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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.1 São Paulo jan./mar. 2011

 

ARTIGOS TEMÁTICOS
SUBLIMAÇÃO

 

Shibboleth de Doris Salcedo: reflexões sobre a representação do negativo

 

Shibboleth by Doris Salcedo: reflections on the representation of the negative

 

Shibboleth de Doris Salcedo: reflexiones acerca de la representación de lo negativo

 

 

Alejandro Rojas-UrregoI; Andrea EscobarII; Berta Elena FonsecaIII; Marta LapacóIV; Sara Patricia Moreno de CoralV; Fanny Sabogal de LaverdeVI; Andrés SantacolomaVII; Tradução: Ana Tanis

IMembro titular e analista didata da Sociedade Colombiana de Psicanálise, diretor do Instituto Colombiano de Psicanálise
IIMembro associado da Sociedade Colombiana de Psicanálise
IIIMembro titular da Sociedade Colombiana de Psicanálise
IVMembro titular da Sociedade Colombiana de Psicanálise
VMembro titular e analista didata da Sociedade Colombiana de Psicanálise
VIMembro titular da Sociedade Colombiana de Psicanálise
VIIMembro associado da Sociedade Colombiana de Psicanálise

Correspondência

 

 


RESUMO

Propõe-se um trabalho de psicanálise aplicada no qual se constrói, a partir da obra Shibboleth da artista Doris Salcedo, um olhar sobre a rachadura como a representação da ausência de representação. Articulam-se os efeitos que a obra de arte tem sobre espectador-analista, com elementos próprios da experiência da clínica psicanalítica, e exploram-se os conceitos que podem vincular-se em torno dessa temática.

Palavras-chave: o negativo; psicanálise aplicada; representação; sentido.


ABSTRACT

Through a work of applied psychology, the perspective of a crack as being the representation of a lack of representation is constructed from “Shibboleth”, a piece by the artist Doris Salcedo. The effects which a work of art can have over a spectator-analyst are connected with actual elements of the experience of the psychoanalytic clinic, and concepts which link to this theme are explored.

Keywords: the negative, applied psychoanalysis, representation, sense/meaning/signification


RESUMEN

A partir de la obra Shibboleth de la Artista Doris Salcedo, se propone un trabajo de psicoanálisis aplicado, en el que se construye una mirada acerca de la grieta como la representación de la ausencia de representación. Se articulan los efectos que la obra de arte tiene sobre el espectador-analista, con elementos propios de la experiencia de la clínica psicoanalítica, y se exploran los conceptos que pueden vincularse alrededor de esta temática.

Palabras clave: lo negativo; psicoanálisis aplicado; representación; sentido.


 

 

 

Acredito que, no meu caso, conseguir representar o que eu busco assinalar é impossível. O fracasso me acompanha de antemão. E isso é algo difícil de assumir. Mas, em alguns casos, consegue-se que, nos interstícios das obras, nas rachaduras que restam, algo de tal realidade se inscreva.

Doris Salcedo

Conversa com Hans-Michael Herzog (2004)

 

Introdução

Shibboleth é feita de subtração da matéria. É uma rachadura de 167 metros no piso de concreto de um lugar emblemático para a escultura contemporânea.8 Não representa um buraco, um vazio ou um abismo. Apresenta-os, e com isso nos convida a refletir sobre aquilo que distingue a apresentação de sua representação.

"A obra que fiz para o Turbine Hall faz referência a uma indiferença absoluta. Nenhum ornamento cultural atenua a desolação e a pobreza a que faz alusão." (Salcedo, 2009).

"Shibboleth é um espaço negativo, que alude ao grande vazio" (Salcedo, 2009). Rachadura, ruptura, incisão, cesura, separação precisa e brutal. A obra de Doris Salcedo não ocupa espaço, mas quebra-o, penetra-o, invade-o (Pini, 2008). Um abismo separa definitivamente as duas margens, que não se encontram, que não parecem tocar-se nem nunca se conciliar.

Na psicanálise contemporânea, o trabalho sobre a dimensão do negativo tem ocupado progressivamente um lugar essencial. Apoiadas fundamentalmente nas obras de Freud, Winnicott e Bion, as contribuições de André Green (1993, 2002, 2005) nesse campo são consideradas capitais por inúmeros analistas. A constatação da importância dessa dimensão do psiquismo humano na prática psicanalítica cotidiana e a frequência de suas manifestações na clínica nos levou a sentir a urgência de refletir sobre aquela instância psíquica.

Recorreremos, nesse momento, à metodologia inerente à chamada "psicanálise aplicada", como Freud a define em "O Moisés de Michelangelo" (1914) referindo-se à necessidade de conhecer o o quê e o porquê daquilo que na obra de arte nos emociona e que consideramos, como uma ficção, "a única forma de poetizar essa ciência singular que é a psicanálise sem cair na metafísica" (Green; Corcos; Rojas-Urrego; 2006, p. 20).

Tal olhar implica, além disso, um ir e vir permanente entre as descobertas feitas graças a essa ferramenta e àquelas provenientes da experiência na situação analítica.

"Trabalho a experiência daqueles que se encontram na margem da vida, nas fronteiras, na periferia da vida, no epicentro das catástrofes." (Salcedo, 2009).

 

II. Shibboleth: efeitos sobre o espectador analista

A rachadura pode ser apreendida como "evidência de". Algo aconteceu. Algo não aconteceu. O que aconteceu e o que não aconteceu poderiam encontrar na rachadura um lugar. Nesse sentido, é importante distinguir a representação do que ocorreu e se perdeu e a representação do que nunca ocorreu. Esta última corresponderia à representação da ausência de representação.

Shibboleth nos coloca diante, primeiramente, da angústia que inevitavelmente nos mobiliza a necessidade - mais ou menos secreta em cada um - de uma continuidade segura, sem falta, sem falha. Cabe perguntar-se, então, o porquê de tamanho terror frente à separação. Intolerância a separação, distância e ruptura. E se a separação fosse abismo? Fratura.

Em segundo lugar, Shibboleth também nos defronta com a fragilidade de um chão que fará cambalear qualquer estrutura que eventualmente busque apoiar-se sobre ele. Já não importa a aparente solidez dos muros, pois ela não pode ser mais do que justamente isso: aparência. Ilusão de estabilidade, de equilíbrio e permanência. Talvez por isso a angústia de colapso venha somar-se à angústia de separação. Angústia de cair sem fim, terror de desmoronar, sensação de uma vida pendurada por um fio que ameaça rasgar-se. O chão se racha e desaba: significante formal (Anzieu, 1987) capaz de dotar de sentido a experiência sempre que compreendida em sua dimensão negativa.

"Minha obra não conta nem narra acontecimentos. Não relata uma história, não é narrativa nostálgica de acontecimentos passados. Ela assinala a ausência do vivido." (Salcedo, 2009).

Demandamos, então, de nossa parte, uma capacidade negativa (Bion, 1970),

um olhar que não se aproximaria somente para discernir e reconhecer, para denominar a todo custo o que se apreende - mas que, de início, se afastaria um pouco e se absteria de esclarecer tudo de imediato. Algo semelhante a uma atenção flutuante, uma longa suspensão do momento de concluir, na qual a interpretação teria o tempo de desdobrar-se em várias dimensões, entre o aparentemente apreendido e a prova vivenciada de um desprender-se. (Didi-Huberman, 1990, p. 25)

Surge a necessidade de apegar-se a algo ou a alguém.

Talvez o movimento possa nos servir como primeiro ponto de apoio. Percorrer, então, o espaço. Percorrê-lo, contornar seu contorno, ir de um extremo ao outro, talvez aproximar-se das profundidades que, em um primeiro momento, parecem impenetráveis. Tentar dar um passo entre uma margem e outra. Transformar o terror em um jogo possível. Mas, ao passar de um lado a outro, de um terreno a outro, exercendo a possibilidade de ir e vir, estaríamos negando ou assumindo a separação? Estaríamos de fato indo de uma a outra margem, diferente, separada ou, ao contrário, buscando, desesperadamente, reuni-las, re-estabelecer a continuidade primeira? Difícil saber.

Pensemos a dimensão do silêncio em um analisando em sessão. Sua relação com a mãe esteve marcada por um enorme silêncio que determina uma fissura intransponível. O silêncio se converte em distância e o menino no analisando busca transpô-la, mas o silêncio não é preenchido por nenhuma resposta audível. Somente se faz "presente" a não-resposta afetiva e se estabelece uma vida descontínua, à qual se contrapõem a continuidade no processo analítico e a escuta ativa do analista. Os silêncios prolongados surgem como ponto de encontro consigo mesmo. Quando a analista propõe transformá-los em linguagem verbal, o analisando sofre uma grave crise somática e o processo fratura-se. Desaparece, literalmente, deixando uma cicatriz que perdura para além da rachadura. Ficará para sempre no Turbine Hall, ainda que terminada a exposição da obra de Doris Salcedo, o rastro do que não houve, a representação que não existiu.

Passemos ao tempo, então, como um segundo apoio, e pensemos. Tentemos imaginar o movimento telúrico original, a causa de semelhante desastre, a razão de uma ruptura irreversível. Somente podemos vislumbrar, se tanto, a violência que deu origem a uma fratura como essa. O traumatismo talvez irreparável. É tão grande que as primeiras imagens se obscurecem. Constatamos, então, que no Turbine Hall reina um imenso silêncio, como o das catedrais.

A vida é feita de rachaduras. Podemos imaginar aqui uma tentativa de devolver o tempo. Voltar para antes de acontecer o que ocorreu ou o que não ocorreu. Há aqui um paradoxo essencial: a rachadura é o vestígio de que ocorreu o que não ocorreu, de que se sucedeu o que não se sucedeu.

Sublinhamos a importância que tem, em primeiro lugar para o analista, tolerar o vazio. Isto é o essencial na elaboração do luto, tanto do que houve e se perdeu quanto do que jamais ocorreu, em contraposição à tendência a preencher prematuramente o vazio com interpretações.

Há situações nas quais o tempo de espera ultrapassa o limite do tempo, que fica, então, suspenso (Winnicott; 1971, 1974). Uma analisanda em sessão evoca Louise Bougeois e o grito de Munch. Graças ao trabalho de figurabilidade psíquica na analista, que exige unificação, coerência e inteligibilidade, foi possível acessar o negativo do trauma (Botella e Botella, 2001), vinculando posteriormente neste caso aquilo que foi roubado ou desapareceu, ao menos por um tempo, enquanto pode ser recuperado.

O que minha obra tenta mostrar é o fato de que o passado não pode ser recuperado através da representação, ainda que tentemos permanecer fiéis à memória ou à história. ... Na minha obra tento, em vão, recuperar o irreversível. (Salcedo, 2009)

 

III. Conclusões

Na minha obra trabalho o irrepresentável, a ausência, o vazio, o silêncio, a morte.

(Salcedo, 2009)

Podemos ocupar o espaço e o tempo. Tentar pensá-los. Buscar preencher o vazio visual, sonoro e psíquico, com ideias, com palavras. Dessa maneira, podemos procurar saber o que precisamente nos sugere nos confrontarmos com o não saber. Para Doris Salcedo, Shibboleth é "um espaço negativo; evoca uma lacuna da história." Talvez o melhor seja voltar ao princípio, começar pelo começo, buscar em nós mesmos essa capacidade negativa proposta por John Keats e que Wilfred Bion (1970) soube resgatar para a psicanálise.

No caso da psicanálise aplicada, de acordo com a formulação de Green, "o analista torna-se o analisado do texto" (Green, 1992, p. 20). Freud (1914) refere-se à necessidade de conhecer o o quê e o por quê daquilo que nos emociona. Esse é, seguramente, o propósito da "disposição analítica": interessa-nos os efeitos e as representações que a experiência artística mobiliza em nós. Mas, ao o quê e ao por quê conviria somar um como, um quando, um onde, um para quê e, principalmente, um quem, entendendo de que lugar ele vivencia tal experiência, especialmente quando entramos no território do negativo.

Para construir um objeto carregado de significado, para construir uma obra de arte, tenho que ir em busca do outro, das pessoas que viveram uma experiência extrema. Meu trabalho é uma relação com esse outro e isso é, precisamente, o que a obra de arte busca expressar. Sua presença é uma condição sine qua non para que a obra seja possível. (Salcedo, 2009)

Ao penetrar no território do negativo, na busca da ausência, do vazio, do silêncio, do irrepresentável, da morte, é imperativo que se possa contar com a presença de um outro e este outro se encarna em várias formas. A experiência amorosa, a experiência da obra de arte, a experiência de uma certa forma de psicanálise (Roussillon, 2004) "podem nos ajudar a encontrar/criar uma saída para aquilo que no passado não encontrou nenhuma" (Rojas-Urrego, 2008a, p. 244; 2008b). Um sentido potencial poderia, então, chegar a ser um sentido verídico (Green, 1980). Um sentido frustrado (Rojas-Urrego, 2009, p.17), mais que um sentido perdido, poderia ser, por fim, vivido. Ser, por fim, encontrado.

 

Referências

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Correspondência:
Alejandro Rojas-Urrego
[Sociedade Colombiana de Psicanálise]
alejandrorojasurrego@gmail.com

Andrea Escobar
[Sociedade Colombiana de Psicanálise]
escobaraltare@gmail.com

Berta Elena Fonseca
[Sociedade Colombiana de Psicanálise]
befonseca@yahoo.com

Marta Lapacó
[Sociedade Colombiana de Psicanálise
lapacomarta@yahoo.com

Sara Patricia Moreno de Coral
[Sociedade Colombiana de Psicanálise]
decoralsp@latinmail.com

Fanny Sabogal de Laverde
[Sociedade Colombiana de Psicanálise]
fanyssa@hotmail.com

Andrés Santacoloma
[Sociedade Colombiana de Psicanálise]
andressantacoloma@hotmail.com

Recebido em 22/11/2010
Aceito em 4/2/2011

 

 

Revisão: Ana Maria Brias

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