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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.1 São Paulo jan./mar. 2011

 

ARTIGOS TEMÁTICOS
SUBLIMAÇÃO

 

A iatrogênese da sublimação em três tempos da cultura

 

The iatrogenesis of sublimation in three cultural moments

 

La iatrogenia de la sublimación en tres tiempos de la cultura

 

 

Nelson da Silva JuniorI; Jean-Luc GaspardII

IPsicanalista, Doutor pela Universidade Paris 7, Professor Livre Docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP. Professor e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Autor dos livros: Le fictionnel en psychanalyse. Une étude à partir de l'oeuvre de Fernando Pessoa. Villeneuve d' Asq: Presses Universitaires du Septentrion, 2000, e Linguagens e pensamento. A lógica na razão e desrazão, Casa do Psicólogo, 2007
IIPsicólogo clínico, mestre em Conferências em Psicopatologia, diretor associado do Laboratório de Psicopatologia e Clínica Psicanalítica

Correspondência

 

 


RESUMO

Argumentando contra a tendência geral dos psicanalistas a idealizarem a sublimação, buscamos demonstrar que essa não era a posição de Freud. Em seu pensamento, a sublimação sempre esteve relacionada à etiologia de patologias do psiquismo. Contudo, as modalidades desta relação são diferentes, e acompanham as profundas mudanças que marcaram seu pensamento sobre a cultura ao longo do tempo. Analisamos dois tipos de iatrogênese da sublimação explicitados por Freud: aquela ligada ao excesso de exigência de sublimação cujo caráter é contingente à cultura, e cujos efeitos seriam as neuroses atuais e as psiconeuroses, e aquela ligada à desfusão pulsional, de caráter necessário, e cujo efeito seria o masoquismo moral. Concluímos nosso trabalho analisando um terceiro tipo de efeito iatrogênico, ligado ao masoquismo erógeno, e característico da cultura ocidental atual.

Palavras-chave: sublimação; idealização da sublimação; fusão e desfusão pulsional; masoquismo.


ABSTRACT

Arguing against the general trend of psychoanalysts of idealizing sublimation, we attempt to demonstrate that this was not the position of Freud. To him, sublimation was always related to the etiology of psychic pathologies. However, the modalities of this relation are different, and follow the deep changes that marked his thoughts on culture throughout time. We analyze two types of iatrogenesis of sublimation studied in Freud's work. The first one is related to the excess of requirement of sublimation, its character being contingent to culture, and whose effect would be the current neuroses and psychoneurosis. The second one is related to the drives' defusion, and is of an unavoidable character, and whose effect would be, to Freud, moral masochism. We conclude our work analyzing a third type of iatrogenic effect, related to erogenic masochism, and which is characteristic of current occidental culture.

Keywords: sublimation; idealization of sublimation; the fusion and defusion of drives; masochism.


RESUMEN

Argumentando contra la tendencia general de los psicoanalistas de idealizar la sublimación, buscamos demostrar que no era esa la posición de Freud. En su pensamiento, la sublimación siempre estuvo relacionada a la etiología de las patologías de la psique. Sin embargo, las modalidades de esta relación son diferentes, y acompañan las profundas mudanzas que marcaron su pensamiento sobre la cultura a lo largo del tiempo. Analizamos dos tipos de iatrogenia de la sublimación especificados por Freud, aquella ligada al exceso de exigencia de sublimación cuyo carácter es depende de la cultura, y cuyos efectos serían las neurosis actuales y las psiconeurosis, y aquella ligada al impulso de fusión, de carácter necesario, y cuyo efecto sería el masoquismo moral. Concluimos nuestro trabajo analizando un tercer tipo de efecto iatrogénico, ligado al masoquismo erógeno, y característico de la cultura occidental actual.

Palabras clave: sublimación; idealización de la sublimación; impulso defusión; masoquismo.


 

 

Introdução

A idealização da sublimação

A "sublimação" é um conceito que contém um juízo de valor. Na verdade significa a aplicação a outro campo em que são possíveis realizações socialmente mais valiosas. Deve-se então admitir que desvios semelhantes do objetivo de destruição e exploração para outras realizações são demonstráveis em ampla escala no tocante à pulsão de morte. Todas as atividades que reorganizam ou efetuam mudanças são em certa medida destruidoras e assim desviam uma porção da pulsão de seu objetivo destruidor original. Mesmo a pulsão sexual, como sabemos, não pode atuar sem alguma medida de agressividade. Portanto, na combinação regular das duas pulsões há uma sublimação parcial da pulsão de destruição. Pode-se por fim considerar a curiosidade, o impulso de investigar, como uma completa sublimação da pulsão agressiva ou destruidora. (Freud, 1937, citado por Jones, 1989, 449-450)

Na citação acima parece inquestionável que, segundo o próprio Freud, criador do conceito de sublimação, este seria um conceito com um juízo de valor. Ou seja, a priori, sabemos que sublimar seria obviamente melhor que não sublimar: em vez da satisfação imediata das nossas pulsões eróticas ou agressivas, o melhor é sua satisfação indireta em dois sentidos, primeiramente em relação a seu objeto, e em segundo lugar em relação a seu alvo, sua finalidade. Assim, e apenas assim, o ser humano poderia deixar para trás os limites e coerções impostos pela satisfação de necessidades e volúpias de uma natureza originariamente animal, e, desviando partes importantes dessas forças psíquicas, superando sua origem propriamente arcaica, seria capaz de elevá-las a ponto de se satisfazerem com objetos da cultura, donde o termo "sublimação". Assim, se traduziriam metaforicamente as três origens do conceito de sublimação. Sua origem na alquimia, onde sublimatio seria a passagem direta do estado sólido ao gasoso. Sua origem na religião, onde implicaria a elevação do espírito para além das coisas terrenas para o reino celestial. E, finalmente, sua origem estética, que implica, grosso modo, a percepção de nossa pequenez diante da imensidão do universo, onde subjaz, portanto, novamente um sentido moral.

A citação acima demonstra que, profundamente marcado por tal "juízo de valor", o conceito de sublimação não se restringiria às pulsões eróticas, mas que poderia, em princípio, se aplicar também à pulsão de agressão, ou seja, aquilo que presente em nossa natureza, mais radicalmente se opõe à vida civilizada, a saber, o nosso desejo de dominar nosso semelhante, e não apenas explorá-lo sexualmente ou em sua força de trabalho, mas simplesmente para subjugá-lo e exercermos nossa crueldade sobre ele.

Segundo Freud, a pulsão de morte estaria na origem de uma necessidade humana de fazer o mal pelo mal. Em tal visão valorativa da sublimação, até mesmo essa necessidade encontraria um destino favorável nas possibilidades oferecidas pela cultura. Freud menciona aqui particularmente a curiosidade, a investigação, ou seja, a força psíquica que estaria na base da pesquisa científica, em princípio. Aparentemente, Freud estaria defendendo a legitimidade do juízo de valor presente no conceito de sublimação mesmo para o caso extremo da pulsão de destruição.

Com efeito, toda uma série de comportamentos convencionalmente considerados como normais e saudáveis exigem o recurso de um certo grau de agressividade. Em seus sucessivos modelos de aparelho psíquico, Freud sempre concebeu a patologia e a normalidade como diferentes formas de expressão oriundas das mesmas estruturas e processos. Assim, cada conceito em Psicanálise possui uma vocação descritiva tanto de processos normais como patológicos. Com a sublimação não poderia ser diferente. Com efeito, um exame mais detido da economia conceitual da sublimação na obra freudiana demonstra que em momento algum o criador da psicanálise se deixa levar pelo juízo de valor quando se trata de descrever o funcionamento da sublimação e suas relações tanto com normalidade quanto com a psicopatologia. Nesse sentido, e contrariando o que Freud escreveu à Princesa Marie Bonaparte, a obra freudiana está sem dúvida em mais sintonia com o que muito mais tarde seria postulado por Sara Kofman, em A infância da arte, a saber, que devemos pensar a sublimação não como um conceito moral, mas sim como um conceito metapsicológico. (Kofman, 1996 citado por Carvalho, 2010).

O que significa pensar a sublimação como um conceito metapsicológico? Algo muito simples, e sistematicamente referido por Freud em suas explicitações do modo de investigação e reflexão psicanalítico: jamais deixar que nossos desejos e esperanças interfiram na nossa observação e laboriosa tentativa de compreensão da realidade. No caso, tal "realidade" é constituída pelos fenômenos e processos psíquicos individuais e coletivos, a saber, nossos valores morais, crenças, produtos culturais... Considerar tais fenômenos psíquicos e tentar conhecê-los a partir do pressuposto que sublimar as pulsões eróticas ou destrutivas é a priori uma boa coisa, implica necessariamente negligenciar algo da realidade em nome do que gostaríamos que ela fosse.

A psicanálise, contudo, é exemplarmente iconoclasta: seria responsável pela terceira grande ferida no orgulho da humanidade. Copérnico tirara do humano sua centralidade no espaço, Darwin, sua origem divina, a psicanálise vem lhe roubar a ilusão do domínio de si pela razão e o confronta com o fato que, sem sabê-lo, ele age sempre movido pelos desejos mais vergonhosos e incivilizados seja pelo seu caráter erótico, seja pelo seu conteúdo agressivo. A hostilidade contra a psicanálise é frequentemente atribuída por Freud à denúncia pública dessas verdades inconvenientes. Assim, o conceito de sublimação assume um lugar ímpar no elenco dos conceitos psicanalíticos: ele é aquele onde nossos desejos de perfeição e de harmonia com a civilização parecem encontrar uma forma de legitimação na própria teoria psicanalítica. A sublimação representa, assim, uma promessa de reconciliação com os valores ideais da cultura à qual é difícil renunciar. Naturalmente, estamos nos referindo aos próprios psicanalistas que tendem a considerar o processo de civilizar nos aspectos mais selvagens da pulsão, tanto na clínica quanto na cultura, como exclusivamente benéficos. Tal atitude pode ser entendida como uma forma de idealização da sublimação.

A idealização da noção de sublimação pode ser retraçada desde as suas origens anteriores à psicanálise. Vale lembrar, nesse sentido, que o pensamento sobre o sublime assume uma espessura ético/política inegável a partir do momento que as fronteiras literárias do conceito em Longínio e Boileau foram ultrapassadas. Edmund Burke e, principalmente, Kant, passam a pensar o sublime explicitamente no interior de uma problemática moral. Burke propõe o sublime como um prazer no negativo, emancipando-o da experiência do belo. O sublime, para Burke, seria resultado das tendências de autoconservação do indivíduo, em oposição ao belo, ligado às tendências gregárias e sociais. Kant conserva e aprofunda a separação feita por Burke entre o belo e o sublime, mas localiza o sublime no interior de uma filosofia moral, onde a experiência de prazer negativo do sublime introduz o sujeito a uma hierarquia ascendente de faculdades morais que o transcendem, tanto na pequenez de seus interesses quanto na de seus prazeres.

 

A primeira forma de iatrogênese da sublimação segundo Freud

Freud se insere em tal tradição moral do sublime, mas modifica sua teoria de dois modos. Primeiro, ao pensar a sublimação como condição da cultura, e, portanto, como anterior a esta, quando a tradição levava pensá-lo como efeito da cultura. Em segundo lugar, ao pensar essa condição de passagem para a cultura como um recurso essencialmente perigoso para a mesma. A herança kantiana, ao contrário, assim como, posteriormente, a reflexão romântica do sublime, permitiam pensá-lo como um "remédio" das paixões, à medida que essa experiência as educa para o transcendente e universal. Freud, por sua vez, considera, pela primeira vez, a possibilidade de uma iatrogênese da sublimação, ou seja uma patologia análoga às patologias oriundas do tratamento médico, uma vez que, sem deixar de considerá-la como essencial à cultura, ele sistematicamente trata de avaliar os "efeitos colaterais" da sublimação.

Veremos que sua reflexão indica dois tipos de iatrogênese da sublimação bastante diversos, tanto em seus mecanismos causais, quanto na gravidade de seus efeitos. A diversidade dessa tipologia, deriva, no interior da teoria psicanalítica, da diferença entre as duas teorias da pulsão e, em última instância, entre dois modelos de aparelho psíquico. Mas, considerada a partir do exterior da teoria, tais diferenças resultam de profundos abalos no que Freud pensava sobre as conquistas da cultura sobre a natureza. Sua confiança no progresso inerente à cultura veio abaixo a partir do que pode testemunhar na Primeira Guerra Mundial, a saber, a inquietante intimidade entre cultura e barbárie (Green, 1990 e Kahn, 2005).

Antes da Primeira Guerra a sublimação gozava ainda de um estatuto privilegiado, pois se mostrava como a única alternativa não sintomática à satisfação das pulsões sexuais mais primárias. A ideia que o objeto de uma pulsão pré-genital pudesse ser substituído por outros mais elevados do ponto de vista da valorização social era, sem dúvida, sedutora. Freud (1905), em "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", avança a hipótese que apenas as pulsões pré-genitais dariam origem à sublimação: "as forças utilizadas para o trabalho cultural se originam, em grande parte, da repressão dos elementos perversos da excitação sexual" (1905, p. 141). Assim forma-se a ideia de que a cultura se forma idealmente pela sublimação apenas dos elementos sexuais pré-genitais.

A "boa cultura", isto é, aquela compatível com a natureza essencialmente erótica dos interesses humanos, não exigiria nada senão esse modesto tributo: a sexualidade pré-genital. Contudo, a cultura europeia de Freud, particularmente aquela dos grandes centros urbanos vai muito além do ideal acima. Essa é a tese apresentada em "Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna":

Não é arriscado supor que sob o regime de uma moral sexual culta a saúde e a eficiência dos indivíduos esteja sujeita a danos, e que tais prejuízos causados pelos sacrifícios que lhes são exigidos terminem por atingir um grau tão elevado, que indiretamente cheguem a colocar também em perigo os objetivos culturais. (Freud, 1908/1989, p. 187)

Com efeito, as expectativas de sublimação podem ser excessivas em uma cultura, o que acontece quando ela solicita a sublimação também das pulsões genitais para além de uma certa medida. Essa eventualidade pode resultar em um aumento exponencial das patologias neuróticas: "Aqueles que desejam ser mais nobres do que suas constituições lhes permitem, são vitimados pela neurose". (Freud, 1908/1989, p. 197)

Assim, a iatrogênese da sublimação possui, nesse contexto, um caráter apenas contingente: ela surge apenas caso a exigência de sublimação ultrapasse a fronteira imposta pela natureza e constituição de cada indivíduo ou cultura, podendo, portanto, ser evitada com medidas adequadas, no caso, uma reforma da moral sexual civilizada:

é justo que indaguemos se a nossa moral sexual 'culta' vale o sacrifício que nos impõe, já que estamos ainda tão escravizados ao hedonismo ao ponto de incluir entre os objetivos do nosso desenvolvimento cultural uma certa dose de satisfação da felicidade individual. Certamente não é atribuição do médico propor reformas, mas me pareceu que eu poderia defender a necessidade de tais reformas se ampliasse a exposição de Von Ehrenfels sobre os efeitos nocivos de nossa moral sexual 'culta', indicando o importante papel que essa moral desempenha no incremento da doença nervosa moderna. (Freud, 1908/1989, p. 208)

 

A segunda forma de iatrogênese da sublimação em Freud

Uma década e meia depois, em "O ego e o id" (Freud, 1923/1982a) a sublimação passa a ser vista como portadora de uma nova periculosidade, não mais de caráter contingente, mas sim necessário. A razão para essa mudança deriva e depende de modificações conceituais importantes em três aspectos da teoria, e na genial articulação realizada por Freud entre tais aspectos.

Fusão e desfusão pulsional

Primeiramente, cabe apontar uma modificação na economia do aparelho psíquico, a saber, na teoria das pulsões. Uma verdadeira revolução nesta última havia sido iniciada em "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1982e). Contudo, a nova teoria pulsional se completaria apenas em 1923, em "O ego e o id" (1923/1982a), com a introdução de dois novos conceitos, os de fusão e desfusão pulsional. Seria um longo desvio retomar aqui as razões para a introdução da nova teoria das pulsões assim como sua estrutura, desvio eventualmente supérfluo para nossa questão que é a da iatrogênese inevitável da sublimação nesse novo contexto. Mas um elemento dessa nova estrutura é preciso ter em mente: o fato que a pulsão de morte e as pulsões de vida se diferenciam apenas a partir do ponto ao qual buscam retornar, o que, em outras palavras significa que elas se diferenciam em relação a suas metas pulsionais. No primeiro caso, a meta é retornar ao ponto anterior à organicidade, portanto à vida. No segundo, trata-se de retornar a qualquer ponto após o início da vida. Assim, o processo vital se compõe, em tal modelo biológico, de dois tipos de retorno. Isso significa, que na perspectiva freudiana, as pulsões de vida e a pulsão de morte podem se fusionar por longos trechos desse retorno, gerando aquilo que se conhece por vida. Note-se a profunda incompatibilidade desse modelo, não apenas com modelos "progressistas" que consideram a evolução das espécies como um processo de aperfeiçoamento que culminaria no homem, como também com a teoria darwiniana, que não poderia admitir em seu bojo uma pulsão de negação da vida sem contradição com a ideia de uma "seleção natural".

A vida se comporia assim das fusões e das defusões pulsionais para Freud. A desfusão pulsional significa o processo de separação das finalidades das pulsões de vida e da pulsão de morte. O termo "desfusão" aparece pela primeira vez na obra freudiana em "Dois verbetes de enciclopédia. A teoria da libido" (Freud, 1923/1980, p. 312):

As pulsões eróticas e as de morte estariam em misturas, fusões regulares; mas "desfusões" também estariam sujeitas a ocorrer. A vida consistiria nas manifestações do conflito ou da interação entre as duas classes de pulsões. A morte significaria para o indivíduo a vitória das pulsões destrutivas mas a reprodução representaria para ele a vitória de Eros.

Em "O ego e o id", Freud realiza um passo a mais no desdobramento desses dois conceitos, ao atribuir-lhes uma função explicativa na psicopatologia psicanalítica. Assim, ele avança que o que difere uma relação sexual normal de uma relação sexual sadomasoquista seria a desfusão das pulsões de vida e de morte (p. 308). Ao invés de ambas trabalharem para um só fim, como é o caso do orgasmo numa relação sexual normal, em uma relação sadomasoquista cada uma delas trabalharia de modo independente, donde as expressões alternadas de crueldade e ternura. Assim fusão e desfusão pulsional passam a integrar o quadro etiológico das psicopatologias: neuroses graves, o suicídio melancólico e mesmo o fator psicológico na origem da epilepsia passam a admitir entre suas causas a contribuição da desfusão pulsional. Contudo, não resta dúvida que a questão psicopatológica mais importante para Freud, na qual os conceitos de fusão e desfusão pulsional serão a peça chave, será aquela do masoquismo moral, ou seja, a hostilidade constitutiva presente entre o superego e o ego. Esta relação masoquista do ego com seu superego sádico seria responsável por fenômenos até então enigmáticos dado seu caráter demoníaco: a reação terapêutica negativa e a neurose de destino, ambas expressões do que Freud também chamaria de culpabilidade inconsciente ou de necessidade inconsciente de punição (Freud, 1924/1982b). Veremos adiante que a sublimação terá um papel fundamental na produção de tais fenômenos demoníacos.

Superego e identificação

Vejamos então a segunda modificação, aquela na tópica do aparelho psíquico, que resultaria na introdução da instância do superego. Naturalmente, comentar a maioria das ramificações e consequências desta mudança na teoria e clínica psicanalítica seria esquecer do nosso propósito, a saber, a sublimação nesse novo contexto. Interessa-nos, para esta análise, apenas dois aspectos. Primeiro, a discussão iniciada acima, sobre a dinâmica sadomasoquista estabelecida entre o superego e o ego. Segundo, interessa-nos o processo da gênese do superego, e será disso que trataremos nesse momento. O superego seria oriundo, para Freud, das primeiras identificações do sujeito com a dupla parental.

A resolução do complexo de Édipo, isto é, o abandono dos pais enquanto foco fundamental dos investimentos eróticos da criança, não seria possível, diz Freud, senão sob uma espécie de compensação econômica. A libido reluta em abandonar seus objetos, e, quando isso é inevitável, resta ainda uma última solução, a saber, a identificação do ego com o objeto perdido. Esse processo havia sido desenvolvido em detalhe por Freud em "Luto e melancolia" (1917/1982f, p. 203), onde o essencial da diferença entre os dois se fundava na hipótese de uma identificação do sujeito com o objeto de amor. Na melancolia, o sujeito se identificaria com o objeto de amor e de ódio, transferindo essa ambivalência de sentimentos oriunda do objeto ao ego. No caso do luto, não haveria identificação, mas aceitação dolorosa da perda ocorrida. Do ponto de vista da manutenção da economia interna do aparelho psíquico, apenas a identificação com os pais permitiria sua "perda" enquanto objeto de amor. "- Veja, diria o Id ao ego, você também pode me amar, sou tão parecido com o objeto..." (Freud, 1923/1982a, p. 298)

O processo de identificação garantiria assim uma espécie de substituição dos objetos de amor. Mas com o quê se identifica o sujeito? Com representações: para além do corpo da mãe e do pai, o sujeito guardaria a voz destes, o conteúdo e o sentido do que estes valorizam e desejam da criança para que ela mereça seu amor. Assim, o superego é feito da memória de falas, de gestos e de olhares dos pais que assinalaram para a criança o que tem e o que não tem valor. Mas o superego possui ainda um outro aspecto, na verdade, uma outra etapa em sua evolução, a saber, aquela que o define como um elemento chave da inserção do sujeito na cultura.

Com efeito, o complexo de Édipo, é sem dúvida, o processo civilizatório por excelência, ainda que um dos seus precipitados seja a singularidade do desejo de um sujeito. Assim, se ele é um processo instaurador da subjetividade, uma vez que através dele, o sujeito integra a falta em uma estrutura simbólica singular e própria, o complexo de Édipo é também essencialmente o modo como o sujeito se integra à uma ordem simbólica que o transcende, a mesmo título que um elo faz parte de uma corrente. De modo que a castração será eficaz se, e somente se, introduzir as faltas numa ordem simbólica, isto é, numa organização regrada socialmente compartilhada. No caso da castração, tal organização social incide sobre os objetos de desejo edípico, inserindo a perda destes numa gramática onde eles não seriam perdidos por acaso ou por maldade, e sim por uma proibição ligada aos lugares ocupados por cada um dos participantes do triângulo edípico, independentemente de seus atores. Tal proibição, na teoria freudiana, seria exemplarmente veiculada pela figura paterna: "- Essa é minha mulher antes de ser sua mãe! Quando crescer, contudo, terás direito a outra mulher. (Faço contigo o que meu pai fez comigo)". Trata-se de uma modalidade de proibição baseada na ideia de lugares desvinculados das pessoas em questão. Assim, a castração socializa uma perda que, sem a ordem simbólica, seria vivida segundo uma lógica essencialmente individual. "Meu pai guarda tudo para ele, só porque ele é mais forte. Quando eu crescer farei o mesmo..." Ou seja, a falta é aqui pensada como contingente, não como uma regra à que todos devem obedecer, o pai inclusive. Eis o sentido social da interdição do incesto pelo pai no complexo de Édipo.

A estrutura do superego, segundo Freud, resulta da articulação dessa organização simbólica da falta ao discurso interior dos ideais parentais na forma de identificações primárias. As renúncias à satisfação pulsional do sujeito serão doravante acompanhadas de orgulho, pois o sujeito goza em seu interior da aprovação dos seus pais através da estrutura super-egóica. De algum modo, essa será a matriz interpretativa de outras perdas do sujeito e seu modo de renunciar a outros desejos, impossíveis ou não. Fica claro, então, que a formação do superego possui um o caráter incontornável para a vida civilizada. Será essa a única instância psíquica a permitir que o adiamento, a restrição e eventualmente a renúncia à satisfação pulsional possam se operar por motivos interiores ao sujeito. Eis porque Freud afirma que o imperativo categórico kantiano, ou seja, o princípio moral no meu interior, é herdeiro do complexo de Édipo, ou seja, não é senão o superego. Em outras palavras, não há civilização sem a ereção do superego em cada um de nós. Porém - e sempre há um porém -, esta entrada na civilização é paga com um tributo extorsivo, conforme veremos adiante.

Sublimação e narcisismo

A terceira e última modificação implicada do caráter radicalmente nefasto que a sublimação assume na obra de Freud é aquela que ocorre no próprio conceito de sublimação. Pode-se dizer que este é o resultado de uma longa e lenta articulação, no pensamento freudiano, entre os conceitos de sublimação e de narcisismo. Em "Introdução ao narcisismo", a sublimação é ainda apresentada de modo exclusivamente descritivo. Ao compará-la com a idealização, Freud ressalta que ela seria um processo atinente ao objeto pulsional. Um objeto sexual pode ser idealizado como demonstra a paixão amorosa. Isso demonstra que na idealização a meta pulsional continua sendo sexual. Já a sublimação implicaria uma mudança tanto do objeto quanto da meta pulsional (Freud, 1914/1982g, p. 61).

Contudo, nada é dito a respeito do modo como isso ocorreria no psiquismo. Finalmente, em "O ego e o id" Freud descreve o mecanismo geral que estaria na base de toda sublimação. A solução dada por Freud para isso compreende esse processo como uma transformação do investimento objetal em investimento narcísico. Só a partir do "estado de investimento narcísico" é que a libido poderia ser reinvestida em conteúdos socialmente valorizados. Assim, antes de poder substituir o objeto e a finalidade de uma pulsão sexual, o psiquismo deverá operar uma regressão da libido ao ego, e somente a partir do ego é que será possível ocorrer um novo investimento. Tal passagem pelo ego seria, em última instância, a responsável pela necessária dessexualização da libido inerente à toda e qualquer sublimação.

Vimos assim os três eixos implicados na radicalização do mal oriundo da sublimação em Freud. Quais sejam: primeiramente, a introdução dos conceitos de fusão e desfusão pulsional enquanto possibilidades das relações entre pulsão de vida e pulsão de morte. Tais conceitos possuem uma função causal na psicopatologia psicanalítica como um todo, acirrando a gravidade de patologias já conhecidas e conceitualizando novas patologias. Em segundo lugar, a introdução de uma nova instância psíquica, o superego, com uma explicação consistente a respeito de sua articulação com o Complexo de Édipo: sua gênese nas identificações parentais, sua função socializante pela simbolização da castração e sua dinâmica sadomasoquista com o ego. Em terceiro lugar, uma explicitação do mecanismo implicado no abandono da meta sexual inerente à toda sublimação. Segundo a hipótese de Freud, antes de poder ser investida em uma finalidade socialmente valorizada pela cultura, a libido sexual objetal deve sofrer um processo de dessexualização transformando-se em libido narcísica.

 

Uma genial articulação

A descrição da "genial articulação" de Freud entre esses três aspectos merece atenção, pois envolve duas etapas. Antecipando o essencial dessa articulação, veremos que a primeira etapa está ligada à gênese do superego, a qual representará o maior fator de desfusão pulsional capaz de ocorrer no psiquismo. A segunda etapa está ligada aos destinos das pulsões de vida e de morte após tal desfusão pulsional, que se reorganizam em uma dinâmica sadomasoquista entre o ego e o superego.

Vejamos a primeira etapa, a saber, aquela ligada à gênese do superego. Vimos que esta depende da substituição dos investimentos libidinais nos pais por identificações com estes. Em seguida, na análise do mecanismo de abandono da meta sexual na sublimação, vimos que este mesmo processo de regressão da libido objetal à libido narcísica é responsável por sua dessexualização. "A transformação da libido sexual em libido narcísica comporta um abandono dos alvos sexuais, uma dessexualização, e, portanto, uma espécie de sublimação" (Freud, 1923/1982a, p. 312). A grande novidade presente no pensamento freudiano é a ideia que a dessexualização acarretaria a desfusão pulsional. Essa ideia é apresentada inicialmente de forma indireta, quase como uma remota hipótese:

A transformação de libido de objeto em libido narcísica, que assim se efetua, obviamente implica um abandono de objetivos sexuais, uma dessexualização - uma espécie de sublimação, portanto. Em verdade, surge a questão, que merece consideração cuidadosa, de saber se este não será o caminho universal à sublimação. Se toda sublimação não se efetua através da mediação do eu, que começa por transformar a libido objetal sexual em narcísica e, depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo. Posteriormente, teremos de considerar se outros destinos pulsionais não podem resultar também dessa transformação; se, por exemplo, ela não pode ocasionar uma desfusão das diversas pulsões que se acham fundidas. (Freud, 1923/1982a, p. 298)

Contudo, quando essa hipótese for "posteriormente" retomada, Freud o fará de modo incisivo, preparando o terreno para apoiar sobre ela o peso de uma série de deduções e consequências de longo alcance sem qualquer hesitação:

Aqui estamos novamente diante da possibilidade mencionada acima, aquela que a sublimação seja realizada regularmente pela intermediação do ego. Lembremo-nos ainda do outro momento, o fato que esse ego resolve os primeiros como certamente também os posteriores investimentos objetais ao tomar para si a libido e ligá-la à alteração do ego oriunda da identificação. A transformação da libido sexual em libido narcísica comporta um abandono dos alvos sexuais, uma dessexualização, e, portanto, uma espécie de sublimação. Contudo, obtemos assim o entendimento de um importante resultado do ego em sua relação com Eros. Ao dominar desse modo a libido dos investimentos objetais, ao oferecer-se como único objeto de amor, ao dessexualizar ou sublimar a libido do Id, ele trabalha contra os propósitos de Eros e se coloca a serviço das moções pulsionais opositoras. (Freud, 1923/1982a, p. 312)

Finalmente Freud irá articular a dessexualização ou sublimação em jogo nas identificações à identificação em jogo na gênese do superego:

O superego se origina de uma identificação com o protótipo paterno. Esse tipo de identificação sempre tem o caráter de uma dessexualização ou sublimação. Aparentemente, nesse tipo de conversão ocorre também uma desfusão pulsional. Após a sublimação, o componente erótico não mais forças para ligar a totalidade da destrutividade que com ele se achava combinado, e esta se libera sob a forma de uma inclinação à agressão e à destruição. (Freud, 1923/1982a, p. 321)

De modo que a própria gênese do superego provoca a desfusão pulsional, isto é libera a pulsão de morte de sua associação com as pulsões de vida. Mas, uma vez liberada, a pulsão de morte passa a alimentar as exigências do superego com uma sede de crueldade verdadeiramente demoníaca: "De tal desfusão viria o caráter de severidade e rigor apresentado pelo imperativo soberano dos ideais" (Freud, 1923/1982a, p. 321). Ainda que articulados, são dois processos diferentes que estão aqui em jogo: primeiramente a desfusão advinda do surgimento do superego, em segundo lugar, sua reutilização na forma de uma relação sadomasoquista entre o superego e o ego.

O processo de identificação aos pais inerente à constituição do superego implica assim o maior fator de desfusão pulsional em jogo na formação do sujeito culturalizado. A pulsão de morte liberada por esta desfusão é colocada a serviço do rigor do superego, multiplicando sua agressividade e estabelecendo uma relação sádica deste com o ego. Esta relação é o que está na base do que Freud chamará de necessidade inconsciente de punição e de masoquismo moral - o maior flagelo da vida civilizada.

 

Conclusão

O diagnóstico de Freud e a questão de sua atualidade.

Assim, nesse novo contexto, se a sublimação é condição da cultura, ela é considerada por Freud como uma condição duplamente iatrogênica. Num primeiro tempo, caso a sublimação ocorra em excesso, ela será responsável pela insatisfação sexual, o que dá indiretamente origem aos sintomas neuróticos, sejam aqueles das psiconeuroses, sejam aqueles das neuroses atuais, ou ambos. Num segundo tempo, Freud atribui ao seu modo de operação, isto é, à transformação da libido objetal em narcísica, o poder de desfusionar a pulsão de morte das pulsões de vida, acarretando, para além dos sintomas neuróticos, um segundo aspecto da iatrogênese da sublimação, a saber, o que seria concebido como uma das formas básicas do mal estar na civilização: o masoquismo moral. Esta última concepção da iatrogênese da sublimação permite, com efeito, o da interpretação da sedução exercida pelas ideologias totalitaristas que o século XX testemunhou e que ainda continuam muito presentes no século XXI.

De fato, o masoquismo moral sempre esteve solidamente apoiado em dois pólos: a economia psíquica organizada pelo complexo de Édipo e a cultura patriarcal ocidental. Para o masoquismo moral, as punições morais sancionadas pelo superego podem ser investidas de prazer. A cultura ocidental encontrou no discurso religioso judaico-cristão um apoio a essa estrutura, graças à representação de uma ordem transcendente e ao apoio em narrativas que valorizam o sacrifício. As religiões e as instituições sociais correlatas, como a família, a educação e a justiça, funcionam como discursos que homologam, no âmbito social, a proibição do incesto e sua forma peculiar de organizar socialmente os limites impostos pela castração. Nesse contexto social, a sublimação se inscreve não apenas na formação do superego em cada sujeito, como também enquanto um ideal a ser atingido, formando uma espécie de aumento exponencial do rigor das exigências do superego e também da satisfação masoquista do ego. Tal mecanismo foi exemplarmente descrito por Freud em "Moisés e a religião monoteísta" (1937/1982d), sendo particularmente visível na cultura judaica, mas evidentemente aplicável para outras culturas monoteístas.

Contudo, é de relativo consenso que, a partir do Iluminismo, tais instituições culturais perderam a força garantida pelo discurso religioso. Inicia-se uma orfandade moral do homem e a necessidade de inventar a cada vez novas justificativas da moralidade. Com efeito, a Modernidade se caracteriza pelo imperativo de uma construção incessante de si. Sem poder contar com um princípio transcendente que possa ser evocado para as coerções cotidianas, a forma contratual e racional, fundada na liberdade e na igualdade dos contratantes, é colocada no lugar da proibição do desejo do discurso religioso (Taylor, 2010).

A Weltanschauung religiosa, contudo, não desapareceu do cenário moderno, como o demonstram as várias formas de fundamentalismo em vigor. Mas sua participação na cena cultural atual é muito mais complexa, já que uma série de recomposições e novas figuras surgiram no imaginário social atual. O resultado final é um complexo mosaico, onde, além das composições com justaposição lateral, há outras entre as camadas passadas com as mais atuais. As considerações a seguir devem ser compreendidas, portanto, não enquanto quadros gerais da atualidade, mas como uma descrição de um novo componente que se adiciona a este complicado mosaico.

A retração do discurso patriarcal: o terceiro tempo da iatrogênese da sublimação

No século XX, novas promessas de infinitude, provenientes da economia de consumo e da vulgata da ciência, contribuem, por seu turno, para a formação de uma cultura de desinvestimento ético e estético dos limites impostos a cada um. Um exemplo paradigmático desse convite à dúvida e à desconsideração dos limites, foi o efeito bombástico no consumo que a propaganda dos cartões Mastercard obteve com o slogan: "O sorriso de seu filho (ou namorada, mulher, etc.) não tem preço". A economia de consumo depende do caráter essencialmente insatisfeito do desejo, assim como da ilusão de ausência de limites quando se trata de realizá-lo. Segundo J.-P. Lebrun (2007) resulta disso a deficiência de uma homologação social da castração, o que modifica em profundidade a economia psíquica do sujeito. É a submissão do sujeito a uma ordem superior, à qual deve obedecer, que está em deterioração. Lebrun observa que, para o sujeito do inconsciente, um contrato entre iguais pode sempre ser desfeito. Isso não apenas enfraquece os alicerces da nova ordem social, mas, sobretudo, instaura na cultura uma relação tipicamente perversa com a proibição, pois nela são simultaneamente possíveis a proibição do objeto de desejo e sua satisfação.

Nesse sentido, a retração do discurso patriarcal resulta em um investimento libidinal menor das funções morais do superego no sujeito. Segundo nossa hipótese, os efeitos psíquicos desse desinvestimento são notáveis, particularmente desestruturando o masoquismo moral, e, naturalmente, as formações psíquicas normais e patológicas dele dependentes (Silva Junior & Lírio, 2005; Silva Junior, 2006, 2010). No campo da normalidade, é a própria castração que se vê privada de um influxo pulsional, ameaçando de extinção as formações sociais cujo sentido se funda na estética e na ética sacrificial. Para o sujeito pós-moderno, o desfecho do filme Casablanca, por exemplo, onde Rick renuncia à mulher de sua vida em nome da liberdade dos povos oprimidos não funciona mais como um ideal.

Em tal ambiente cultural, a constituição masoquista do sujeito tende a se satisfazer sob outras formas. O masoquismo feminino e o masoquismo erógeno têm encontrado espaços sociais cada vez mais estruturados: clubes de bdsm e associações de suspensões corporais são um exemplo disso. Mas expressões não institucionalizadas do masoquismo feminino e erógeno estão também mais presentes na cultura, como na publicidade e nas modificações corporais.

Mas o preço a pagar por esse alívio da tortura superegoica não é pequeno. A cultura simplesmente não fornece mais ao sujeito regras nas quais o limite seja um valor inquestionável, moral e esteticamente partilhado. As expressões propriamente patológicas dessa nova economia psíquica respondem de modo fiel ao enfraquecimento das formações discursivas do patriarcado: a identidade e o erotismo são singularmente marcados por uma lógica compulsiva na busca e na representação de limites.

Por um lado, as tatuagens e outras modalidades de modificação corporal tendem a substituir a narrativa da história e identidade do sujeito (Silva Junior, 2008). Por outro, o limite a ser transgredido para que o erotismo possa existir é buscado não mais nas instâncias que remetem à ordem paterna, mas na própria dor corporal (Silva Junior & Lírio, 2005). O masoquismo originário se vê assim cada vez mais encarregado de organizar sozinho o essencial da economia pulsional dos novos sujeitos.

 

Referências

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Correspondência:
Nelson da Silva Junior
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Recebido em 24/1/2011
Aceito em 18/2/2011

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