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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.4 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

O diálogo transicional na psicanálise de crianças: implicações clínicas de uma redescrição conceitual

 

El diálogo transiciónal en el psicoanálisis de niños: implicaciones clínicas de una redescripción conceptual

 

Transitional dialogue in the psychoanalysis of children: Clinical implications of a conceptual redescription

 

 

Roberto Barberena Graña1

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo pretende exemplificar clinicamente uma proposta de prática psicanalítica que desprivilegia, e eventualmente prescinde, da atividade interpretativa tal como foi – afastando-se do modelo freudiano – descrita e empregada pelos analistas de crianças, kleinianos e annafreudianos, ao longo do século antecedente. Dirigindo sua crítica ao preconceito significacionista que impõe interpretar o inconsciente profundo da criança para oportunizar a produção de insights, o autor apoia-se nas contribuições de Ferenczi, Winnicott e Lacan para enfatizar a importância das noções de presença, playing, e interregno a fim de assegurar a eficácia clínica do trabalho analítico realizado durante os anos da infância.

Palavras-chave: psicanálise de crianças; diálogo transicional; indicação lúdica; testemunho presencial.


RESUMEN

Este estudio pretende ejemplificar clínicamente una propuesta para la práctica psicoanalítica que no privilegia, y finalmente prescinde, de la actividad interpretativa como lo fue – lejos del modelo freudiano – descrita y utilizada por los analistas de niños, annafreudianos y kleinianos, durante el siglo anterior. Dirigiendo su crítica para el prejuicio significacionista que requiere interpretar el inconsciente profundo del niño para crear oportunidades de producir insights, el autor se apoya en las contribuciones de Ferenczi, Winnicott y Lacan para subrayar la importancia de las nociones de presencia, playing, intervención e interregno para garantizar la eficacia clínica de trabajo analítico durante los años de infancia.

Palabras clave: psiconálisis de niños; diálogo transicional; indicación lúdica; testimonio presencial.


ABSTRACT

This study seeks to clinically exemplify a proposal for psychoanalytic practice which underprivileges, and eventually dispenses, the interpretative activity as it was – steering away from the Freudian model – described and employed by analysts of children, both kleinian and annafreudian, along the previous century. Directing his criticism to the significationist prejudice which imposes the interpretation of the deep unconscious of the child in order to create opportunities for the production of insights, the author relies on the contributions of Ferenczi, Winnicott and Lacan to emphasize the importance of the notions of presence, playing, intervention and interregnum, with the intention of ensuring the clinical effectiveness of analytical work during the years of childhood.

Keywords: psychoanalysis of children; transitional dialogue; playing statement; testimony in person.


 

 

No artigo teórico que antecedeu ao presente escrito (Graña, 2010) detive-me em caracterizar descritivamente um modelo procedimental, ou atitude clínica, na psicanálise de crianças que propus denominar diálogo transicional, o qual toma como instrumentos privilegiados duas modalidades principais de intervenção às quais me referi como "indicação lúdica" e "testemunho presencial".

Neste segundo momento do mesmo estudo proponho-me a exemplificar, comparar e contrastar três estilos de ação terapêutica que demonstram ser pragmática e fenomenologicamente compossíveis, evidenciando clinicamente o seu potencial de suplementaridade, na acepção derrideana da palavra (Derrida, 1967a). Refiro-me, e na sequência irei examiná-las particularmente, à interpretação na metáfora, à abordagem não diretiva e à interpretação a partir do papel.

 

A interpretação na metáfora

O diálogo transicional foi habilmente desenvolvido e utilizado por um psicanalista cuja obra sofre a grande injustiça de não ser suficientemente conhecida dos analistas de crianças de maneira geral: Rudolf Ekstein.

Austríaco imigrado na época da Segunda Grande Guerra, Ekstein, que era doutor em filosofia e psicanalista de crianças e adultos, desenvolveu sua investigação e deu forma a suas ideias nos EUA, onde viveu e trabalhou até o final de sua longa vida, orientando projetos de pesquisa sobre as psicoses e estados fronteiriços da infância na Escola Southard de Topeka, Kansas, e no Centro Reiss-Davis de Los Angeles, Califórnia.

Voltado para o estudo e o atendimento de crianças com patologias graves, Ekstein desenvolveu uma abordagem clínica teoricamente articulada em torno da noção de "distância". Ele propõe que a distância afetiva e comunicacional que o paciente impõe ao terapeuta durante a sessão analítica é a mesma que ele tenta manter da zona álgida protegida que envolve o núcleo de seus conflitos emocionais. Quanto maior a ameaça vivida pela criança na transferência, mais primitivo e bizarro será o comportamento dela na sessão e mais distante do analista e de seus problemas ela se colocará. Quando se sentir menos ameaçada pela presença do analista ou por suas tentativas de aproximação, mais integrada ela se encontra e mais acessível ao contato e ao trabalho analítico irá se mostrar.

Atento à flutuação dos afetos e do nível de integração egoica das crianças psicóticas e fronteiriças graves (esquizofrenoides), Ekstein propôs uma modalidade interpretativa que denominou "interpretação na metáfora". Em seu livro La Psicosis Infantil (Ekstein, 1966), dedicado ao estudo desta forma de intervenção, ele defende o seu emprego e esclarece as razões da sua utilização:

Ainda que esta, como toda interpretação, tenha seus perigos, nós destacamos que o uso da metáfora deve ser considerado como uma técnica essencial para estabelecer gradualmente a comunicação e o insight inicial com pacientes fronteiriços e esquizofrênicos, mas que não deve ser tomada como uma técnica de tratamento em si mesma. ... O uso da metáfora deriva seu valor primário de manter contato com pacientes que se encontram em perigo constante de ver-se inundados pela invasão de material oriundo do processo primário. Em tais pacientes a estrutura egoica está tão fragmentada que parece constituída por ilhotas isoladas de funcionamento do processo secundário que se encontram em constante perigo de ser inundadas temporalmente por formas arcaicas de pensamento, sendo capazes de regredir para permitir a reassunção do funcionamento adaptativo em áreas limitadas. Em tais instâncias a metáfora pode ser considerada uma ponte entre as ilhas remanescentes do funcionamento egoico. ... A metáfora utiliza material do processo primário, manipulando-o efetivamente, mas traduzindo ou elevando seu significado à linguagem do processo secundário. ... Como o sonho, a metáfora permite ao paciente manter a distância necessária para sentir que o significado do sonho/metáfora é ego-distônico e não lhe é realmente aplicável. Só gradualmente o significado é aceito como parte da realidade interna. (p. 431)

Embora Ekstein apresente a interpretação na metáfora como um artifício ou recurso que deve ser considerado e utilizado apenas em determinadas fases do tratamento – especialmente aquelas que espetaculizam um estilhaçamento da unidade egoica da criança – o abandono progressivo das formas de intervenção mais intrusivas e explicativas, que foram substituídas pelas intervenções "minimalistas", conforme exemplificado na primeira parte deste estudo, pelos "rabiscos" (pontuações, trocadilhos, interjeições, grifos etc.), conduziu cada vez mais a um uso privilegiado da metáfora no trabalho analítico, sobretudo com os assim chamados transtornos narcisistas, ou patologias do self, que constituem hoje parte significativa das crianças e adultos que vemos em análise.

A transcrição de um extrato clínico utilizado por Ekstein para exemplificar as flutuações do nível de integração egoica e a vigência e falência da metáfora, em uma sessão de psicoterapia com uma menina psicótica, nos permitirá visualizar o movimento da metaforização na sustentação do diálogo analítico, sua eficácia enquanto indicação lúdica operando no campo transicional e a distância que se instala entre paciente e analista nos momentos em que, por inabilidade da segunda, ela subitamente se desfaz.

Ana tem dez anos e está em vésperas de receber uma visita da mãe e do padrasto na escola terapêutica que frequenta. Reproduzirei abaixo um trecho de sessão, relatada por sua analista, em que a angústia que antecede a este encontro sinalizará a emergência da questão principal de Ana:

Ana pediu-me um cigarro e começou a inalar. Fez-me ver com certo orgulho que bem podia fumar agora, e eu comentei que já não se afogava nem quase vomitava ao inalar. Quando disse a palavra "vomitar", Ana sobressaltou-se e pareceu um pouco assustada, mas depois me assegurou que já não se alterava quando eu dizia essas coisas. Concordei em que talvez isso já não acontecesse, mas apontei que desta vez ela tivera um sobressalto. Ana disse que se assustou, mas que já não se incomodava como antes. Perguntei como era antes e Ana disse que sentia como se tudo lhe formigasse por dentro, com tremores que subiam e desciam pelas costas. Então, começou a fazer muitas perguntas. São bem mansos os esquilos? Eu respondi que não eram bem mansos, já que eram pequenos animais selvagens. E eu, gostava dos esquilos? Sim. Poderiam eles ser domesticados se fossem adquiridos recém-nascidos? Sim, eu acreditava que sim. Como seriam, então, quando mansos? Eu disse que provavelmente tomariam as nozes de sua mão. Ana esperou um minuto e depois perguntou sobriamente: "Quando virão os meus pais Dorothy"? E em seguida indagou: "Os esquilos mordem Dorothy?". "Sim, eles o farão se forem molestados". "Mas se um esquilo é manso, então não morde, não é?". "Não, suponho que não". "Dorothy, tu achas que eu sou um esquilo pequeno?". "Sim, tu o és, Ana". "Então eu vou ser um esquilo Dorothy, e virei até a ti e tu me darás uma noz". Eu concordei e então brincamos que ela receberia as nozes de mim e as colocaria num monte. Ana fez muitas perguntas mais sobre os esquilos e eu lhe disse que talvez os esquilos estivessem fazendo perguntas quando tagarelavam tanto. Ela então perguntou se os esquilos se irritavam e eu lhe assegurei que sim, e que quando se aborreciam tagarelavam mesmo. Ana quis saber se era como quando ela se irritava com sua mãe. Eu lhe disse que sim, que era assim, só que ela não era um esquilo tagarela. Em vez de tagarelar, quando se irritava ela deixava excrementos sobre as cadeiras e fazia outras coisas para mostrar sua raiva da mãe. Agora, o meu pequeno esquilo pode tagarelar quando está irritado.

Ana correu ao redor da sala como um esquilo, retornando de vez em quando, tagarelando sem parar. Voltou com suas perguntas sobre quão manso era um esquilo e assim seguiu. Só se aproximava de mim o suficiente para pegar as nozes. Eu me interessei em saber se o esquilinho sentia-se assustado quando se aproximava das pessoas. Ana perguntou o quanto um esquilo se aproximava. Eu respondi: "Somente o suficiente para pegar as nozes. Um esquilinho não pode se aproximar o suficiente para acocorar-se como um gatinho ou encostar-se na gente como um cachorrinho". Ana correu por alguns minutos, em silêncio, e de repente parou a certa distância de mim, com uma expressão séria e pensativa. Estava inteiramente em contato. Então disse: "Dorothy, que tipo de pessoa é a minha mãe?". Eu lhe disse que não sabia ao certo. Que tipo de pessoa ela imaginava que era sua mãe? Ana disse que sua mãe não era como qualquer outra mulher. Eu perguntei: "Em que é diferente a tua mãe?". Ana disse: "Bem, o amor da minha mãe é rígido, não é como o da sra. A., cujo amor é amistoso e suave. Eu gostaria que senhora A. fosse a minha mãe". E continuou desesperadamente: "Minha mãe não é como a mãe das outras crianças que vêm aqui. Elas são amistosas, acariciam o cachorro, e a minha mãe nunca acaricia o cachorro, a menos que eu lhe diga para fazer isso. Ela nunca se entretém com as crianças. Minha mãe nunca sorri". E uma vez mais Ana repetiu: "O amor da minha mãe é muito rígido Dorothy". Eu disse a Ana que a meu ver ela estava dizendo algo muito importante. Sem dúvida ela sentia que o amor de sua mãe era rígido, enquanto todas as meninas desejam uma mãe efusiva, amorosa, amistosa. Mas afirmei que algumas mulheres simplesmente não podiam dar este tipo de amor. Talvez sua mãe fosse uma dessas pessoas. Ana disse acreditar que a sua avó a queria mais que sua mãe. Eu afirmei estar segura de que sua avó podia demonstrar-lhe o seu amor de forma calorosa e amistosa, enquanto sua mãe não podia fazê-lo. Isto não significava necessariamente que sua mãe não a amasse, mas podia significar que não lhe era possível ser doce e amistosa. Talvez esta fosse uma das razões pelas quais ela estivera tão irritada com sua mãe.

Ana saltitou mais um pouco e depois foi até o espelho. Cuspiu muita saliva no espelho. Outra vez estava fora de contato, retorcendo-se e grunhindo. Parou por um momento e me pediu que me aproximasse dela. Pressionou fortemente seus lábios contra o espelho e no reflexo eu podia ver como tirava e colocava a língua, achatando-a contra o espelho. Ela disse: "Vês Dorothy? Sou um caracol". Eu disse: "Sim, és um gracioso caracol bebê". Começou a succionar fortemente o vidro, parando de vez em quando para dizer: "Vês Dorothy? O caracol succiona sua comida". Eu disse que a sucção era maravilhosa, já que o caracolzinho se alimentava desta forma. "Pobre caracolzinho. Espero que obtenha alimento suficiente. Espero que o pequeno caracol não necessite succionar e succionar sem conseguir alimento suficiente para se manter bem. Isso seria terrível". Ana se aproximou da janela, sentou-se no sofá pequeno e disse: "Quando virá a minha família Dorothy?".

 

A abordagem não diretiva

Em meados dos anos 1960 Winnicott escreveu a resenha de um livro publicado nos Estados Unidos por uma psicoterapeuta de crianças, que não era psicanalista, mas que observava atentamente a atitude dos pequenos pacientes, testemunhava tudo com sua presença discreta e comentava o brinquedo e as falas destes de forma simples e coloquial – raramente interpretava. Ele teceu a ela entusiásticos elogios; tratava-se de Virginia Axline.

O que Winnicott escreve sobre o livro Play Therapy (Axline, 1947) denota sua evidente simpatia pelas intervenções breves, que favorecem a experiência emocional da relação presente, mais que pelas interpretações "profundas" e extensas com pretensões histórico-genético-reconstrutivas. Winnicott (1966) cita, de início, uma passagem das primeiras páginas do livro de Axline que parece estar em total afinidade com as suas próprias ideias:

A terapia não diretiva baseia-se na presunção de que o indivíduo tem dentro de si não apenas a capacidade de solucionar satisfatoriamente os seus próprios problemas, mas também aquele impulso para o crescimento que torna o comportamento maduro mais satisfatório que o imaturo. (p. 495)

Na sequência, ele aproxima a terapia não diretiva, realizada através do brinquedo, da psicoterapia psicanalítica de crianças, acrescentando:

Em minha opinião, este trabalho da srta. Axiline é uma das aplicações realmente boas da teoria psicanalítica, e não sou dissuadido disso pelo fato de que provavelmente ela não se sinta disposta a relacionar a teoria que usa à da psicanálise. Não sei qual a resposta para isso no momento, mas eu irei vê-la e discutirei este ponto com ela. (p. 496)

Em outro trecho do livro, que ele destaca por aproximar-se intimamente da sua forma de pensar a psicanálise de crianças, Winnicott fará uma ligeira crítica do valor terapêutico do insight e questionará a suposta potencialidade mutativa que ele traz consigo, conforme encontramos reafirmado em grande parte da literatura psicanalítica sobre o tratamento de crianças. Lembremos a comum referência feita por seus pacientes e alunos, como M.M. Khan, à "singular propriedade de atenção dessa presença, tanto psíquica quanto somática" (Khan, 1958) e ao seu notável poder de afecção. De fato, Winnicott não somente acreditava que o brinquedo era por si terapêutico como sabia que a análise, em muitos momentos, não deve ser mais que estar presente, atento, vivo e respirando – sendo estas as condições facilitadoras do acontecimento.2 Às vezes isto pode simplesmente resumir a totalidade do trabalho analítico realizado numa sessão. Estamos ali presentes, e o paciente brinca... sozinho. Brinca porque estamos ali! Porque o vemos, o escutamos, o pensamos... também brincando, discreta e silenciosamente.

Acompanhemos Winnicott naquilo que parece ser a sua única ressalva à técnica de Virginia Axline, implicando especificamente uma referência ao problema do insight. Ele a cita textualmente e questiona-a:

"Este tipo de terapia (a não diretiva) começa onde o indivíduo está e baseia o processo sobre a configuração presente, permitindo a mudança minuto a minuto durante o contato terapêutico, se ele ocorrer rapidamente, dependendo de seu ritmo da organização das experiências, atitudes, pensamentos e sentimentos acumulados no indivíduo para oportunizar o insight, o qual é o prérequisito de uma terapia bem sucedida". Eu não estou totalmente seguro sobre a ênfase aqui colocada no insight, a qual pode por vezes confundir o conjunto da teoria, porque pode haver casos, mesmo no livro da srta. Axline, nos quais as mudanças ocorrem sem insight. Parece-me que na infância inicial, e posteriormente, muita coisa acontece sem insight, tanto de parte dos pais quanto da criança.3

Transcreverei a seguir, para ilustrar clinicamente a abordagem de Axline, uma entrevista terapêutica com um menino de sete anos, Dickie, enviado para tratamento por estar, segundo sua professora, demonstrando uma imaturidade neurótica preocupante – com crises de birra e choro frequente – no internato em que fora deixado por sua mãe após o segundo casamento desta.

Dickie pega a argila, dirige-se à mesa e senta-se em frente ao terapeuta.

Dickie – Façamos algo.

Terapeuta – Desejas fazer algo com a argila?

Dickie – Eu disse "façamos". Você também, faça alguma coisa.

Terapeuta – O que desejas que eu faça?

Dickie (franzindo a testa e coçando a cabeça): Desejo que faças um gato. E esconde-o atrás de uma rocha.

Terapeuta (começando a fazer o gato de argila, e também a rocha para poder escondêlo): Gostas de me dar ordens.

Dickie – Você faça o que eu digo (o terapeuta e Dickie fazem figuras de argila. Dickie faz um coelho e uma pilha de pedras para escondê-lo). Agora começa a luta (o terapeuta aproxima o seu gato em direção ao coelho. O menino imediatamente faz o seu coelho saltar sobre o gato do terapeuta e o destroça). Pronto. Este é o fim do velho gato. Faça outro.

Terapeuta (fazendo outro gato): Destruíste o meu primeiro gato e agora queres que eu faça outro.

Dickie – Sim (novamente o gato do terapeuta se enfrenta com o mesmo destino). Faça outro, e desta vez faça com que o seu gato salte sobre o meu coelho (o terapeuta assim faz, mas no momento preciso o coelho de Dickie arranca a cabeça do gato e belisca o que sobrou dele entre os dedos do terapeuta).

Terapeuta – Gostas de te encarniçar com o meu gato.

Dickie – Claro que sim. Eu gosto de lutar.

Terapeuta – Também gostas de lutar.

Dickie – Isso mesmo. E também gosto de ganhar as lutas. Agora faça uma cobra.

Terapeuta – Desejas que eu faça uma cobra (assim o faz, e Dickie faz outra. Inclina-se, pega a cobra do terapeuta e a compara com a sua. Depois, deliberadamente, faz a sua cobra ser maior que a do terapeuta). Queres que a tua cobra seja maior que a minha.

Dickie – Sim. E vai derrubar a cabeça da tua cobra com um único golpe. Pronto. Esconde a tua cobra atrás desta rocha. A minha está escondida aqui. (Dickie tem a sua cobra protegida atrás de um monte de pedras).

Terapeuta – Queres que a tua cobra esteja bem protegida.

Dickie – Desta vez vou permitir que a tua cobra mate a minha. Vamos. Ssss. Ssss. (as cobras se aproximam uma da outra, mas no momento em que a cobra do terapeuta está a ponto de atacar a de Dickie ele deixa cair uma grande bola de argila em cima dela, para logo achatá-la com a sua mão, destroçando assim a cobra do terapeuta. Ele ri triunfalmente). Te enganei. Consegui te enganar.

Terapeuta – Gostas de poder me enganar, e me fazer acreditar no que dizes.

Dickie – Claro. Agora veja se consegue me enganar. Tente para ver se consegue.

Terapeuta – Queres que eu veja se consigo te enganar.

Dickie – Sim. Vamos lá.

Terapeuta – Tu não acreditas que eu consiga.

Dickie – Não. Eu não acredito que consigas, mas tenta (o terapeuta e Dickie manobram com as cobras de argila. A cobra do terapeuta arranca a cabeça da cobra de Dickie. O menino se afasta bruscamente da mesa e grita ao terapeuta). Olha o que fizeste! Olha o que fizeste na minha cobra!

Terapeuta – Tu me disseste que tentasse te enganar, mas quando eu fiz, tu não gostaste.

Dickie – Não. Eu não gosto. Agora coloca de novo a cabeça na minha cobra. Cura ela.

Terapeuta – Desejas que eu coloque a cabeça dela novamente no lugar, já que fui eu que a arranquei.

Dickie – Desejo que faças o que eu digo!

Terapeuta – Gostas muito de me dar ordens.

Dickie (rindo de repente): Isso é divertido. Na realidade não me importam essas cobras feias. Só estou brincando (espera até que o terapeuta tenha arrumado a sua cobra, depois a levanta pelo rabo e amassa-a até fazer dela uma bola. Logo se dirige até a estante e pega os soldados, começando outra batalha. Agora ele fica de costas para o terapeuta).

Terapeuta – Estás armando uma grande batalha.

Dickie – Por que não ficas em silêncio?

Terapeuta – Desejas que eu pare de falar quando tu me ordenas.

Dickie – E por que não obedeces? (o terapeuta silencia; Dickie o olha disfarçadamente e parece satisfeito por seu sucesso em silenciá-lo). Posso voltar novamente?

Terapeuta – Sim, se tu quiseres.

Dickie – Só estou brincando contigo. Tu disseste que eu poderia brincar da forma que quisesse.

Terapeuta – Sim, foi isso o que eu disse, e o mantenho.

Dickie – E também posso te dizer o que eu quiser?

Terapeuta – Sim.

Dickie – Eu poderia até maldizer aqui, se eu quisesse?

Terapeuta – Se quisesses...

Dickie – Quando posso vir novamente?

Terapeuta – Podes vir todas as semanas nas quartas-feiras, neste mesmo horário.

Dickie – Tu já és um adulto e eu posso te dizer o que quero (ri).

Terapeuta – Achas que é divertido poder dizer tudo o que queres para um adulto.

Dickie – Cale-se senhora X (nome da sua professora). Cale-se senhora X.

Terapeuta – Gostarias às vezes de poder dizer à tua professora que se calasse.

Dickie – Cale-se senhor M (o diretor do internato). Feche a sua boca enorme!

Terapeuta – Às vezes também gostarias de dizer ao senhor M que "fechasse a sua horrível e enorme boca".

Dickie – Isso eu queria, mas não me atreveria!

Terapeuta – Gostarias de dizer isso, mas não te atreverias.

Dickie (sentando-se em frente ao terapeuta): Sabes de uma coisa?

Terapeuta – Humm?

Dickie – Quero me arrastar pelo chão e beber na mamadeira.

Terapeuta – Queres fazer como um bebê. Adiante, então (enquanto Dickie parece meditar)! Não sabes se o fazes ou não. (Dickie agarra a garrafa, senta-se em frente ao terapeuta, fecha os olhos e, ao mesmo tempo, bebe na mamadeira. Depois se deita no chão e ali succiona o bico com os olhos fechados).

Dickie – Sou um bebê. Terapeuta – Gostas de ser um bebê pequeno.

Dickie: Ummhumm (permanecendo deitado no chão e succionando até o final da hora).

 

A interpretação a partir do papel

Em sua última década de vida, não obstante a saúde física debilitada pelas crises cardíacas, Winnicott mantinha-se ativo como analista de crianças, e foi nessa fase que ele recebeu para tratamento a pequena Gabrielle, apelidada carinhosamente de Piggle por seus pais. Não podendo vê-la com a alta frequência exigida pela análise standard, Winnicott, que não acreditava em psicoterapias once-a-week, irá propor-lhe uma modalidade de tratamento que denominava analysis on demand. Esta consistia em encontros espaçados e mais ou menos regulares com a criança e seus pais, além de contatos telefônicos ou por carta através dos quais Winnicott manejava o ambiente e esclarecia a família sobre eventuais alterações do comportamento da menina, indicando a forma mais conveniente de proceder nos períodos entre-sessões.

Em um livro publicado seis anos após a sua morte, que relata a totalidade do trabalho analítico realizado por Winnicott com Gabrielle, dos 2,5 aos 5 anos, temos a oportunidade de observar o uso permanente da indicação lúdica e o diálogo transicional in situs (Winnicott, 1977). Sem pretender deter-me nos detalhes do caso (história do desenvolvimento e natureza da psicopatologia) apresentarei excertos da penúltima sessão de análise (é impossível relatá-la aqui integralmente, com os comentários de Winnicott incluídos), antecedendo com este relato a um exame comparativo das três abordagens exemplificadas clinicamente e a enunciação subsequente do que poderá ser entendido como uma proposição final.

Gabrielle tem agora cinco anos incompletos.

(.......................................................)

Gabrielle: Vou mostrar para você o que eu consigo desenhar. Eu raramente coloco orelhas; tem cabelo comprido, muito bonito – olhe, eu derramei em cima de outro papel e em cima da mesa. É um pequeno rabisco...

(Aqui eu disse que era como se ela estivesse desenhando para mostrar-me um sonho, e parte do sonho se tinha derramado para a vida desperta. Parece-me que isso era o que ela desejava, pois em seguida contou-me um sonho; dava a impressão de que isso era, talvez, o que ela tinha para contar-me).

Gabrielle: Eu tive um sonho com você. Eu bati na porta da sua casa. Eu vi o Dr. Winnicott na piscina de sua casa. Então eu mergulhei. Papai me viu na piscina abraçando e beijando o Dr. Winnicott, então ele também mergulhou. Então a mamãe mergulhou, depois Susan4 e (aqui ela enumerou os outros membros da família, inclusive os quatro avós). Tinha peixes e tudo mais. Era uma água seca molhada. Nós todos saímos e caminhamos no jardim. Papai desembarcou na praia. Foi um sonho bom.

(Senti que agora ela havia trazido tudo na transferência e tinha dessa forma reorganizado toda sua vida em termos da experiência de um relacionamento positivo com a figura subjetiva do analista e seu interior).

Eu: A piscina é aqui nesta sala, onde tudo acontece e tudo pode acontecer na imaginação.

(Ela referiu-se ao fato de suas mãos estarem molhadas porque ela estava nadando).

Gabrielle: Eu vou desenhar o que eu consiga sobre a lâmpada5.

(Ela estava agora bem feliz e calma e tirou para fora todos os brinquedos pequenos e pedaços de brinquedos, enquanto cantava o tema da música "Juntos").

Gabrielle: Que confusão no seu chão!

(Eu precisei consertar um gancho. Ela conversava muito enquanto ia colocando todos os brinquedos em uso. Em seguida pegou a figurinha do pai [de aproximadamente oito centímetros de comprimento, de aspecto muito real, feita sobre a base de um limpador de cachimbo] e começou a maltratá-la).

Gabrielle: Eu estou torcendo as pernas dele (etc.).

Eu: Ai! Ai! (como uma interpretação que aceitava o papel atribuído a mim).

Gabrielle: Eu estou torcendo ele mais – sim – o braço dele agora.

Eu: Ai!

Gabrielle: Agora o pescoço dele!

Eu: Ai!

Gabrielle: Agora não sobrou nada – ele tá todo torcidinho. Eu vou torcer você mais um pouco. Você chora mais.

Eu: Ai!Ai! Uiiiiii! (Ela estava muito satisfeita).

Gabrielle: Agora não sobrou nada.Tá todo torcidinho, e a perna dele soltou, e agora a cabeça dele soltou, então você não pode mais chorar. Eu vou jogar você fora. Ninguém gosta de você.

Eu: Assim Susan nunca me terá.

Gabrielle: Todo mundo odeia você. (Aqui ela pegou a figurinha de um menino, semelhante à anterior, e repetiu a operação).

Gabrielle: Eu estou torcendo as pernas do menino (etc.).

Em meio a tudo aquilo, eu disse: "Então o Winnicott que você inventou era todo seu, e agora ele acabou, e ninguém mais poderá tê-lo".

(Ela estava insistindo para que eu chorasse mais, mas eu argumentei que não havia sobrado mais choro).

Eu: Acabou tudo.

Gabrielle: Ninguém nunca vai ver você de novo. Você é médico?

Eu: Sim, sou médico, e eu podia ser médico de Susan, mas o Winnicott que você inventou está acabando para sempre.

Gabrielle: Eu fiz você.

(........................................................)

(Ela pegou uma folha de papel e colocou cola Seccotine no meio e fez também uma moldura quadrada. Ela desejava saber quantos pacientes eu veria ainda).

Eu: Você é a última antes das minhas férias.

Gabrielle: Eu vou fazer cinco anos – dentro de bem pouco tempo.

(Ela manifestou que havia querido ver-me para concluir este tratamento. Winnicott acabava enquanto ela ainda tinha quatro anos).

Eu: Eu gostaria de terminar com você também, para poder ser todos os outros Winnicott e não ter de ser este Winnicott que você inventou especialmente para o tratamento.

(Percebi que o que ela estava fazendo com a cola Seccotine era uma espécie de túmulo ou um memorial do Winnicott que tinha sido destruído e morto. Aceitando a sua intimação, peguei um pedaço de papel e desenhei uma Gabrielle nele. Então torci os braços, pernas e cabeça e perguntei-lhe se doía. Ela riu e disse: "Não, faz cócegas!". Ela decorou totalmente em torno da cola Seccotine, incluindo a cor vermelha. Aquilo era para levar para casa. Seria bom para Susan).

Gabrielle: Eu devo por um pouco mais de azul.

(O papel foi dobrado e toda a cola Seccotine foi usada; eu tive de ajudá-la a fazer um buraco para podermos prender um barbante. Aquilo era agora uma pipa).

Gabrielle: Eu tenho que ir até o Papai e pedir os azulejos bonitos, que tem um menino alegre sobre eles.

(Deixando-me cuidar da pipa, ela foi à sala de espera e trouxe dois azulejos antigos [do menino alegre] que o pai tinha comprado e que estavam embrulhados como se fossem um presente – supostamente para a mãe. Abri-os e admirei-os. Ela prosseguiu, explicando para o pai).

Gabrielle: Ele está gasto. Ninguém quer ver o Winnicott. Ele está totalmente gasto. Eu rasguei tudo. Eu fiz isso de presente para Susan. É fedorento, é horrível – eu gastei o tubo todinho de cola Seccotine. Você vai ter que comprar mais, não sai mais nada.

(Acrescentei algo sobre arrancar a tampa para mostrar o significado fecal das figuras masculinas destruídas e da placa do memorial. Isso agradou a ela).

Gabrielle: Tá espalhado na minha mão toda. Eu estou brincando com esse material pegajoso de cheiro horrível. Qual é o nome disso – ah! sim, Seccotine, nome horrível, cheiro horrível. Nós usamos cola Yoohoo, sem nenhum cheiro, o senhor sabe...

(Percebi que ela viera para liquidar comigo em todas as camadas e em todos os sentidos, e lhe disse isso. Ela falou: "Sim, para acabar com você").

Eu: Então, se eu fosse visitar sua casa, se eu visse Susan, aquele seria um Winnicott diferente – não este que você inventou que era todo seu e que agora está acabado.

Gabrielle: Agora toda a cola foi gasta – o que nós vamos fazer? O Winnicott está todo despedaçado; o que nós fazemos quando tudo acabou? Estou feliz de não ver o Winnicott já que ele fede e é pegajoso assim. Ninguém quer ele. Se você nos visitar eu vou dizer: "O homem pegajoso está vindo". Nós íamos ter de fugir.

(Aquilo havia terminado).

 

Narcisismo, interregno, presença e interpretação

As atitudes clínicas exemplificadas nos três relatos de sessões apresentados em sequência estão determinadas por um mesmo pressuposto teórico/técnico que lhes reafirma o sentido/conteúdo sem equalizá-las na forma/expressão. Nas três situações descritas a atenção do clínico está sutil e especialmente voltada para a preservação da ilusão narcísica do paciente, aceitando sua forma e atendendo o grau de exigência que esta interpõe à presença factual e à aproximação discursiva do terapeuta. Se Winnicott estabelece como condição da psicoterapia/psicanálise a sobreposição das áreas de brinquedo de paciente e analista (Winnicott, 1971), afirma igualmente e suplementarmente que as intervenções mutativas (alterative) só poderão ocorrer dentro da órbita de onipotência do indivíduo. As eventuais escorregadelas do analista para fora deste campo de operância narcísica irão frequentemente situá-lo como um agente tóxico (o Outro da intrusão).

A atenção do analista – cabe reiterar – estará, sob tal perspectiva, voltada para a produção, preservação e utilização terapêutica daquilo que Husserl originalmente denominou de reino intermediário ou interregno (zwischenreich) e posteriormente de intersubjetividade (intersubjektivität)6 ou subjetividade transcendental (transzendentalen subjektivität) – noção que fundamentará não apenas o conceito de quiasma (entrelacs) de Merleau-Ponty (1964), mas que inspirará notavelmente as ideias de campo transicional em Winnicott e de campo intersubjetivo em Lacan.

Vejamos como isto opera, ou como falha, nos trechos de material clínico acima relatados, não obstante o terapeuta esteja atento ao pressuposto teórico da sustentação da onipotência do self, através do ajuste da linguagem, do manejo do ambiente e do acompanhamento das flutuações transferenciais.

1. O efeito tóxico da intervenção pretendidamente terapêutica em uma abordagem clínica que busca, sobretudo, evitar a invasão do interregno pelo discurso do ego do analista, é exemplarmente ilustrado por Ekstein na transcrição da sessão de Ana com sua analista, Dorothy Wright. Ameaçada com a aproximação da visita de seus pais, a qual parece precipitar uma angústia de aniquilamento que a fragiliza notavelmente, Ana inicia a sessão "fazendo a adulta". Pede um cigarro à analista e brinca de fumar. Esta parece entender o esforço defensivo da menina, e também brincando a elogia: ela já sabe fumar sem afogarse e sem sobressaltos! Ana fuma como uma adulta, mas tagarela como um esquilinho. A metáfora introduzida parece conotar a self-representação infra-humana e a fragilidade psíquica (narcísica) da paciente. Ela demonstra grande interesse pelos esquilos, indaga sobre a sua natureza agressiva e logo sobre a possibilidade de domesticá-los. Em meio a isto surge a pergunta sobre a visita próxima dos pais. Temerosa do efeito disruptivo de seus impulsos agressivos, Ana ensaia um "adestramento", propondo apanhar as nozes que Dorothy lhe estenderá. Esta brincadeira permite à analista relacionar a conduta destrutiva da paciente com eventuais provocações externas (os esquilos mordem se forem molestados) e com a forma regressiva como ela demonstra estar irritada com sua mãe, evacuando em diversos lugares da casa em vez de falar ou mesmo gritar. O brinquedo de aproximação- distanciamento continua e a terapeuta refere-se ao comportamento arisco dos esquilos, que se mantém à distância ou se aproximam fugazmente apenas para pegar as nozes, contrastando-o com o dos gatinhos e cachorrinhos, que buscam o contato e o aconchego. Explorando a metáfora animal, terapeuta e paciente aproximam-se da questão central de Ana, que implica a relação com um Outro vivido como mortífero e desumanizante. Inteiramente em contato com Dorothy, Ana formula agora uma pergunta direta: que tipo de pessoa é afinal a sua mãe? Este é o momento em que a analista, ainda que devolvendo a pergunta à paciente ao pedir-lhe para descrever sua mãe, sente-se demasiadamente contrariada com as críticas duras que a menina dirige àquela a quem sente como rígida e severa, contrastando-a com as mães das outras crianças (como a senhora A, que é amistosa e suave e acaricia o cachorro, e de quem Ana gostaria de ser filha). Ao advogar inadvertidamente a causa materna, a analista contradiz as vívidas impressões da paciente sobre a mãe e invalida o juízo daquela sobre uma possível realidade (entenda-se que, no trabalho realizado dentro da órbita de onipotência individual, a única realidade a ser considerada é a realidade psíquica do paciente em questão), confrontando inconvenientemente as afirmações da menina com suas próprias impressões (supostamente mais sábias ou realistas) sobre a mãe que ela possui. (Nunca se atentará suficientemente para o conselho dado por Lacan aos psicanalistas: "Engole o teu dasein!"). A confrontação raramente é uma ferramenta psicanaliticamente útil. Toda a intervenção formulada no exterior da órbita narcísica do paciente costuma resultar tóxica (no mínimo subterapêutica) sendo raramente eficaz no sentido de favorecer o acontecimento e a experiência da verdade vivencial. Dorothy paga o preço do seu erro vendo ressurgir em Ana os recursos defensivos mais primitivos. No lugar de um esquilinho temeroso catando nozes, vemos surgir um rabugento caracol succionando a saliva. (Outra vez estava fora de contato, retorcendo-se e grunhindo... Pressionou forte mente seus lábios contra o espelho e no reflexo eu podia ver como tirava e colocava a língua, achatando-a contra o espelho. Ela disse: "Vês Dorothy? Sou um caracol". Eu disse: "Sim, és um gracioso caracol bebê"). Uma cuidadosa reconstrução da metáfora, operando agora em níveis mais elementares, faz-se então necessária para que o contato (o transitional field) possa ser reestabelecido e terapeuta e paciente possam, por fim, reaproximar-se da questão central desta sessão.

2. A sessão de Dickie com seu terapeuta, relatada por Axline, ilustra modelarmente a ação silenciosa (não interpretativa) da presença do analista na sustentação do interregno e o favorecimento (via brinquedo e comentários concernentes) do acesso vivencial a uma verdade íntima situada mais além da interpretação. Um olhar psicanalítico sobre o curso da sessão permite considerar o que é da ordem da significação e não está problematizado teoricamente por Axline. Dickie é um menino manifestamente agressivo que evidencia uma suscetibilidade narcísica acentuada. Movido por uma ansiedade paranoide intensa, ele exercita seu autoritarismo e sua destrutividade de forma compulsiva e ininterrupta durante quase toda a consulta. Desde o início buscará controlar todos os movimentos do interlocutor e surpreendê-lo a cada tanto, gozando sadicamente ao fazê-lo. Sua ação consiste em destruir repetidamente e de forma ardilosa todos os personagens modelados em argila pelo terapeuta. Assim, são decapitados ou destroçados em sequência, o gato, a cobra, os soldados e, posteriormente, com a espetaculização transferencial da ansiedade paranoide (que, paradoxalmente, indica um aumento da confiança de Dickie no terapeuta e na consistência do ambiente) até mesmo sua professora e o diretor do internato tornam-se objetos do seu ímpeto vingativo transferencialmente agenciado. As metáforas animais estão desde o início presentes (indicarão figurações arcaicas do self?), cedendo por fim lugar ao personagem humano (os soldados). A imagem da cobra, especialmente, costuma conotar a forma larvar que foi apontada por Winnicott como uma frequente figuração elementar do self primitivo.

O que parece estar sendo encenado exaustivamente pelo paciente, nessa sessão, é a necessidade de destruição do objeto, no sentido winnicottiano do conceito. A fragilidade e inconsistência do cuidador (o Outro primordial), sua incapacidade de sobreviver, em seu tempo, ao exercício cru da agressão primária do infans, conduz ao retraimento, à desconfiança, à desvitalização e ao empobrecimento dos vínculos da criança com a realidade externa. Testar incessantemente a capacidade de sobrevivência do objeto e a solidez da provisão ambiental torna-se, então, a questão central de sua vida e de suas relações. O outro deverá sobreviver à dura prova a que o sujeito repetidamente o submeterá. E sobreviver neste contexto significa, para Winnicott, além de não morrer fisicamente, não tomar atitudes de represália, não retaliar.7 Após destruir imaginária e ludicamente o objeto (terapeuta) inúmeras vezes, e vê-lo sobreviver e reapresentar-se para novos embates e novas destruições, Dickie parece aproveitar o mote de haver sido atacado pelo terapeuta (a seu pedido, atento que este está em não se movimentar autonomamente, mas em obedecer às exigências impostas no interior da órbita narcísica do paciente) para exigir-lhe que conserte a sua cobra quebrada, que a "cure". E é a partir desse pedido que Dickie parece encaminhar-se mais confiantemente para o playing. Ele volta a lutar com os soldados e, certificando-se de que o terapeuta lhe permitirá dizer e expressar ludicamente tudo o que quiser, revela que na verdade não lhe interessam as cobras, e que o que ele faz ali é "brincar". Passa então a verberar contra as autoridades da escola e, alternadamente, certifica-se com o terapeuta de que poderá voltar a vê-lo. Logo, com maior liberdade, confessa-lhe sua vontade de tomar mamadeira e arrastar-se pelo chão, revelando o que defensivamente se oculta sob a sua conduta desafiante: um bebê tantalizado que demanda empatia, cuidado e tolerância para expressar autenticamente seu verdadeiro self recoberto e protegido pela organização defensiva paranoide. Passamos, então, por efeito da presença viva e consistente do terapeuta e por suas intervenções atentas à suscetibilidade narcísica do paciente, de um estado retraído para um estado regredido (Winnicott, 1954), o que torna o paciente clinicamente mais acessível e o trabalho terapêutico mais eficaz.

3. A indicação lúdica, sob a forma de interpretação formulada a partir do papel atribuído ao analista pelo paciente (interpretation of acceptance of the role assigned me), está notavelmente demonstrada no relato de Winnicott de seu encontro com Piggle às vésperas da finalização da sua análise on demand. Intensos sentimentos de amor e ódio são ativados nessa consulta, que é capaz de ilustrar vividamente a intensidade do encontro analítico, a confiabilidade do analista, sua capacidade empática e sua habilidade para habitar e explorar o interregno, sustentando com sua presença, criatividade e sutileza o trabalho da metáfora durante toda a sessão.

O início desta hora analítica permite constatar o desenvolvimento da capacidade de sonhar (substituindo aos terrores noturnos), simbolizar e relatar espontaneamente um sonho no qual a transferência erótica é ludicamente reconhecida e serenamente administrada pela paciente. O analista entende que o sonho sintetiza os afetos e experiências compartilhadas por ambos ao longo da análise, essa dolorosa submersão (metáfora da piscina) que possibilitou uma reconciliação com os objetos imaginariamente aniquilados e a emergência do brincar criativo (playing), como aparece no comentário de Gabrielle de que suas mãos estão molhadas porque ela está saindo da água em que esteve nadando. Na sequência, observa-se a flutuação dos sentimentos amorosos e agressivos na transferência (o odiamoramento, de Lacan), o que se expressa dramaticamente devido à iminência de uma separação definitiva. Gabrielle necessita destruir o objeto porque é a sua destruição que possibilitará o seu uso. (É sua destruição na fantasia, e sua sobrevivência à destruição na realidade externa, o que o torna efetivo, o que o localiza no mundo extra-self, possibilitando o pleno reconhecimento de sua independência). Ela toma a figura de um homem e começa a retorcê-la de todas as maneiras. Ciente de que esta o representa, e também de que é preciso que assim seja, Winnicott responde expressando "histrionicamente" o seu sofrimento por estar sendo atacado, emitindo gritos de dor a cada golpe que recebe. Gabrielle goza triunfalmente (trata-se de um fort-da em presença ainda do objeto cujo desaparecimento é iminente) dizendo que irá destroçá-lo totalmente; ela repete a operação com a figura de um menino, ao qual esquarteja, pedindo a Winnicott que continue chorando, o que Winnicott atende até o momento em que lhe diz não poder mais chorar, porque está totalmente gasto, ele não existe mais, o Winnicott que ela inventou foi usado até o fim (used up). E quando ela lhe pergunta se ele é médico, Winnicott responde-lhe que é médico, mas que não poderá ver mais pacientes porque foi destruído; esse Winnicott que Gabrielle inventou está terminado e não poderá ver nem mesmo a Susan (a irmãzinha cujo nascimento foi um dos fatores determinantes da detenção do desenvolvimento emocional de Gabrielle). Winnicott a faz saber, convicto da necessidade de comunicar-lhe isto de alguma maneira, que também ele deseja deixá-la para poder ser os muitos outros Winnicott que não é quando está empenhado em servir de suporte real para aquele Winnicott que ela inventou. Na sequência, Gabrielle transforma o seu Winnicott em uma maçaroca de cola e resíduos, salpicada de cola vermelha, e prepara uma espécie de túmulo para sepultálo. Simultaneamente, Winnicott desenha uma Gabrielle e começa a torcê-la; pergunta à menina se isto lhe dói, e ela responde que apenas lhe faz cócegas. Logo ela vai mostrar ao pai a maçaroca fedorenta que representa o que sobrou de Winnicott, que está agora todo destruído e que é odiado por todo mundo. Ninguém mais quer vê-lo, por ele ser tão horrível e tão fedorento. Winnicott lhe diz, então, que ela veio a esta consulta exatamente para acabar com ele, o que ela confirma. Parece ser importante assinalar, por fim, que a inocorrência de atitudes protetoras ou reparatórias para com o objeto, o que permitiu a Gabrielle vivenciar um máximo de destrutividade nessa sessão, é decorrente de sua confiança no analista e no trabalho que ambos "juntos" haviam realizado. A presença viva, atenta e anobstrutiva do analista permitiu, sustentou e testemunhou a verdade humana dessa notável co-laboração.

 

Considerações conclusivas

A crítica da interpretação propugnada por este estudo deverá ser vista como um passo a mais no work in progress que encontra o seu ponto de origem nos escritos da maturidade de Ferenczi8 e seu máximo desenvolvimento nas obras de Winnicott e Lacan. Quando Lacan insiste em que "não há metalinguagem" está dizendo da impossibilidade de uma linguagem, a do eu do analista, explicar ou decifrar outra linguagem, a do inconsciente do sujeito em análise. É exatamente aí que a ideia de indicação ou de intervenção, no sentido de O. Mannoni (1992), adquire sua importância maior.

A psicanálise de crianças tem se mostrado um solo fértil para descobertas, experimentações e redescrições necessárias para o desenvolvimento da teoria e da técnica psicanalítica e para a vivificação do pensamento original de Freud. Ferenczi esteve teoricamente voltado para a infância nos seus últimos anos e contribuiu enormemente para o avanço da clínica psicanalítica com crianças (cabe recordar que ele foi o primeiro analista de Melanie Klein); Winnicott é não apenas reconhecido como o mais importante psicanalista britânico, mas como o grande sustentáculo teórico-clínico para a prática da psicanálise com crianças hoje; e Lacan, que não analisou crianças, ocupou-se em seus começos com a problemática do espelhamento e da identificação na infância inicial, além de conceder especial atenção às psicoses da criança no primeiro livro do seu Seminário, particularmente na releitura que realiza do caso Dick, de M. Klein (Lacan, 1953-54/1975).

Que a eficácia da análise não dependa apenas dos conhecimentos de teoria e técnica que o analista opera na relação com o analisando, mas fundamentalmente do agenciamento da sua ecceidade, no sentido deleuziano (Deleuze, 1980), é talvez a grande questão pendente desde a interpelação do ser do analista por Ferenczi. Winnicott e Balint (1979) sustentaram no tempo este questionamento, ao que se pode atribuir, certamente, o forte matiz fenomenológico que marca suas obras. O pensamento de Lacan, embora gestado nesta tradição, parece ter gradualmente perdido a dimensão existencial à medida que se aferrava a um estruturalismo obstinado em reduzir o sujeito psicossomático a uma metáfora falante. Seus escritos da "fase fenomenológica" (meados dos anos 1930 a meados dos anos 1950), entretanto, são imprescindíveis para que tenhamos chegado a avançar a reflexão sobre as questões das quais neste estudo me ocupei.

A eficácia clínica da interpretação lúdica já havia sido demonstrada há algumas décadas por Emilio Rodrigué (1966), e a ação mutativa dos mecanismos não interpretativos foi mais recentemente investigada por Daniel Stern e colaboradores (1998), levando a conclusões que confirmam e justificam as recomendações "técnicas" winnicottianas e lacanianas no sentido de que cuidemos de dizer a nossos pacientes o mínimo necessário numa linguagem que se aproxime maximamente da sua, de forma a que nossa fala opere imanentemente no interior do campo narcísico do analisando, no interregno intersubjetivo sustentado pelo ato analítico, e que a verdade, interpretável ou não, que estes sejam capazes de produzir, possa ser sentida preferencialmente como uma obra própria, como o que assinala a sua "diferança" (différance),9 a singularidade da sua efetuação pessoal.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Roberto Barberena Graña
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA]
Rua prof. Annes Dias, 154/1201 | Centro
90020-090 Porto Alegre, RS
e-mail: rbgranha@cpovo.net

 

[Recebido em 29.8.2010, aceito em 1.10.2010]

 

 

1 Psicanalista. Membro titular da IPA. Membro convidado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA, Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Professor e Supervisor do Instituto Contemporâneo de Psicanálise e Transdisciplinaridade (Porto Alegre).
2 No sentido do ereignis heideggeriano, o acontecimento apropriador.
3 Isto está notavelmente ilustrado em dois escritos incluídos por Winnicott em Da pediatria à psicanálise (1955): "A tolerância do sintoma em pediatria" e "Um caso tratado em casa".
4 A irmã menor.
5 Objeto que fazia parte do material de sucata a sua disposição, e no qual havia sido desenhado um rosto humano.
6 Ver Husserl 1913 e 1936.
7 Em sua redescrição do setting freudiano, Winnicott enfatiza a importância da regularidade e confiabilidade do analista destacando, principalmente, o fato de que o analista estará lá, na hora marcada, presente, vivo e respirando, ou seja, a vitalidade do analista adquire aqui uma relevância que até então não havia sido realçada pelos escritos psicanalíticos. (ver Winnicott, 1949).
8 Especialmente os ensaios reunidos no quarto volume de sua obra completa (Ferenczi, 1992) e as reflexões fragmentariamente desenvolvidas em seu diário clínico (Ferenczi, 1990). 9 Ver Derrida, 1967b.