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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.4 São Paulo  2010

 

RESENHAS

 

A arte de ler, ou como resistir à adversidade

 

 

Autor: Michèle Petit
Editora: 34, São Paulo, 2009, 300p.

Resenhado por: Leda Maria Codeço Barone1

Endereço para Correspondência

 

 

O segredo está nos bons livros

A arte de ler, de Michèle Petit, encontra-se entre os livros indispensáveis àqueles que compartilham a paixão pela leitura. Nele a autora recolhe, com delicadeza e perspicácia, dos quatro cantos do mundo, experiências notáveis de leitura e destila, dessas experiências diferentes realizadas em contextos diversos e em culturas singulares, a essência do que nos faz humanos: sermos seres de linguagem e ávidos por ficção.

Tais experiências – ora depoimento de leitores que descobrem solitariamente a leitura, ora vividas em grupos de leitura animados por um mediador; na escola, na biblioteca, ou ainda em grupos de apoio ou terapêuticos; e recolhidas nas Américas, Europa, África e também Ásia – corroboram a hipótese da autora de que a literatura é um meio ímpar de resistência às adversidades próprias aos tempos difíceis e aos espaços em crise.

Aliás, a autora reconhece que em nosso tempo o mundo inteiro é um "espaço em crise", pois entende que uma crise se constitui sempre que os meios de regulamentação, sociais e psíquicos, praticados pelo sujeito se tornam ineficazes para fazer frente a transformações e violências vigentes na realidade. Assim argumenta a autora:

Ora, a aceleração das transformações, o crescimento das desigualdades, das disparidades, a extensão das migrações alteraram ou fizeram desaparecer os parâmetros nos quais a vida se desenvolvia, tornando homens, mulheres e crianças, vulneráveis, naturalmente que de maneira distinta, de acordo com os recursos materiais, culturais, afetivos de que dispõem e segundo o lugar onde vivem. ... As crises, muitas vezes vividas como ruptura pela perda de paisagens familiares e separação, da família e dos próximos, confinam o sujeito num tempo imediato – sem projeto e sem futuro –, em um espaço sem linha de fuga. Despertam feridas, reativam o medo do abandono, abalam o sentimento de continuidade de si e a autoestima. Provocam, às vezes, uma perda total de sentido. (p. 21)

No livro de Petit – composto de uma introdução, uma conclusão e de oito capítulos intitulados: 1. Tudo começa por uma recepção; 2. Saltar para o outro lado; 3. A simbolização e a narrativa: poderes e limites; 4. Outras sociabilidades; 5. Quais leituras?; 6. Ler, escrever, desenhar, dançar; 7. Leitura e exílio e 8. A escola e a biblioteca na linha de frente – a autora desenvolve sua tese a respeito de uma função reparadora da leitura que pode ser resumida nos seguintes termos:

1. A experiência da leitura oferece um espaço de intersubjetividade – espaço de acolhimento – que a escola, a biblioteca ou o centro cultural tornam possíveis, tudo parte de encontros personalizados de acolhimento e de hospitalidade.

2. A leitura abre outra dimensão de espaço e tempo, ou seja, aquela própria da situação ficcional. Tempo e espaço de sonho e de fantasia que permite construir um país interno, um espaço psíquico capaz de sustentar processo de autonomia e a constituição de posição de sujeito tornando possível uma narrativa interna e estabelecendo ligações entre os acontecimentos de uma história e entre universos culturais.

3. A experiência de leitura propicia não propriamente uma imitação da vida, mas pelo contrário a criação de metáforas por meio das quais o corpo também é tocado.

As observações de Petit sobre o efeito dos espaços de crise sobre o sujeito foram, parece-me, antecipadas por Walter Benjamin que encontra no advento da racionalidade moderna o fator de desenraizamento do homem na contemporaneidade e da pobreza de experiências passíveis de narração. Em diferentes ensaios Benjamin observa que a perda da experiência acarreta outro desaparecimento; o desaparecimento das formas tradicionais de narrativa cujas fontes encontram-se na comunidade e na possibilidade de transmissão. E para ele esse duplo desaparecimento provém de fatores históricos – capitalismo, técnica – que culminaram com as atrocidades da Primeira Guerra Mundial. Conforme observou Benjamin "os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos". (Benjamim, 1933/1996a, pp. 114-115).

A respeito das observações de Benjamin, Gagnebin comenta que nesse diagnóstico, Benjamin

reúne reflexões oriundas de duas proveniências; uma reflexão sobre o desenvolvimento das forças produtivas e da técnica e outra reflexão convergente sobre a memória traumática, sobre a experiência do choque ..., portanto sobre a impossibilidade, para a linguagem cotidiana e para a narração tradicional assimilar o choque. (2006, p. 51)

As ideias de Petit, a meu ver, encontram respaldo também nas observações de Wolfgang Iser, proeminente estudioso da Estética da Recepção. Para esse autor, investigar o que a literatura pode dizer acerca de nós mesmos, para compreender a autointerpretação humana que se faz por meio da literatura, é necessário esboçar uma nova heurística que possa ser sustentada por disposições humanas que, ao mesmo tempo, sejam constitutivas da literatura. Reconhece tanto na ficção quanto no imaginário esse fundamento, uma vez que os dois fenômenos existem como experiência humana – seja porque superamos o que somos por meio de mentiras e dissimulações, seja porque vivemos nossas fantasias durante os sonhos diurnos, nos sonhos e nas alucinações –, e são constitutivas da literatura. Mas o autor vai propor ainda que o que caracteriza a literatura é a articulação organizada do fictício e do imaginário, em um jogo complexo de possibilidades. E desse jogo a literatura emerge.

Com essas ideias como fundamento Iser desenvolve uma antropologia literária em que o ato de leitura se faz como encenação. Para o autor a encenação é mais um modo antropológico que uma categoria cognitiva e é

uma modalidade que ganha sua plena função quando o conhecimento e a experiência, enquanto modos de produção de mundos, chegam a seus limites. Pois a encenação se refere a estados de coisas que nunca podem adquirir presença plena. (Iser, 1996, p. 358)

Assim, na literatura, conforme concebe o autor, "a encenação torna concebível a extraordinária plasticidade dos seres humanos..." (Iser, 1996, p. 357) E nesse espaço de encenação que é a literatura, o ato de duplicar a si mesmo por meio da ficção cria um espaço performativo no qual os seres humanos podem encenar a diferença entre "ser quem são" e "ter a si mesmo."

E prosseguindo ainda propõe Iser:

A encenação é o esforço incansável para o confronto do ser humano consigo mesmo. A encenação permite, mediante simulacros, dar forma ao transitório do possível, e, controlar a revelação contínua do ser humano em suas possíveis alteridades. (1996, p. 363)

O livro de Michèle Petit, A arte de ler, ao desenvolver de forma consistente sua tese e de demonstrá-la por exemplos convincentes, desvela uma maneira especial de resistir à adversidade: a encenação que a literatura coloca em movimento. E ao lê-lo só posso concordar com o poeta Pedro Salinas, citado no texto, O segredo está nos bons livros.

 

Referências

Benjamin, W. (1996a). Experiência e pobreza. In W. Benjamin, Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. (Sérgio Paulo Rouanet, trad., pp. 114-119). São Paulo: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1933)         [ Links ]

Benjamin, W. (1996b). O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In W. Benjamin, Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. (Sérgio Paulo Rouanet, trad., pp. 197-221). São Paulo: Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1936)         [ Links ]

Gagnebin, J. M. (2006). Memória, história, testemunho. In J. M. Gagnebin, Lembrar, escrever, esquecer (pp. 49-57). São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Iser, W. (1996). O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: EdUERJ.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Leda Maria Codeço Barone
Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 46, conj. 38 | Vila Nova Conceição

04544-000 São Paulo, SP
e-mail: ledabarone@uol.com.br

 

[Recebido em 15.9.2010, aceito em 15.10.2010]

 

1 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Professora do Programa de Pós Graduação do Centro Universitário FIEO.