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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.4 São Paulo  2010

 

CONFERÊNCIA

 

O Anti-Narciso: lugar e função da Antropologia no mundo contemporâneo1

 

 

Eduardo Viveiros de Castro2

 

 

O Anti-Narciso é o título de um livro que nunca vou escrever, mas que brinco, à la Borges, que um dia vou. É uma espécie de versão para a Antropologia do anti-Édipo. Se Édipo é visto como protagonista da psicanálise, eu costumo provocar meus colegas de profissão dizendo que o nosso é Narciso. Nossa profissão parece obcecada em saber o que distingue "nós" dos outros. O que torna "nós", os homens, tão especiais diante do resto da criação? Ou o que diferencia "nós", os ocidentais, ou "nós", os sujeitos dos discursos antropológicos, daquelas outras sociedades que não fazem Antropologia? Não esqueçamos que Antropologia é o estudo do homem, mas, ao mesmo tempo, do homem mais diferente possível daquele que enuncia o discurso da Antropologia: o selvagem, o primitivo.

A Antropologia possui como questão fundadora determinar o critério fundamental que distingue o sujeito do discurso antropológico de tudo aquilo que não é ele, isto é, tudo aquilo que não é "nós": o não ocidental, o não moderno, ou o não humano. O que esses outros não têm que os constituem como "não nós"? E quando se trata de dizer que eles são como nós, a Antropologia experimenta esta afirmação como uma conquista: "Os outros também são como nós". Como se tudo que os outros precisassem ser, para ser alguma coisa, fosse ser como nós. Existe, na Antropologia, essa espécie de narcisismo implícito, que, ao mesmo tempo, é uma disciplina que luta contra isso e que está sempre precisamente colocando em questão o significado desse pronome tão cômodo que é o "nós", atrás do qual se escondem tantos outros. Nós, os ocidentais? Nós, os brasileiros? Nós, os homens, em oposição às mulheres? Ou nós, os humanos, em oposição aos não humanos? Na verdade, a Antropologia é uma discussão de quem somos nós. Mas não de qual é a nossa essência do humano, e sim quem diz "nós" em que condições. Não sei até que ponto isso é tão diferente da psicanálise.

A Antropologia não tem um nome tranquilo para esse outro que ela estuda: são os não ocidentais, os não modernos, os não capitalistas. É sempre um "não algo", um "não nós", definido de maneira privativa. A Antropologia classicamente gira em torno de o que esses outros não têm que os tornam diferentes de nós. Será o capitalismo a grande diferença? Ou será o individualismo? Será a racionalidade? Foi na Grécia que tudo começou? Foi em Roma que tudo começou? Foi na Revolução Industrial que tudo começou? Ou, quando se trata de opor um "não nós" que não é um humano, o que nós temos que nos torna diferentes do reino animal? A linguagem? O trabalho? O interdito, a regra? A neotenia, o córtex? A hipercorticalização, a metaintencionalidade? Ou, para reunir todas essas diferenças numa diferença mais antiga e mais tradicional, será que é a alma imortal o que nos distingue do resto da criação?

Todas essas ausências são muito semelhantes. Parece que o problema é que a própria questão – "O que nos torna diferentes dos outros?" – já contém em si a resposta: de um lado nós e, do outro, eles – os outros, que podem ser vários outros, pouco importa, porque o que nos interessa na verdade somos nós. É aí que há o narcisismo e o antinarcisismo constantes. O sujeito do discurso antropológico perguntar o que nos faz diferente dos outros já é uma resposta, porque o que importa não são eles, e sim nós. Ou seja, a Antropologia começa – esta é minha tese provocativa para os meus colegas – quando ela começa a recusar a questão "o que é próprio do homem?". Recusar esta questão, a meu ver, é o gesto inicial de uma Antropologia contemporânea. Recusar isso não quer dizer que o homem não tenha uma essência, ou que sua existência preceda a sua essência. Ou que o ser do homem é a liberdade e a indeterminação. Trata-se de dizer, ao contrário, que a questão "O que é o homem?" tornou-se uma questão impossível de ser respondida sem hipocrisia. Sem que se siga repetindo em outras palavras que o próprio do homem é não ter nada de próprio – o que nós estamos dizendo há muito tempo –, que o homem se caracteriza justamente por sua indeterminação. O homem é aquele ser a quem, por chegar por último na criação, foi dado o poder de ter todos os poderes e, portanto, o homem não tem nada de próprio. Esse é um tema clássico na Mitologia ocidental. Como é próprio do homem ser "não ter nada de próprio" parece lhe dar direitos ilimitados sobre as propriedades alheias.

Isto é uma maneira de dizer que estamos numa crise ecológica gravíssima, que é uma crise cultural, e que surge precisamente por termos colocado demais a questão "O que é próprio do homem?" ou "O que nos torna tão especiais?". O que nos torna tão especiais é que somos uma espécie que tem a capacidade de distinguir não só a si mesmo, mas todas as outras espécies do planeta, o que não chega a ser um privilégio. Essa ideia de que o próprio do homem é não ter nada de próprio é uma resposta que já tem milênios na nossa tradição ocidental, e que justifica o antropocentrismo. As ideias da ausência, da finitude, da falta, seriam como que a distinção que a espécie carrega, esse fardo, em benefício (diriam os cínicos) do restante da criação, à maneira de uma pesada condecoração. O homem seria o animal universal, aquele para quem existe o universo, se seguirmos Heidegger. Ele tem essa curiosa definição de que os seres inanimados não têm mundo, os seres animados, mas não humanos, são pobres em mundo e o homem é um ser rico em mundo. Heidegger tem uma frase famosa que diz: "Nem mesmo a cotovia vê a clareira". A clareira é essa abertura, o abismo sobre o qual o homem se debruça. Eu sempre achei curioso como Heidegger sabia que a cotovia não via a clareira. Somos levados a suspeitar que os humanos não ocidentais são apenas remediados em mundo. Porque ricos em mundo mesmo, só nós. Nós somos os humanos acabados, os milionários em mundo, os acumuladores de mundo, ou, para usar a expressão de Heidegger, os configuradores de mundo. Estranha maneira de se depreciar.

Em outras palavras, a metafísica ocidental de fato parece ser a fonte de todos os colonialismos que soubemos inventar. Acho que contra isso temos de, ao mudar o problema, mudar a forma da resposta. Contra esses grandes divisores – nós e os outros, os humanos e os animais, os ocidentais e os não ocidentais –, temos de fazer o contrário: proliferar as pequenas multiplicidades. Não o narcisismo das pequenas diferenças, aquele célebre que Freud detectou, mas o que a gente poderia chamar de "o anti-narcisismo das variações infinitesimais". Não se trata de forma alguma, como lembrou Derrida, de se questionar isso e pregar uma abolição das fronteiras que separam os humanos dos não humanos, as pessoas das coisas, os signos do mundo etc. As fantasias fusionais não estão em questão. Trata-se, de certa maneira, de tornar infinitamente complexa essa linha que separa o humano do não humano. Que bicho não é gente, até os bichos sabem, não é preciso ser gente para saber disso. Mas que essa diferença é complexa, isto está sempre em jogo.

A Antropologia começa justamente quando colocamos essas diferenças em questão, em vez de nos refugiarmos nela para, em seguida, explorarmos o nosso próprio continente e descobrirmos o que é próprio do homem. E o que a vulgata metafísica ocidental clássica entende como característico do humano é demasiado parecido com o que a Antropologia entendia como sendo característica do ocidental por oposição ao não ocidental. É suspeitamente semelhante. Por exemplo, a oposição entre um universo de imagens e um universo de conceitos; um universo em que os significados são muito contextualizados versus um mundo onde a razão aspira à universalidade; um mundo em que as pessoas vivem no presente versus um mundo marcado pela atemporalidade. Por isso que eu dizia que, no ocidente, os humanos estão para os animais assim como os ocidentais estão para os outros. Em outras palavras, estou falando de uma metafísica racista, que é a metafísica especista, que é a metafísica tout court. Como se um francês estivesse para um araweté assim como um chimpanzé estivesse para uma pedra. Ou como se um europeu fosse um primata mais neotênico do que um araweté, porque as características que distinguem um humano do não humano se mostram de maneira mais acabada entre nós. É sempre admirável a coincidência: entre todos os humanos, nós somos os mais humanos. Há que se duvidar disso.

Em outras palavras, o objetivo da Antropologia contemporânea não pode ser mais o de encontrar esses diferentes sucedâneos da glândula pineal que faz os humanos diferentes do resto da natureza. A natureza não podia ligar menos para a diferença entre os humanos e o resto da natureza, como vemos provas abundantes à nossa volta. Os antropólogos estarão mais bem ocupados estudando as diferenças que os humanos são efetivamente capazes de fazer. A diferença entre os humanos e os demais viventes é apenas uma diferença entre muitas que nós fazemos. Não é necessariamente a mais nítida, a mais estável ou a mais importante. A Antropologia tem de parar de se preocupar com o que é o humano, porque há questões que só se respondem quando não se as coloca, e essa me parece ser uma.

O filósofo, quando se vê diante de uma daquelas questões dificílimas – por exemplo, "qual é a diferença entre os humanos e os não humanos?", "o que distingue a natureza da cultura?" –, está, em geral, reduzido aos métodos clássicos disponíveis da filosofia: o virar para dentro, a introspecção, a crítica do conceito. O antropólogo tem uma vantagem: ele pode se virar para o lado e perguntar para os índios – ou seja lá quem ele estude – o que eles acham dessa questão. O interessante é que raras vezes lhe ocorre perguntar aos outros, porque ele pensa que já sabe a resposta e quer simplesmente ver como a resposta dos outros se adequa à resposta que ele já tem. Ele vai lá simplesmente conferir se os outros sabem o que ele sabe, quando a questão de descobrir se os outros sabem o que ele não sabe, em geral, não lhe passa pela cabeça. Et pour cause! Se ele não sabe, como poderia saber que não sabe? Mas o antropólogo tem essa vantagem de poder virar para o lado e perguntar. Foi isto que eu tentei fazer diante da questão fundadora da Antropologia, "o que é o humano?". Ou, para dizer de uma maneira menos genérica, "qual a diferença entre natureza e cultura? Existe diferença entre natureza e cultura? Essa diferença é estável, fixa e nítida? Ou é uma diferença instável, móvel, obscura e confusa? É uma diferença historicamente constituída? É uma diferença cultural ou uma diferença natural? Ou é uma diferença que está situada num lugar não localizável, para além da diferença que ela institui entre natureza e cultura?". Diante dessas questões, não há 36 respostas, mas umas quatro ou cinco. Algumas, a gente nunca ouviu – provavelmente esta é a aposta do antropólogo que vai para o campo. Se é para ir até o outro lado do mundo, é na expectativa de que haja respostas diferentes e – a expectativa ainda mais excitante – perguntas diferentes. E que, portanto, a questão não é de encontrar as respostas que os índios (ou seja lá quem for) dão às nossas perguntas – porque sempre entendemos que as nossas perguntas são as perguntas que todo ser humano faz –, mas colocar sob suspeita este pressuposto e imaginar que talvez as perguntas, elas próprias, sejam outras. E aí nós estamos realmente diante de um problema interessante.

O que eu estou sugerindo, antes de chegar à resposta que os índios dão a essas questões, é que temos duas concepções radicalmente antagônicas de Antropologia e, ouso dizer, de Ciências Humanas – incluindo aí Psicanálise, Psicologia, Sociologia, todas essas – entre as quais é preciso escolher. A minha escolha é clara, mas isso não quer dizer que eu ache que seja a única ou a boa. Temos uma imagem do conhecimento antropológico, ou das ciências humanas em geral, como sendo o resultado da aplicação de conceitos que são extrínsecos ao que estamos estudando. A gente já sabe de antemão, por exemplo, o que são relações sociais, cognição, psiquismo, parentesco, religião, política, economia, e vamos lá no fim do mundo para ver como essas entidades se realizam neste ou naquele contexto etnográfico. Nós temos o conceito e queremos simplesmente ver como ele é preenchido. Como sabemos, essas entidades se realizam, em geral, pelas costas dos interessados. Os interessados realizam sem realizar – no sentido inglês da palavra – que estão realizando esses conceitos. Do outro lado, como alternativa a isto – e este é o jogo de linguagem que eu proponho como sendo mais característico da Antropologia contemporânea –, uma ideia do conhecimento antropológico como envolvendo a pressuposição fundamental de que os procedimentos que caracterizam a investigação são conceitualmente da mesma ordem que os procedimentos investigados. Se os humanos são de fato todos iguais, é preciso que a nossa investigação seja algo da mesma natureza do que estamos investigando. Não podemos afirmar que os homens são todos iguais, por um lado, e retirar isso com a outra mão. Se os humanos são todos iguais, antropólogos estudam antropólogos, psicanalistas estudam psicanalistas e, portanto, não há onde colocar assimetria nessa investigação. Temos de assumir que os procedimentos de conhecimento são equivalentes – uma equivalência que produz uma não equivalência radical do resto todo. Porque aquela primeira concepção de Antropologia de que eu falava imagina que cada cultura ou cada sociedade é uma espécie de solução específica para um problema genérico da condição humana. Na verdade, a gente imagina cada sociedade como que preenchendo uma forma universal – conceito – com um conteúdo particular, esquecendo que essa forma universal é o nosso conteúdo particular.

A segunda concepção de Antropologia, ao contrário, suspeita que os problemas sejam radicalmente diversos e, sobretudo, ela parte do princípio, a meu ver fundamental, de que o antropólogo não sabe de antemão quais são os problemas que caracterizam aquela sociedade. Este não saber não é empírico. É um não saber propriamente transcendental, uma ignorância, uma nesciência constitutiva da disciplina. "Eu não sei o que interessa a eles", e não simplesmente: "Eu não sei como eles respondem ao que interessa a mim". O que a Antropologia põe em relação neste caso não são diferentes soluções culturais para um problema natural comum: "Como a solução 'proibição do incesto' a um problema universal é vivido em cada sociedade?" O que a segunda concepção de Antropologia coloca em relação são problemas diferentes, não um problema único e suas diferentes soluções. A arte da Antropologia – e eu ousaria dizer a arte das Ciências Humanas, ou o que torna as Ciências Humanas uma arte – é a arte de determinar os problemas postos por cada cultura, não a de achar soluções para os problemas postos pela nossa. Porque nós não podemos ter a pretensão ridícula de imaginar que todas as culturas estejam preocupadas com os nossos problemas e que existam, sobretudo, para resolvê-los: "Vamos ver como os índios resolvem nossos problemas de relação com a natureza". E ficamos decepcionados quando vemos que os índios, primeiro, têm outros problemas e, segundo, não resolvem os nossos. As soluções deles não servem para nós por todas as razões do mundo. Desde porque são sociedades completamente diferentes até porque não vieram ao mundo para resolver os nossos problemas. Essa é uma forte tomada de consciência, é mais uma daquelas feridas antinarcísicas. Portanto, só nos cabe saber quais são os problemas deles e como a relação dos problemas pode nos tirar de nossos próprios impasses, que não são os deles.

Em todos os sentidos, historicamente, epistemicamente, o problema que constitui a Antropologia é o das relações entre natureza e cultura. Tem-se a ideia de que todo fenômeno humano consiste numa imbricação complexa entre dimensões universais (próprias da espécie humana enquanto espécie zoológica) e dimensões culturais (próprias de cada sociedade enquanto espécie sociológica). É como se o homem fosse um ser duplo – o célebre homo duplex de Durkheim – porque possui um lado natural e um lado cultural; um lado individual e um lado social; um lado privado e um lado público. É essa ideia de que o homem é um ser dividido e só o homem é um ser dividido. Os animais e os deuses são seres unilaterais, completos, cada um a seu modo. Os animais são só corpo, só instinto, e os deuses são só espírito, só instituição. Os homens, ao contrário, têm de conviver com essa dupla herança, essa dupla tara, do macaco e do anjo e, portanto, todo o problema da Antropologia é administrar, adjudicar, alocar a parte do macaco e a parte do anjo, que são completamente opostas – ainda que em algumas culturas elas sejam a mesma. A Antropologia está assentada numa dicotomia fundadora entre natureza e cultura que tem vários avatares na história da disciplina e mesmo antes – na filosofia grega, com Physis e Nomos, por exemplo. A partir do século XVIII, a oposição "natureza e cultura" ganha mais ou menos esse nome e se torna um pouco o nome genérico para essa condição humana, dividida entre um aspecto propriamente humano e um aspecto que o homem compartilha com o resto da criação. Classicamente, está associada à polaridade fundamental no ocidente, em particular depois do Cristianismo, entre corpo e alma, em que o corpo é natureza e a alma é cultura. Em alemão, "Ciências Humanas" se diz "Ciências do Espírito", "Ciências da Alma". É a ideia de que a alma é a dimensão cultural. As Ciências Humanas não são simplesmente um ramo da Zoologia porque os homens têm alguma coisa a mais. Pode ser a menos – uma falta, uma ausência – mas é uma felix culpa, uma falta que potencializa o homem e lhe dá essa arrogância conhecida.

Diante deste quadro, a questão que o antropólogo pode se colocar – como a Antropologia colocou classicamente – é como essa oposição "natureza e cultura" se exprime nas mitologias de outras culturas e, em seguida, reconfortar-se em ver que todos os seres humanos distinguem igualmente os seres humanos do resto dos seres não humanos. Se há algo humano, é a ideia de que os humanos são diferentes dos não humanos e, com isso, pode-se voltar para casa sabendo o que já se sabia antes de sair. A alternativa a isso, como eu já disse, é virar para o lado e perguntar para o seu anfitrião, junto ao qual você resolveu morar por algum tempo. Para o índio araweté, a questão não faria o menor sentido porque eu não saberia colocá-la nesses termos para um índio araweté. Não porque ele não tenha capacidade de entendê-la, mas simplesmente porque eu não tenho capacidade de formulála numa linguagem desse tipo: "O que vocês acham da oposição 'natureza e cultura'?". Primeiro, porque eu não sei dizer natureza nem cultura em araweté. Depois, porque no dia em que eu souber, eu não preciso mais dizer, porque, de certa maneira, esta era a questão: "como se diz isto nessa língua?".

Nós temos essa ideia de que os seres humanos são um caso sui generis na criação, um animal que se autotranscendeu, e que, portanto, é animal por um lado, mas não é por outro. E toda questão é: Onde foi? Quando começou? Foi o pecado original? Foi a linguagem? Foi Édipo? Foi o simbólico? Foi o trabalho? Foi a corticalização? Foi o polegar oponível? A pergunta é: "Como é isso no mundo indígena? Será que é a mesma coisa?"

O mundo ameríndio tem um modo específico de conceber as coisas. Classicamente é o que os antropólogos chamam de animismo. A ideia de que o mundo inteiro é composto de pessoas. A espécie humana não é a única dotada das características que nós, ocidentais, damos a ela. As árvores falam ou pensam, os animais são gente (por debaixo daquela aparência animal eles se revelam, quando estão longe das nossas vistas, como sendo iguais a nós). Em suma, essa ideia de que o mundo é um mundo encantado, em que tudo é animado. Nós imaginamos, em geral, que o mundo animado é um mundo muito reconfortante e que perder essa animação do mundo é uma queda no real. A caída no real é descobrirmos que o mundo não é igual a mim. E tem-se a ideia de que os índios estão nessa fase, num estágio transicional, naquele momento em que tudo é animado. E nós imaginamos que nesse mundo tudo é muito confortável. Posso garantir que não é. Ao contrário, se tudo é humano, tudo se torna extremamente perigoso. Se todas as coisas são dotadas de intenção, de vontade, de raciocínio e de capacidade de comunicação, administrar o mundo, viver, torna-se uma tarefa muito perigosa – muito mais do que para nós, que só temos de temer nós mesmos. Se tudo é como nós mesmos, o problema torna-se muito maior. Esse animismo indígena começa por essa ideia de que todos os seres são humanos, possuem uma essência humana, por baixo de sua aparência não humanoide. É uma ideia muito comum. Os índios falam: "Os animais são gente, os animais são como nós. Eles têm essa aparência de bicho, mas quando eles saem da nossa frente, eles tiram essa pele animal, que é como uma roupa". Isto é, eles se revelam como antropomórficos, como idênticos a nós, como feitos da mesma forma. Quando se olham entre si, eles se veem como gente. Quando uma onça olha para outra onça, ela não vê uma onça, ela vê uma pessoa. E que cada espécie, na verdade – é um pouco a conclusão que você pode tirar dos mitos – é potencialmente dotada desse fundo comum de humanidade, e que toda espécie é humana para si mesma. Isto, traduzido em linguagem comum, é animismo: tudo é gente, é um mundo de fadas, um mundo encantado. E eles normalmente dizem que essa parte invisível, esse componente invisível dos animais, das plantas, das outras espécies, que é humanoide, é o que chamam de alma. A alma do animal é humana. Todos os animais possuem uma alma humana, donde a ideia de animismo. Isso tem uma alma e, tendo uma alma, essa alma é necessariamente semelhante à nossa.

Então os animais se veem como gente. Todos se veem como gente, mas isso não significa que eles nos vejam como gente, a nós, humanos. Cada espécie só vê a si como gente e não as outras, coisa que podemos, aliás, comprovar nós mesmos. Os índios estão perfeitamente conscientes de que esta característica de se ver como gente é a coisa mais bem distribuída do mundo. Então, não é um mundo em que tudo é humano. Tudo é humano, mas, ao mesmo tempo, nada é humano. Os porcos do mato, quando veem os humanos, não nos veem como gente, eles nos veem como onças ou como espíritos canibais, porque nós matamos e comemos os porcos. Se você come porco é porque você não é porco. Se você come gente é porque você não é gente. Da mesma forma, as onças, que comem os humanos, não nos veem como humanos. Elas se veem como humanas e nos veem como porcos, visto que nos atacam e comem, exatamente como nós fazemos com os porcos.

Existe uma espécie de concepção um pouco sob o modelo da cadeia trófica, da presa e do predador, em que cada ser se vê no centro, como tendo um predador à direita e uma presa à esquerda. A si mesmo, se vê como congênere, como humano. Os porcos se veem como humanos, veem os humanos como onças e veem as frutas que eles comem como porcos. Cada espécie só se vê a si mesma como gente, o que coloca imediatamente o problema que é saber, afinal de contas, o que é essa humanidade de que todos os seres dispõem. E mais ainda: coloca imediatamente o problema de que a condição humana é profundamente incerta, porque depende do olho do outro. Ou seja, a ideia tranquilizadora de que se afirmar humano é uma afirmação de chegada, torna-se muito trabalhosa. É uma conquista, uma luta constante entre os pontos de vista que povoam o universo. Porque se tudo é humano, você nunca sabe com quem você está tratando. A ideia clássica do mundo indígena é que, diante de um animal que você encontra na mata para caçar, é fundamental não enxergar o lado humano dele. Se você chegar a vê-lo como humano, ele ganhou a guerra e você passou para o lado dele. Você se tornou um animal como ele, porque foi capaz de vê-lo como humano e, portanto, perdeu a sua humanidade enquanto tal. Em outras palavras, você se tornou um animal, você está doente. Você teve sua alma raptada por aquela subjetividade alienígena. E essa metáfora da perspectiva é que me fez chamar essa configuração de "Perspectivismo": a ideia de que o mundo é diferente para cada espécie.

A primeira impressão que dá essa ideia é de um mal como o nosso relativismo cultural. Ora, os índios são relativistas – mais ainda do que nós, mais radicais. Eles não só dizem que cada cultura vê o mundo de um jeito, como extrapolam dizendo que cada espécie vê o mundo de um jeito. E não há nada de espantoso nisso, sobretudo porque a nossa afirmação supõe que o mundo não se mexe, o mundo é um só. Os pontos de vista variam, mas o mundo fica quieto. Mas se o mundo muda com a visão, estamos no relativismo, uma coisa do diabo. O diabo é múltiplo, a mentira é múltipla, mas a verdade é uma, Deus é um só. O diabo é o pai da mentira, o pai das ilusões, o pai das transformações e, portanto, o relativismo é uma coisa perigosíssima. Não é por acaso que a primeira declaração do atual Papa tenha sido uma condenação formal do relativismo como sendo a raiz de todos os males modernos. Não é a fome, não é a opressão. Tudo isso se segue do relativismo, que evidentemente é a consequência do ateísmo generalizado, da falta de Deus no mundo. Sem Deus, tudo é permitido. Então, a impressão que dá é que os índios são relativistas. Ou seja, pós-modernos. Ou seja, mais modernos que nós. Ou seja, ainda mais "nós" que nós. Já chegaram onde a gente queria, mas ainda não chegou. Isto é, mais uma vez os índios estão lá para resolver os nossos problemas. Se você, entretanto, for ver o que os índios estão dizendo, não é relativismo. Este é um exemplo clássico de que, ao perguntar para o índio, rompem-se as dicotomias que constituem as condições da inteligibilidade do mundo para nós ou, podemos chamar, as grades da prisão que nos protege. Estas grades são a ideia de uma natureza universal, um mundo exterior estável e objetivo; e uma cultura particular, um mundo interno variável e subjetivo – o mundo da linguagem, do signo, da convenção, da tradição, da educação. Do outro lado, o mundo da física, frio, impessoal, externo, extrínseco, que está lá fora e que não podia ligar menos para o que a gente acha dele. Esta é a nossa ideia de como o mundo funciona.

Os índios não estão dizendo que cada espécie vê o mundo de um jeito. Os índios dizem que as onças são gente para elas. Então, quando você vê uma onça no mato comendo o corpo de um animal que ela matou, bebendo seu sangue, eles dizem que, na verdade, não é isso que está acontecendo. A onça está tomando cerveja. Para ela, o que está ali é um humano festejando com uma cuia de cerveja. Quando você vê uma anta se espojando naqueles lamaçais que ficam na beira do rio para tirar os carrapatos, ela está numa casa cerimonial fazendo um ritual que aquela tribo pratica. E assim vai. Ou seja, os animais vivem todos sob o modo da cultura, exatamente como nós. As onças fazem o que os humanos fazem. Elas tomam cerveja; elas se casam com um parente específico que aquela tribo entende que é o parente apropriado; elas têm chefes, têm pajés, têm doenças. Há todo um processo de transmutação de perspectiva que muda completamente o conteúdo das coisas quando narradas do outro lado.

Boa parte dos mitos indígenas consiste precisamente em narrar de modo cômico os equívocos que surgem quando você passa de uma perspectiva para outra. São comuns mitos em que o índio está perdido na floresta, morrendo de fome, e encontra uma aldeia perdida na mata, de pessoas muito bonitas. Ele pede comida e ouve: "Claro! Vamos trazer para você um prato de peixe assado com batatas". O índio acha uma maravilha, mas chega uma cuia cheia de vísceras humanas cruas, sangrando. Ele diz: "Isso aqui não é peixe assado.", mas a resposta é: "É claro que é!". A conclusão do mito é a seguinte: o índio se dá conta de que se isso é peixe, essas pessoas não são pessoas. Talvez sejam onças, que comem tripas cruas, mas que veem aquilo como peixe.

Os índios não estão dizendo que é o mesmo mundo e cada espécie o vê de um jeito. Estão dizendo que cada espécie vê o mundo exatamente da mesma maneira. Todo mundo tem cerveja, tem pajé, tem casa cerimonial, tem rede. O aparelho da cultura é o mesmo. As categorias são as mesmas, os conceitos são os mesmos, o mundo é mobiliado da mesma forma, sob todos os pontos de vista. O que muda é o mundo e não o modo de vê-lo. A palavra cerveja significa cerveja para nós e significa cerveja para as onças. Mas ela não se refere à mesma coisa. Quando a onça diz cerveja, eu vejo sangue, mas o que a onça quer dizer quando diz cerveja é a mesma coisa que eu: uma bebida boa que eu tomo coletivamente e fico embriagado. Mas para um humano, aquilo não é cerveja. O problema é o inverso do nosso. Imaginamos que cada cultura vê o mundo de um jeito diferente, mas eu consigo traduzir uma cultura na outra, porque eu tenho um mundo lá fora para servir de garantia. É como se as culturas fossem vastos vocabulários de sinônimos. Qual é o sinônimo de cerveja naquela outra língua? Como se fosse passar de uma língua para outra através de uma coisa estável que está fora da linguagem e que permite que eu conecte isto com aquilo. O que os índios estão formulando é exatamente o contrário. É a ideia de um mundo homônimo e não sinônimo, em que você tem as mesmas palavras, os mesmos conceitos, mas que se referem a coisas inteiramente diferentes. Não é como dog e cachorro. É como manga e manga (manga o fruto e manga da roupa). Um antropólogo interpreta a Antropologia, normalmente, como uma tarefa de encontrar os sinônimos: "como eles dizem as mesmas coisas com outras palavras?", porque as coisas são as mesmas, o mundo é o mesmo, os problemas humanos são os mesmos. Vamos ver apenas quais são as palavras que eles usam. Vamos traduzir a linguagem deles na nossa linguagem.

E se o problema não fosse de linguagem, mas de mundo? Esta é a questão tal como a linguagem indígena formula as coisas. Do nosso ponto de vista, o que muda é o ponto de vista. O mundo permanece idêntico e estanque, há uma barreira ontológica entre o mundo e a linguagem. Para os índios, o problema não é a linguagem, é o mundo. Todo mundo diz a mesma coisa, todo mundo é gente. Para os índios, isso vai junto com o fato de que a alma é idêntica em todos os seres. Assim, todos os seres são humanos e todos os seres veem as coisas como os humanos veem. Então a pergunta é: onde está a diferença? Se as onças são gente como nós, por que nós não as vemos como gente nem elas nos veem como gente? Neste mundo, a diferença surge no corpo. Os índios dizem isso claramente: "As onças não são como a gente porque o corpo delas é diferente do nosso. A alma é igual, mas o corpo é outro." Enquanto nossa maneira de conceber é o contrário: os nossos corpos são iguais, num certo plano fundamental (somos todos feitos de carne e osso, de carbono, de DNA, é pelo corpo que nós nos comunicamos). A alma, ao contrário, é o lugar onde nos distinguimos. Temos a mesma alma imortal, mas os conteúdos da alma são o lugar onde a diferença se coloca. Donde a importância que damos à cultura, um atributo da alma, à educação, um processo de transformação da alma, e à conversão espiritual, como modelo da mudança. Para os índios, a diferença não está na alma, está no corpo. É o corpo que muda e são as afecções corporais que se tornam críticas para pensar a diferença. Por isso o corpo indígena é tão sobredeterminado esteticamente. Ele é marcado, perfurado, pintado, adornado, modificado, porque é no corpo que você tem que atuar para produzir um humano realmente humano.

Toda esta análise começou quando eu me debrucei sobre uma anedota que o Lévi- Strauss conta no Raça e história. A anedota é de Quevedo, um cronista espanhol na América do século XVI, e trata do debate entre os colonos espanhóis na época: "Os índios têm alma? Eles são humanos?" Os espanhóis mandaram uma comissão de inquérito composta por padres e teólogos para verificar, in loco, se os índios tinham ou não alma. Mandaram uma equipe de, digamos assim, protopsicanalistas, para investigar se os índios eram gente ou se só tinham aparência de gente. Enquanto isso, diz Lévi-Strauss, os índios pegavam os espanhóis que eles conseguiam capturar na guerra, matavam, colocavam em canoas cheias d'água e esperavam, para ver se o corpo apodrecia. Faziam uma experiência física para ver: "Esse pessoal é gente? Vamos ver se o corpo deles é de verdade ou se são espíritos". Lévi-Strauss diz: "Os espanhóis e os índios são tragicamente iguais no fato de duvidarem liminarmente da humanidade um do outro. Eles se equivalem num certo ponto". Ele conclui desta anedota a famosa moral paradoxal: o bárbaro é, antes de mais nada, aquele que acredita na barbárie. E pela anedota dele, todo mundo acredita na barbárie. Somos todos bárbaros, exceto, provavelmente, o antropólogo, que não acredita em barbárie. Mais uma vez: viva nós! A anedota é para mostrar que o outro do outro é o mesmo. É como se o outro do índio fosse o mesmo que o meu outro: o não humano. Em outras palavras, é na alteridade que nos assemelhamos. Essa é a ironia da anedota levistraussiana.

Entretanto, o outro do outro não é exatamente o mesmo. O problema dos espanhóis era saber se os índios tinham alma. O problema dos índios era saber se os espanhóis tinham corpo. A questão dos espanhóis não era se eles eram de carne e osso. De carne e osso, eles evidentemente eram. A questão era saber se além de carne e osso eles tinham alma. Do outro lado, para os índios, não havia dúvida que os espanhóis tinham alma, porque bicho também tem. O problema era saber se eles eram só alma, se eles eram espíritos. Então não é o mesmo problema. Ou, antes: é o mesmo problema, mas visto de maneira completamente diferente. O que tornava o humano, humano, para os espanhóis, era a alma; para os índios, era o corpo.

Na sociedade ameríndia, é a cultura que é universal. É a cultura que aproxima todos os pontos de vista, todas as espécies, todas as sociedades. O que distingue cada espécie, ou cada ponto de vista, é a natureza, ou, para usar a nossa linguagem, o corpo. É o corpo que separa, é a alma que une. Por isso nós chamamos de animistas, como poderíamos nos chamar de materialistas, ou de corporalistas, visto que nós achamos que o corpo junta tudo. Isso explica também porque temos essa obsessão com a questão da educação e da conversão, enquanto, para os índios, para alguma coisa mudar, é preciso que se aja sobre o corpo. Se todos os seres se veem como humanos, como eu produzo uma imagem propriamente humana do corpo? Se todos os seres são humanos, o que torna a minha espécie humana? É preciso que eu me constitua um corpo menos genérico que esse corpo com que todas as espécies se veem. Daí esse paradoxo tipicamente indígena, em que o índio se torna tanto mais humano quanto mais fantasiado de animal ele se mostra. É muito importante que ele pegue partes de animais diferentes e produza uma quimera, um corpo humano com os corpos animais.

Com isso, o que é especificamente humano não é o homo sapiens, como para nós. É a tribo tal. Para os arawetés a distinção entre um araweté, um caiapó e um branco não é ontologicamente diferente da distinção entre um araweté, uma onça e um tucano. A espécie humana, enquanto tal, não é a espécie natural (homo sapiens), não é uma categoria pregnante como é para nós. O que é pregnante para eles é a categoria dos sócios do próprio grupo – "humano mesmo, só eu". Há este curioso paradoxo: os arawetés dizem que os animais são gente e os caiapós são bichos, porque é uma tribo particularmente agressiva. Nós fazemos o duplo inverso disto: caiapó é claro que é gente e onça não é gente de forma alguma. Ou seja, os índios parecem mais avaros na sua extensão da humanidade e, ao mesmo tempo, de uma generosidade excessiva. Isto parece falta e excesso porque nós mesmos temos uma outra economia muito rígida do que é humano e do que não é humano. Em inglês, diz-se humankind, que é humanidade enquanto espécie, e humanity, que é humanidade enquanto condição. Em português, entendemos que a condição humana só pode ser atribuída à espécie humana. Entendemos que a condição segue a espécie. Se eu identifico algo como homo sapiens, tenho de dar a ele os famosos Direitos Humanos. Para os índios é o inverso: a condição precede a espécie. É possível, do ponto de vista desta concepção, um casamento interespecífico. Se os animais são gente, não se admira que nos mitos os homens se casem com as onças, se unam às árvores, que haja todo um tráfego.

A metamorfose é o tema fundamental indígena, enquanto para nós, o tema fundamental é a conversão. Quando entendemos que os corpos já estão conectados, a metamorfose, na verdade, não muda muito. Tanto é que podemos fazer enxerto, transplante – a ideia de trocar de corpo não nos parece absurda. Podemos imaginar a nossa alma mudando de corpo. O inverso é impensável para nós, impensável no sentido de que é uma contradição lógica: eu não posso trocar de alma e manter o mesmo corpo, pois não sou mais eu, porque o eu está localizado evidentemente na alma. Você pode pegar sua alma e jogar num corpo mais conveniente, mas você não vai querer trocar sua alma para manter o mesmo corpo. Você quer um outro corpo melhor; agora, sua alma, você acha que está muito boa. Por isso as culturas indígenas não são culturas de possessão. A ideia de almas que entram em corpos e tomam corpos não é uma ideia importante nas religiões ameríndias. É o contrário: é a saída da alma, para ocupar outros corpos, muito mais do que a entrada de almas para ocupar o seu corpo. O xamã ou o pajé indígena não é um possesso, como o médium clássico europeu ou africano, mas um "excorporador". É alguém cuja alma sai viajando, e é a alma que adota os pontos de vista diferentes das outras espécies e não um veículo para receber a alma alheia.

É como se estivéssemos diante de um mundo virado pelo avesso – o que ainda é um modo demasiado grosseiro de conceber as diferenças, mas dá uma ideia de como, neste mundo, as questões que definem a Antropologia, ou as Ciências Humanas em geral, não podem se formular na mesma linguagem. E aí fica o desafio: o que seria uma Antropologia ou uma Psicanálise ou uma Sociologia feita deste ponto de vista? Ou seja, o que acontece não é uma mudança de opinião em relação a uma essência objetiva extrínseca, natural, mas, ao contrário, uma transformação do real. Mudança não de significado, mas de referência. Não é uma mudança na linguagem, mas uma mudança de mundo. O que isto implicaria? Esta é a questão com a qual eu tenho me havido desde então. Como constituir uma contraantropologia na qual o humano não é mais uma propriedade singular, mas, ao contrário, a propriedade mais geral do universo, o fundo universal dos seres? Se pegarmos a mitologia popular darwinista de que os humanos foram animais, a animalidade é o fundo comum que nos liga ao resto dos animais. O que os índios afirmam é exatamente o oposto. O fundo comum do ser é a humanidade. A regra é a humanidade e não a animalidade. Por isso, os animais é que foram humanos. Eles continuam sendo humanos, mas agora têm uma roupa animal por cima, exatamente como nós temos uma roupa humana por cima. A humanidade do animal está sempre ali, a três centímetros de profundidade, por isso é preciso muito cuidado quando você trata com um animal, quando você mata um animal, quando você come um animal, porque você não sabe o que você está comendo. Ou melhor, você sabe. Você desconfia que saiba que aquilo não é um animal. Aquilo é uma pessoa.

A alimentação é uma região de grande ansiedade metafísica no mundo indígena por conta do fato de que tudo é humano. O canibalismo é um tema tão importante justamente porque ele é a regra e não a exceção. É preciso que ele seja produzido ritualmente, em circunstâncias específicas, de maneira literal sobre humanos de verdade, para que o fantasma do canibalismo como sendo a regra seja controlado simbolicamente. O equivalente para nós é o solipsismo, o problema do: "Só eu sou humano". É a famosa questão "como posso provar que o outro é gente?". Questão cartesiana: a única coisa que eu sei é que eu sou. A única coisa que eu posso provar, além de qualquer dúvida, porque a própria formulação já supõe a minha existência, é que eu existo. Penso, logo existo. Quanto aos outros, já não posso garantir. Eu preciso de uma hipótese adicional qualquer. Deus, alguma coisa que garanta a existência das chamadas outras mentes. É o nome que se dá hoje em filosofia: o problema das outras mentes. Como eu posso provar que meu interlocutor é gente, visto que a única consciência a que tenho acesso privilegiado é a minha? Como posso garantir que você não é um robô? Esta é uma questão que até hoje os filósofos levam a sério. O mundo indígena é o contrário. Tudo é gente, o que não falta é alma, o que não falta é sujeito no mundo. O problema justamente é como dessubjetivar este mundo, como extrair deste mundo o excesso de subjetividade para constituir um objeto. Como é que posso me individualizar diante de um mundo que é saturado de comunicação?

O problema clássico da humanidade é a falta de comunicação. Se nos comunicássemos, tudo sairia muito bem. Os índios tenderiam a dizer exatamente o oposto. É excesso de comunicação o problema. Temos de aprender a criar zonas de silêncio, a criar bolsões de proteção contra essa música de fundo, esse ruído cosmológico de fundo, que é muito alto. Como é que eu constituo um humano contra um fundo em que tudo é humano? É complicado. Para nós: como eu consigo constituir uma sociedade se eu tenho dificuldade até para reconhecer que o outro é gente? Como consigo fazer um mundo social se não consigo provar que meu vizinho é um ser humano como eu? Tenho que inferir que ele é um ser humano como eu. O problema indígena é cortar. Tudo está conectado. Para nós, ao contrário, está tudo separado, tudo é dado como separado e o problema é fazer a sociedade, a comunicação, a conexão, o contato. No mundo indígena, se é ao contrário, a Antropologia tem que ser ao contrário. Então fica a questão: e aí? Como é que nos havemos com isso? Porque uma coisa é certa: os índios são exatamente como nós. Isto é, não podiam ser mais diferentes.

 

 

1 Conferência proferida na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP em 7.3.2010.
2 Antropólogo, professor de Etnologia do Museu Nacional UFRJ.