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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.4 São Paulo  2010

 

PRÊMIOS FEPAL

 

Do menino do carretel ao menino da ilha: desafios para o conceito de transferência e desdobramentos a partir da clínica dos estados primitivos da mente1

 

Del niño del carretel al niño de la isla: desafíos para el concepto de transferencia y desdoblamientos a partir de la clínica de los estados primitivos de la mente

 

From the reel to the island: new challenges for the concept of transference and developments raised by work with primitive states of mind

 

 

Mariângela Mendes de Almeida2

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Das primeiras observações de Freud sobre a representação simbólica da vivência de separação do menino do carretel, seu netinho, ao longo de todos os inúmeros desdobramentos na compreensão do brincar infantil e do próprio desenvolvimento da técnica analítica com crianças, temos nos defrontado com expansões dos instrumentos psicanalíticos para acessar vários níveis de funcionamento mental. Este trabalho propõe um retrospecto e reflexão acerca do desenvolvimento do conceito de transferência, a partir das expansões impulsionadas pela clínica dos estados primitivos da mente. Discute-se a elasticidade do conceito de transferência, a partir de Freud, ao longo dos desenvolvimentos produzidos pela investigação psicanalítica de aspectos psicóticos da personalidade, dos estados primitivos da mente e da clínica psicanalítica de crianças com transtornos autísticos. Tais importantes desenvolvimentos da clínica, e consequentemente da teoria psicanalítica, nos permitem adentrar um campo, tido outrora, pelo próprio pioneiro, como inacessível. Vinhetas clínicas do trabalho psicanalítico com uma criança com transtorno autístico são utilizadas para ilustrar a discussão, sugerindo-se que um novo desafio para o desenvolvimento do conceito de transferência poderia consistir em incorporar (ou discriminar, suscitando formulações paralelas) aspectos primitivos do funcionamento mental que se presentificam no contato analítico.

Palavras-chave: transferência; estados mentais primitivos; autismo.


RESUMEN

De las primeras observaciones de Freud sobre la representación simbólica de la vivencia de separación del niño del carretel, su nieto, a lo largo de todos los innúmeros desdoblamientos en la comprensión del juego infantil y del propio desarrollo de la técnica analítica con niños, nos hemos enfrentado con expansiones de los instrumentos psicoanalíticos para acceder a varios niveles de funcionamiento mental. Este trabajo propone una retrospectiva y reflexión acerca del desarrollo del concepto de transferencia, a partir de las expansiones impulsadas por la clínica de los estados primitivos de la mente. Se discute la elasticidad del concepto de transferencia, a partir de Freud, a lo largo de los desarrollos producidos por la investigación psicoanalítica de aspectos psicóticos de la personalidad, de los estados primitivos de la mente y de la clínica psicoanalítica de niños con trastornos autísticos. Esos importantes desarrollos de la clínica y consecuentemente de la teoría psicoanalítica nos permiten abordar un campo, visto en otro momento, por el propio pionero, como inaccesible. Viñetas clínicas del trabajo psicoanalítico con un niño con trastorno autístico son utilizadas para ilustrar la discusión, sugiriéndose que un nuevo desafío para el desarrollo del concepto de transferencia podría consistir en incorporar (o discriminar, suscitando formulaciones paralelas) aspectos primitivos del funcionamiento mental que se presentan en el contacto analítico.

Palabras clave: transferencia; estados mentales primitivos; autismo.


ABSTRACT

From Freud's initial observations about his grandson's symbolic representations of separation experiences, through playing with the reel, to significant conceptual and technical developments within the area of child analysis and play, we have been faced with expansions of psychoanalytic instruments in order to access different levels of mental functioning. This paper proposes a retrospect and reflection about the development of the concept of transference, considering expansions allowed by clinical practice with primitive states of mind. The scope and elasticity of the concept of transference are discussed, with Freud as a reference point, throughout the developments produced by psychoanalytic investigation of psychotic aspects of personality, primitive states of mind, and the psychoanalytic work with children with autistic disorders. These important developments in clinical practice, and consequently developments in psychoanalytic theory, allowed us access to this field, previously considered unreachable by the pioneer of Psychoanalysis himself. Clinical vignettes of psychoanalytic work with an autistic child are used to illustrate the discussion, suggesting that a new challenge to the development of the concept of transference could consist in incorporating (or discriminating, creating parallel formulations) primitive aspects of mental functioning which are present within analytic contact.

Keywords: transference; primitive states of mind; autistic spectrum disorders.


 

 

Introdução: transferência, transpondo novas fronteiras?

Este artigo faz parte de uma série de reflexões e contínuos desdobramentos acerca da elasticidade possível presente no conceito de transferência, a partir da prática clínica com estados autísticos. Haveria a necessidade de formulação de novos parâmetros conceituais para abarcar os movimentos que caracterizam o que emana de rudimentos mentais primitivos para um campo de captação e amplificação em uma outra mente? O conceito de transferência evocaria novas formulações a partir de novas expansões da clínica psicanalítica?

A partir das concepções iniciais de Freud (1916-1917/1924), consideram-se como base para este possível trânsito, os desenvolvimentos produzidos pela investigação psicanalítica de aspectos psicóticos da personalidade (Bion, Rosenfeld), dos estados primitivos da mente (Klein, Meltzer, Tustin, Mitrani, Korbivcher), das expansões e presentificações na clínica dos conceitos de Bion (Korbivcher, Ferro), e principalmente da própria clínica psicanalítica de crianças com transtornos autísticos (Alvarez, Reid).

Desenvolvimentos significativos da clínica, e consequentemente da teoria psicanalítica, nos permitiram adentrar esta seara primitiva, tida outrora pelo próprio pioneiro, como inacessível. A partir das investigações e inquietações do trabalho psicanalítico com estados psicóticos, núcleos psicóticos da personalidade, funcionamentos borderline e estados fronteiriços, também vem se desenvolvendo continuamente a investigação e tratamento, com as devidas diferenciações conceituais e técnicas, dos estados autísticos.

Entretanto, podemos pensar que, já em Freud, alguns esboços seminais sugerem, mais do que uma postulação de inacessibilidade, uma abertura de campo em que os instrumentos clínicos podem estar sempre em expansão, impulsionando mudanças conceituais e técnicas. O próprio conceito de transferência pode aqui ser um exemplo, já que se mostra bastante incorporador de desenvolvimentos na teoria e na técnica psicanalíticas. Verificam-se mudanças quanto à sua própria função no tratamento analítico, de núcleo da resistência e evento inconveniente a instrumento e ferramenta nuclear do processo terapêutico. Igualmente aparecem mudanças em relação à questão da analisabilidade de pacientes psicóticos, ou em relação à possibilidade de instauração da transferência imediata no tratamento de crianças a partir do brincar e da utilização do conceito de fantasia, núcleos das controvérsias entre Anna Freud e Melanie Klein. Mais recentemente, novas discussões reacendem a polêmica, agora no cenário da possibilidade de o bebê "transferir" para o cenário de novas relações (inclusive terapêuticas em contextos marcados pelo olhar psicanalítico), aspectos característicos de suas inscrições relacionais anteriores.

 

Transferência: percursos e transformações

Declarações iniciais de Freud quanto à inviabilidade da transferência nas originalmente chamadas neuroses narcísicas, são constantemente lembradas. Um aspecto do discurso freudiano original frequentemente difundido é o de que com psicóticos o mecanismo de cura que efetuamos com outras pessoas não poderia ser executado. Em relação ao psicótico, nada poderia ser feito a seu favor (Freud, 1916-1917/1976d). Ao considerar como não analisáveis as condições psicóticas, Freud justificava-se com o fato de tais pacientes ocuparem-se narcisicamente com seus próprios pensamentos e construções psíquicas, negligenciando completamente o mundo externo, inclusive o analista (Hinshelwood, 1991).

Por outro lado, num contexto já marcadamente relacional, a partir de suas explorações psicanalíticas junto à condição histérica, Freud (1916-1917/1976d) observou a transferência para a pessoa do analista das relações do paciente com suas figuras significativas originais. Com o desenvolvimento de suas ideias, tais objetos externos foram adquirindo cada vez mais configurações internas e psíquicas, como tais, podendo ser vivenciadas de maneira parcial, cindida, ambivalente (Klein, Strachey, Meltzer, Joseph). Analistas neokleinianos prosseguiram no sentido de que, ao trabalharmos com a transferência, estamos integrando ao mesmo tempo passado e presente, vivenciando com o paciente configurações que podem ser compreendidas apenas quando vividas em toda sua extensão no presente com o analista (Malcolm, 1988). A ênfase nas relações objetais e nas representações internas a serem transferidas é usualmente evidente, e talvez nos mobilize, compreensivamente, a excluir deste campo aspectos menos discriminados de funcionamento mental. Anne Alvarez (1994), entretanto, nos amplia o cenário, quando se pergunta, em um longo tratamento de um garoto autista, "com que tipo de objeto, ou quase objeto, ou não objeto ele está se relacionando ou deixando de relacionar-se?" (p. 201). Inclui-se aqui a possibilidade de sermos fisgados por aspectos de funcionamento mental não relacionais no sentido objetal propriamente, mas que se apresentam ao contato e se manifestam ali, na interface conosco. Tais vivências, corpóreas e concretas, parecem se reproduzir/repetir/(transferir?) para o contexto analítico , mesmo que não estruturadas ainda como um brincar simbólico e representacional.

Como chamar este tipo de transposição? Comunicação primitiva? Tropismo? Colocação em cena? Transferência maciça? Transferência de aspectos primitivos? Projeção maciça? Algo próximo ou muito diferente da identificação projetiva no sentido primitivo utilizado por Bion como primeiras tentativas de comunicação do bebê a serem acolhidas pela mente pensante e continente da mãe em estado de rêverie? Alguma sugestão dos leitores?

Tais aspectos, não configurados como objetais no sentido da discriminação eu-outro, podem ser melhor compreendidos no cenário das contribuições de Daniel Stern (1992) sobre os incipientes sensos de self e outro, sobre rudimentos em formação que tanto dependem dos fertilizantes intersubjetivos nos inícios da vida do indivíduo e nas possibilidades de desenvolvimento de vida psíquica quando existem transtornos relacionais significativos. Antonino Ferro também nos instrumenta clinicamente para acompanhar o que ele conota como os transfers, o vaivém de fragmentos emaranhados de sensorialidade, de protoemoções, trânsito que permite a tessitura transformadora de obstruções, a formação de habitantes de um mundo interno e a construção da capacidade de gerar instrumentos para o pensar.3

Seriam estes processos evocados/transferidos pelo paciente ou captados/encorpados/(construídos?) pelas redes de nossos cada vez mais refinados sensores contratransferenciais? Mas ora, não é assim, pela antecipação, pela suposição de intencionalidades, que a comunicação e a subjetivação do indivíduo humano inicialmente se estabelecem? Mesmo que não classicamente "transferidos" pelo paciente, algo em estado bruto emerge no analista em contato com estados mentais primitivos, disparando a necessidade de representação ou o reconhecimento do impacto sensorial clamando por reconhecimento psíquico.

Korbivcher (2008), em seu empenho para situar os fenômenos autísticos em relação ao funcionamento mental descrito por Bion, retoma a noção de tropismos psíquicos como a área em que se constitui a matriz da mente, a partir de movimentos de aproximação e de afastamento do organismo com relação à fonte de estímulos, e que dependem de encontrar no objeto a possibilidade de transformação (modulação, regulação, substituição do registro sensorial pelo psíquico relacional). Poderíamos supor que, em situações de não desenvolvimento psíquico, os tropismos em sua variedade de evocações de resposta e níveis variáveis de transformação, também se constituem num repertório a ser transferido para novos contextos? Neste caso, da mesma maneira como ocorre a partir da noção corrente de transferência, haveria então, no contato analítico, novas chances de resposta e rearticulações que dependeriam, entretanto, do grau de cristalização das redes já formadas, permeabilidade do aparato psíquico a novas ligações e sensibilidade nossa para captar mínimas áreas de interesse vincular e brechas para o desenvolvimento relacional. Neste campo, a interface entre a psicanálise e as neurociências parece oferecer possibilidades fascinantes de investigação conjunta.

Em imagem onírica anteriormente compartilhada (Mendes de Almeida, 2008a) sugeri a cena de antenas parabólicas, de natural e esgarçada trama, em posição de contradança, para me referir à importância do radar contratransferencial frente às sutilezas e aos aspectos rudimentares da intersubjetividade em construção, que acredito serem fundamentais no trabalho analítico contemporâneo. A continuidade de um possível refinamento de nossas percepções a respeito do que nos é comunicado ou do que emerge em nós no contato com estados primitivos, nossos ou de outros, provavelmente permita no futuro criar novas discriminações e formulações ou expandir o conceito de transferência de maneira mais fundamentada, tanto clínica quanto teoricamente.

 

Ilustração clínica: movimentos do menino da ilha

Acompanho Diego em análise desde os oito anos. Está aqui presente aos doze, tendo apresentado importantes evoluções quanto à sua dificuldade de contato relacional, intensa agitação motora, estereotipias gestuais e verbais e manifestações de terror extremo desde pequeno. Oscila entre momentos fugazes de aproximação possível e intensa evitação de contato. Apresento-o como parte deste percurso de discriminação e tentativa de aprofundamento da questão evocada neste artigo, através de algumas vinhetas clínicas comentadas. Trago-as como um estímulo para refletir principalmente sobre a expressão de elementos transferenciais nos quadros caracterizados como fazendo parte do espectro autista. Trata-se de uma aproximação talvez mais alegórica e poética, quem sabe fruto de nosso processo de rêverie como analistas, anterior a um momento de conceituação formal, mas que representa para mim uma expressão viva da clínica com estas crianças.

Diego, após pedir água na sala de espera, pega o copo avidamente, enquanto pergunto a ele se está tudo bem. Diego, que nem sempre responde às perguntas, e em geral se mostra agitado e enrijecido, dá um "golão" e faz um som de gargarejo, emendando uma resposta "Tudo". Com o som do gargarejo, tenho a impressão inicial de uma autoestimulação sensorial, mas depois me impacta de forma muito mais intensa o contrafluxo de sua intenção de resposta, com o qual me surpreendo e me percebo alegre, dizendo: "Ah, você está querendo responder!"

Alegoricamente, penso numa transferência visceral, percorrendo o caminho gutural para se articular enquanto linguagem no reconhecimento do contato. Nossa presença como outro/analista, por vezes não notada no início do processo analítico com esses quadros autísticos, como algo que permanece fora do organismo do paciente, com o tempo passa a fazer parte dos ingredientes de assimilação do mundo, aos poucos vai, paradoxalmente, se misturando e se discriminando do fluxo de deglutição dos elementos da atmosfera sensorial que são incorporados pela criança. A resposta vem no contrafluxo, entremeada com o gargarejo que inicialmente parece sensorializar o líquido que entraria se esparramando. Ao mesmo tempo, a tonicidade do gargarejo (referência ao lúdico das experiências primitivas de balbucio?) parece indicar o movimento visceral, de formulação de linguagem, via palavra, de resposta ao meu cumprimento e reconhecimento de minha presença.

O rudimento vincular, berço incipiente de possíveis movimentos/transferências de algo de si para aquele contexto, nestes casos, parece se dar num contexto de entrada, ao mesmo tempo precária e maciça de algo de fora, como marca da presença do outro, gerando a percepção da necessidade e possibilidade de comunicação, discriminada do fluxo automático da continuidade eu-outro.

Num outro momento, após pegar panelinhas, me convidar para fazer comida e juntar dois bules lado a lado, Diego olha fixo para frente, olhar parado. Fica assim por uns segundos. Sinto-me intrigada e pergunto: Que será que o Diego está sentindo?

D – Vai ter uma reunião!... (Levanta rápido da mesa) Já acabou! (Fica inquieto se movimentando ao redor da mesa em que estávamos). "Riuní!"

Analista: Vai ter uma reunião?... Aqui também tem uma reunião. Você está juntando a gente, a gente está junto, fazendo uma comidinha junto.

Transferência é "reunião" e Diego parece notar algum movimento de si para o outro/a analista quando anuncia: "Riuní!". Reunião rápida, transferência fugaz que começa e "já acabou". ("Agora anoiteceu!" ele comenta em vários outros frequentes momentos). Entretanto, tais registros parecem ir aos poucos tecendo laços através da memória, e percorrendo redes de lembranças, de momentos juntos, da possibilidade de juntar, de forma discriminada, o eu e o outro.

"Mari, o que é um grande passo?" – pergunta Diego, convocando-me pelo nome, após a conversa sobre a "reunião".

A – Estamos falando dos seus grandes passos, como muita coisa está diferente, você está conversando mais, está gostando mais de estar junto. (Faço também um "grande passo" com o bonequinho de sua caixa.) O Diego está dando grandes passos, está se aproximando mais das pessoas, talvez você esteja ouvindo das pessoas que você está dando um grande passo.

Diego pega o bonequinho e o faz "voar", dizendo: Ih! Ele está na ilha!

A – É o Diego na ilha? (Diego mexe o boneco como um faz de conta) Acho que é o Diego brincando que o boneco está na ilha (enfatizo a palavra "brincando").

Diego começa a fazer um barulho alto estridente e contínuo com sua voz, que dificulta nossa conversa. Comento: O barulho faz o Diego ficar na ilha, ficar sozinho, isolado, longe!

Diego começa a bater com os lápis na mesa, ritmicamente, repetidamente e quase ensurdecedoramente. Seus lábios sustentam um meio sorriso. Seus olhos brilham, numa expressão de êxtase, parados, quase não me olham. Falo, mas sem certeza de ser ouvida: O Diego fica na ilha com seu barulho alto, sozinho.

Diego volta seus olhos para mim, quase que num movimento de "enganei você", dizendo, rindo:

D – É samba, Mari!

A – É, pode ser samba, de ficar junto, ou pode ser barulho alto, que deixa o Diego na ilha...

A transferência denuncia a não solidão, faz passar da solidão da ilha e dos barulhos altos ensurdecedores que "incluem" afastando, isolando, ao contato representacional e protossimbólico, expresso na possibilidade (potencial) de compartilhar a música-samba e as representações simbólicas da cultura dos humanos. A transferência, ora maciça, ora sutil, incipiente e amplificada por nossos sensores contratransferenciais, parece se fazer presente e sim, se fazer possível.

 

Considerações finais: do menino do carretel ao menino da ilha, novos desafios

Como tentei reproduzir no material clínico, imagens se criam e criam vida no contato e na emergência de rudimentos de uma construção protossimbólica conjunta que realizamos a cada momento com nossos pacientes, a partir de demandas que surgem no encontro, considerando os vários gradientes possíveis de funcionamento mental, muitas vezes em alternância e oscilação.

Prosseguindo no percurso das transformações incorporadas ao conceito de transferência, quem sabe agora estejamos diante de um novo desafio: como nos relacionar com a demanda clínica do contato com estados primitivos da mente, como configurá-la em termos do que é ou não "transferido", re-colocado na cena analítica, neste momento em que nossas ferramentas contratransferenciais vêm alcançando um grau de refinamento crescente? O campo e a cena em que encontramos nossos pacientes e seus movimentos na sessão analítica podem incluir agora não só personagens subjetivados em estados mentais elaborados, mas partes de personagens, construções narrativas em vários níveis de organização, temas, climas, tons, coloridos emocionais ou protoemocionais que se configuram como holografias afetivas de funcionamentos internos ou de funcionamentos do par (Ferro, 1995), nuances, texturas, aspectos sensoriais pré-verbais, que se apresentam à nossa exploração intersubjetiva e tentativa de acesso.

Em debate recente organizado pelos editores de uma de nossas publicações científicas (Barone, 2008), foi proposta a interessante polêmica: Transferência ou Transferências?, formulação que sintetiza e propõe, em termos amplos, questão semelhante à que venho desenvolvendo quanto às nuanças de manifestação do conceito de transferência nos transtornos autísticos (Mendes de Almeida, 2006, 2008b).

Retorno agora à instigante questão de Anne Alvarez (com que tipo de objeto ou quase objeto ou não objeto um paciente autista está se relacionando ou deixando de relacionar-se?). A resposta que seu paciente pôde verbalizar, após longos anos de tratamento, foi igualmente interessante: uma rede esburacada. É justamente neste contexto de contato rudimentar, relação também esburacada com um objeto interno do tipo rede esburacada, que podemos pensar sobre a transferência/ou algo novo conceitualmente para estes estados, que possa abrigar mais "esburacamentos" do que aqueles a que um conceito hermético e saturado se prestaria. Creio, aliás, que a maturidade do conceito de transferência tem evoluído no sentido da inclusão de aspectos cada vez mais abrangentes e estruturais do funcionamento psíquico, sem, entretanto, perder sua peculiaridade, legitimidade e consistência clínica, cautela também importante em nosso meio. Como então não incluir os aspectos mais primitivos do funcionamento mental em suas formas peculiares de "transporte" e "evocações" no contexto do contato entre mentes e aspectos mentais de variadas configurações?

Das primeiras geniais observações de Freud (1920) sobre a representação simbólica da vivência de separação do menino do carretel, seu netinho, ao longo de todos os inúmeros desdobramentos na compreensão do brincar infantil e do próprio desenvolvimento da técnica analítica com crianças, temos nos defrontado, portanto, com expansões dos instrumentos para acessar não só "meninos do carretel", mas também "meninos da ilha", ou aspectos-meninos-ilha mesmo em crianças não tão comprometidas, de forma a situar seu tratamento no âmbito da complexa diversidade de esferas do funcionamento mental.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Mariângela Mendes de Almeida
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Escobar Ortiz, 628 | Vila Nova Conceição
04512-051 São Paulo, SP
e-mail: mamendesa@hotmail.com

 

[Recebido em 5.10.2010, aceito em 29.10.2010]

 

 

1 Prêmio "Niños y adolescentes" do XXVIII Congresso da FEPAL, em Bogotá, 2010.
2 Membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Mestra pela Tavistock Clinic e University of East London, Supervisora e Docente no Setor de Saúde Mental, Pediatria, UNIFESP e Docente no Instituto Sedes Sapientiae.
3 Ferro, A. (2008). Variações sobre transferência e contratransferência. Texto traduzido por Marta Petriciani.