiquismo na qual estão incluídos o próprio corpo do sujeito, a realidade psíquica do outro e a realidade externa." (p. 39). E conclui: "A gênese da organização psíquica supõe a ação do vínculo sujeitoobjeto (externo) sobre o sistema pulsão. Green fala numa dialética entre o intersubjetivo e o intrapsíquico." (p. 40).

Destaco algumas apreensões de Talya da articulação dessa teoria viva.

 

Green e Melanie Klein

Talya apresenta Melanie Klein como a primeira psicanalista a levar a sério a segunda teoria pulsional proposta por Freud, e a outorgar uma importância fundante às pulsões de morte e de vida no psiquismo da criança. Segundo ela, Green considera que o psiquismo freudiano e o kleiniano estruturam-se em diferentes postulados. Enquanto que para Freud a lógica do inconsciente tem propriedades que lhe permitem driblar a realidade, alucinar objetos e realizar desejos no que Green chamou de a lógica da esperança, para Klein, o jogo é outro: a vida psíquica se instaura na violência, no conflito entre as pulsões de vida e de morte.

Citando Julia Kristeva e Elias Rocha Barros respectivamente, Talya afirma que Klein se mostrou muito sensível às questões ligadas à angustia intolerável e à dor psíquica das crianças, e pode ser considerada a precursora da problemática ligada à questão do irrepresentável. Green vê aí a lógica da desesperança, onde a capacidade de alucinar o seio foi danificada e a destrutividade se impõe como característica dos pacientes borderline. O que prevalece aí, segundo Talya é uma relação com o objeto dominada pelo excesso de ambivalência (amor-ódio), provocando um conflito constante e impedindo um investimento afetivo estável, necessário para constituir um vínculo objetal. Fazendo uma equação abreviada podemos afirmar que na lógica da desesperança a reação terapêutica negativa predomina; não podendo realizar alucinatoriamente o desejo, os pacientes não podem sonhar.

Talya descreve como Green enfatiza ao longo de sua obra a importância de manter o conceito de pulsão para pensar a realidade psíquica própria da psicanálise. A pulsão é considerada uma estrutura-limite entre a psique e o soma, que coloca a psique em movimento por suas conexões com o corpo, e é uma excitação permanente interrompida temporariamente com a gratificação. Segundo Green, na conceitualização kleiniana a fantasia inconsciente é formulada somente em termos de representação figurada (fantasia inconsciente, imagens, sensações) e a questão das transformações de energia e simbolização não é contemplada. Dessa maneira, o elemento energético, necessário para que o psiquismo se mova em direção a um primeiro objeto externo e significativo, não é formulado. Para Green, o afeto seria o quantum energético próprio que leva a esse movimento que pode então ganhar forma e conteúdo.

 

Green e Bion

Talya menciona que Green ficou fascinado pela originalidade do pensamanto bioniano. Apesar de Bion ter se baseado nas questões ligadas à psicose, Green utilizou suas contribuições para conceitualizar um modelo de aparelho psíquico e pensar sobre a função do analista, nos casos dos pacientes-limite.

Talya afirma: "Para Green, Bion consegue reconciliar Melanie Klein com Freud, traçando uma ponte entre as questões metapsicológicas freudianas, ligadas aos princípios de prazer e de realidade, e a teoria das posições esquizoparanoide e depressiva de Melanie Klein....Tal como Bion, Green se interessa pelo processo de mentalização.... que permite realizar a passagem do afeto ao pensamento, e podemos supor que a noção de limite conceitualizada por Green encontra suas raízes, em grande parte, na noção de 'barreira de contato' desenvolvida por Bion."(p. 65)

Assim como Freud, Bion vincula a capacidade de pensar à capacidade de tolerar a ausência do objeto, mas outorga à frustração um lugar central.

Em seu texto de 1962 "Uma teoria sobre o pensar", Bion retoma a questão que Freud investiga em "Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental" de 1911.

Essa questão das falhas da função do real, a tentativa de compreender como essa realidade foi construída, e como ela se organiza na atividade do pensamento, é posteriormente retomada por Green no 'trabalho do negativo' ou seja, no "trabalho das defesas incumbidas de tomar uma decisão; são, portanto, mecanismos que julgam a realidade quando encontramo- nos frente ao dilema de ter que aceitar ou recusar a percepção da realidade". (p. 68)

Nesse mesmo texto, Freud descreve o funcionamento do bebê quando o princípio da esperança predomina; quando a ausência pode ser suportada, se estabelece o princípio da realidade e uma alteração no real é possível. Temos aí a passagem da realização alucinatória do desejo ao desenvolvimento da capacidade representacional que promove o pensar.

 

Green e Winnicott

Talya menciona a forte ligação afetiva de Green com a obra do psicanalista inglês D.W. Winnicott, e nos apresenta a maneira como Green o lê. Para ele, Winnicott descende de uma linhagem iniciada por Klein e está mais próximo de suas ideias do que das de Freud.

Green considera, no entanto, que ao apontar para a necessidade de o analista tomar em consideração as falhas ambientais ocorridas no desenvolvimento afetivo, Winnicott retifica algumas das descobertas geniais de Klein. Assim como ela, Winnicott coloca a pulsão e a destrutividade como determinantes; "lembremos que o 'verdadeiro self' winnicottiano é o que consegue se apropriar da agressividade do mundo pulsional..." (p. 105).

Por outro lado, "a intolerância do objeto-mãe à espontaneidade da criança pode levar a uma dissociação no bebê, seja entre a psique e o soma, seja entre um dos dois componentes da bissexualidade (particularmente entre atividade e passividade), seja ainda entre uma das partes das pulsões (destrutivas, por exemplo) contra a outra. A criação de um falso self, forjado à imagem do desejo da mãe, permite a proteção do verdadeiro self escondido." (p. 110). Nesses estados de não integração a dependência predomina.

Segundo Talya, o trabalho da análise consiste em substituir metaforicamente as carências dos cuidados maternos, acolhendo essa dependência e necessidade de fusão. Somente após esse encontro entre duas pessoas é possível a separação, passando pela criação do objeto transicional, pela capacidade do brincar e pela capacidade de estar só.

Para Winnicott, somente quando a criança integra duas experiências afetivas de qualidades distintas (a mãe da satisfação libidinal e a mãe dos cuidados maternos), ela pode diferenciar as projeções subjetivas ligadas às fantasias da percepção da realidade.

"A internalizacão dessa mãe-enquadre, imprime no aparelho psíquico a matriz fundamental para a constituição de uma estrutura enquadrante." (p. 117).

Vários outros conceitos winnicottianos como "ilusão", "espaço potencial", e "espaço transicional", são apropriados e desenvolvidos por Green ao longo de sua obra, tornando-se pontos chave para a sua teorização. O conceito de "limite" determinante na sua concepção de aparelho psíquico decorre em parte da leitura pessoal de Green dos textos de Winnicott. O fenômeno da ilusão será para Green um dos fundamentos da função objetalizante, que é a expressão da vida. É esse fenômeno que parece estar danificado nos pacientes-limite, onde um não estabelecimento de fronteiras prejudica a capacidade de simbolizar e de conter os excessos traumáticos.

O conceito greeniano de terceiridade também pode ser correlacionado com o espaço transicional de Winnicott.

Talya cita Green:

Penso que o conceito de transicionalidade não é somente válido entre o interno e o externo, o objeto sendo e não sendo o seio, mas pode endereçar-se também a todas as estruturas intermediárias do mundo interno.

(p. 64 de Winnicott en transition entre Freud et Melanie Klein. In: Jouer avec Winnicott, Paris, 2005)

Por fim, Talya aproxima a noção de terceiridade à noção de rêverie de Bion, sendo um elemento que caracteriza a estrutura complexa do psiquismo, que não pode ser reduzida a um funcionamento mental dual. É a tridimensionalidade que determina a estrutura do sujeito.

 

Green e Lacan

Talya analisa a relação ambivalente de Green com Lacan, diferente da relação com Bion, Winnicott e Melanie Klein, cujos trabalhos ele engrandeceu e procurou integrar num conjunto, preservando, entretanto, a nomenclatura freudiana. Embora impregnado pela teoria lacaniana, Green discorda de sua visão de inconsciente estruturado pela linguagem, desconsiderando as determinações corporais e o estatuto do afeto, como também de aspectos de sua prática. Ele se associa à Sociedade Psicanalítica de Paris procurando fazer um contraponto ao brilhantismo de Lacan. Segundo a autora, Green não busca privilegiar o lugar do afeto na vida psíquica, mas reequilibrar a dialética afeto-representação. Para ele o psiquismo é constituído de forças afetivas e processos que não podem ser representados pela linguagem, mas apreendidos unicamente por vias contratransferenciais, já que se manifestam no negativo, entre as linhas do discurso, entre o corpo e a linguagem. Green considera a linguagem como parte de uma teoria geral da representação, "o trabalho psíquico se dá no sentido de procurar caminhos para representar territórios que são irrepresentáveis nas suas essências: o soma e o real." (p. 155).

Talya descreve a crítica de Lacan ao conceito de relação de objeto: Vemos que para Lacan, o objeto se concretiza como objeto perdido antes de ter surgido como tal, sendo necessário considerar sua resposta à demanda e não suas qualidades específicas, (objeto bom ou objeto mau). Em sua concepção, a rigor, o desejo não tem objeto e não busca satisfação, busca meramente continuar desejando.

Interessantes articulações giram em torno da noção de falta. Para Lacan a falta é constitutiva do desejo e condição para a entrada na ordem simbólica, enquanto que para Winnicott é um espaço que deve permanecer em estado potencial, para propiciar a produção de objetos transicionais, do simbolismo no tempo, do fantasiar e do sonhar, e Green considera que a falta em si não é obrigatoriamente propulsora de desejo, podendo ter o efeito contrário. Levando em conta a irrepresentabilidade da falta, é necessária a busca de alívio das tensões produzidas pelo excesso de realidade. Para a função objetalizante exercer seu papel no processo de simbolização, a falta deve se produzir num fundo de presença continente e ele define as condições estruturantes dessa perda primordial.

Talya chega então à noção inovadora de Green (1967) de alucinação negativa, como um mecanismo negativo da estruturação subjetiva e avesso da realização alucinatória do desejo, matéria prima do sonho. Uma das consequências estruturantes da alucinação negativa é a auto reflexividade, ou a capacidade de sustentar uma conversa interna própria com um objeto internalizado. Perceber a si próprio e à realidade externa é possível quando se internaliza a própria ausência, o que proporciona ao sujeito um fundo branco para a atividade representativa.

Talya conclui após uma análise das ideias de Green sobre o brincar (jogo do Fort-Da): diferentemente de Lacan, Green abre espaço para a ilusão e o imaginário no campo da representação, inserindo o campo do afeto muito próximo do campo do movimento produzido por imagens e pelas fantasias (p.188).

Em todo o pensamento greeniano existe uma força mortífera silenciosa que luta ativamente contra as ligações que a simbolização realiza e se opõe ao processo do pensamento.

Na segunda parte do livro é descrito a construção de um modelo de psiquismo com um duplo limite a partir do eixo da clínica, e são apresentadas as teorias inovadoras de Green no campo da clínica da não neurose. A noção de limite como um novo paradigma para a psicanálise é explorada em relação às diferenças quanto à génese, traços característicos, e distinções nosográficas nos casos limites e na neurose.

A primeira aproximação ao modelo do duplo limite, é construída por Green na experiência com pacientes no limite do analisável: não necessariamente aqueles que transitam nas bordas da psicose e da esquizofrenia, mas ampliando as estruturas já conhecidas e definidas das depressões, adições, psicopatias, personalidades narcísicas, síndromes psicossomáticas e psicoses brancas, entre outras.

Na segunda aproximação (1976), Green eleva a noção de limite ligada originalmente à questão dos limites do analisável, a um conceito que nos remete aos conceitos de Bion de espaço psíquico e de continente. Talya esclarece: "O espaço psíquico se organiza gradativamente, a partir de um estado amorfo em que predomina a fusão com o objeto externo." (p. 240). O limite é pensado como uma fronteira móvel e flexível na normalidade e na patologia. Não deve ser formulado em termos de representação figurada, mas em termos de processos de transformação de energia e de simbolização (p. 242). A nova tópica agora inclui a noção de espaço psíquico que integra o espaço interno de Melanie Klein, o espaço transicional de Winnicott e o espaço externo (Outro) de Lacan. Green coloca o processo de pensamento na intersecção desse duplo limite: quando este não se constitui, as clivagens predominam.

Na terceira aproximação aos estados limite, Green descreve o trabalho do negativo e o duplo limite. Ele avalia o mecanismo da clivagem como necessário para aliviar o psiquismo. No texto "O duplo limite", de 1982, o trabalho do negativo é equiparado a um trabalho de morte que, paradoxalmente, preserva a vida. Ele tem como última finalidade a constituição de um duplo limite que estrutura o próprio psiquismo. "O psiquismo precisa incansavelmente eliminar parte de si mesmo para poder sobreviver." (p. 256).

Esse modelo contempla a dinâmica entre as duas modalidades do trabalho do negativo: a dinâmica dentro/fora que deverá interagir dialeticamente com o limite inconsciente de um lado, e pré-consciente/consciente de outro, para que as representações possam circular. As clivagens radicais interrompem esse processo, isolando os espaços. É justamente a instabilidade deste duplo limite que caracteriza os estados-limite, provocando abruptas oscilações no campo transferencial. "Os pacientes limite tem uma quantidade excessiva de pulsão de destruição desligada, que terá que ser manejada e ligada na situação de análise." (p. 251).

Talya finaliza o livro apresentando as reflexões de Green sobre a dificuldade dos pacientes-limite em usufruir os benefícios da técnica associativa clássica, e sua intolerância ao enquadre externo rígido, propondo novos caminhos para a terapêutica psicanalítica. Descreve a lógica da desesperança dos pacientes não neuróticos, onde a destrutividade caracteriza em grande parte o trabalho clínico, sendo o papel do analista sobreviver ao ódio. A clínica não neurótica ao exigir uma elasticidade técnica, desafia o funcionamento mental do analista, que se vê diante de uma ausência de interioridade, de um universo representativo empobrecido e um funcionamento psíquico que mutila o pensamento e a associação livre.

Não estamos mais na lógica da esperança, diante de uma "organização neurótica desejante, com conflitos recalcados que poderiam se dissolver ao serem projetados na transferência e interpretados num nível intrapsíquico. A capacidade mutativa parece recair no plano intersubjetivo, que demanda do analista uma reflexão sobre a sua resposta frente a esta manifestação não simbolizada. A necessidade de sustentar uma posição mais responsiva frente a uma transferência que costuma ser caótica, desafia a técnica clássica do analista (ligada à neutralidade e à abstinência) e coloca a contratransferência do psicanalista à prova.” (p. 273).

Só pelo olhar retrospectivo e introspectivo dessa história subjetiva o leitor poderá se apropriar dos entrelaçamentos e meandros que Talya nos apresenta, colocando-se na corrente de mudança em que a psicanálise pode ser renovada.

É uma oportunidade de contato com a escrita complexa, onírica e metafórica de Green, que dá um caráter poético, às vezes misterioso, à trama de sua teorização possibilitando a criação de novos sentidos.

 

Endereço para correspondência

Iliana Horta Warchavchik
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua João Lourenço, 683 cj 122
04508-031 São Paulo
e-mail: ilianaw@uol.com.br

 

[Recebido em 3.7.2010, aceito em 7.8.2010]

 

1 Membro filiado do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.