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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.1 São Paulo jan./mar. 2011

 

INTERFACE

 

Música, sublimação e a linguagem do inconsciente

 

Music, sublimation and language of the unconscious

 

Música, sublimación y el lenguaje del inconsciente

 

 

Rodolfo Coelho de Souza

Professor livre-docente das cadeiras de Teoria Musical e Composição do Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo USP

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe a hipótese de que certos pressupostos da linguagem do inconsciente condicionam a realização da sublimação freudiana. A partir desse princípio reformula a proposição de Lacan sobre o "inconsciente estruturado como linguagem" revisitando as operações sígnicas do inconsciente através da teoria semiótica de Peirce. Propõe uma correlação do processo onírico com a linguagem musical e no caminho reconhece a identidade funcional entre as teorias do signo de Freud e de Peirce. Estabelece finalmente uma relação entre um estudo de caso de um sonho e a análise de três peças musicais que exemplificam operações lingüísticas inconscientes facilitadoras do processo de sublimação.

Palavras-chave: análise musical; semiótica; sublimação; inconsciente.


ABSTRACT

This paper proposes the hypothesis that certain assumptions of the language of the unconscious condition the occurrence of Freudian sublimation. Using Peirce's semiotic theory, the author revisits the problem of the unconscious sign operations, reframing Lacan's proposition of the “unconscious structured as language”. It proposes a correlation between the dream process and musical language and, in doing so, recognizes a functional identity between Freud's and Peirce's theories of the signs. Finally, the paper establishes a relation between the case study of a dream and the analysis of three musical pieces which exemplify unconscious linguistic operations that facilitate the sublimation process.

Keywords: musical analysis; semiotics; sublimation; unconscious.


RESUMEN

Este artículo propone la hipótesis de que ciertos supuestos del lenguaje del inconsciente condicionan la realización de la sublimación freudiana. A partir de este nuevo principio reformula la proposición de Lacan sobre el “inconsciente estructurado como lenguaje” revisando las operaciones semióticas del inconsciente a través de la teoría semiótica de Peirce. Propone una correlación del proceso del sueño con el lenguaje musical y reconoce la identidad funcional entre las teorías del signo de Freud y de Peirce. Establece finalmente una relación entre un estudio de caso de un sueño y el análisis de tres piezas musicales que ejemplifican operaciones lingüísticas inconscientes facilitadoras del proceso de sublimación.

 Palabras clave: análisis musical; semiótica; sublimación; inconsciente.


 

 

Introdução

O mecanismo da sublimação, abordado por Freud em alguns ensaios, não lhe inspirou uma monografia dedicada ao conceito. No ensaio sobre uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci, Freud (1910/2001b, p. 26) introduz o tópico mencionando que "a maioria das pessoas conseguiu orientar uma boa parte das forças resultantes do instinto sexual para sua atividade profissional. O instinto sexual presta-se bem a isso, já que é dotado de uma capacidade de sublimação: isto é, tem a capacidade de substituir seu objetivo imediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser mais altamente valorizados."

Revisitando o tema em "O mal-estar na civilização", Freud (1929/2006b p. 87) reitera que "a sublimação realiza um deslocamento da libido" para "reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a frustração do mundo externo." Entretanto, nesse mesmo texto, o trabalho profissional comum não é mais considerado como paradigmático dos processos de sublimação. A ênfase é deslocada para pessoas que "estão longe de ser comuns" e que "pressupõe a posse de dotes e disposições especiais." Exemplifica com "a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades."

Por outro lado, são reconhecidas as profundas conexões do pensamento freudiano com a filosofia do século dezenove. Já se cometeu o exagero de afirmar que sem Nietzsche não teria existido Freud. Fosse isso verdade haveria que se explicar o paradoxo da filosofia da música desempenhar um papel fundamental na obra de Nietzsche, mas ser ausente na obra de Freud. Aliás, a denegação da música em Freud não é apenas tácita. Em "O Moisés de Michelangelo" ele reconhece sua incapacidade para submeter a música ao método psicanalítico:

as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura. Isso já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque sou assim afetado e o que é que me afeta. (Freud 1913/2001c, p. 103)

Ao separar o trabalho de cientistas e artistas numa categoria diferenciada, Freud comete o pecadilho de um autoelogio, mas também suscita uma interessante questão: o que haveria de particular no modo de pensar de cientistas e artistas que os tornariam capazes de realizar, com mais sucesso do que os outros, o processo da sublimação? E podemos ainda acrescentar: não seria justamente na linguagem que mais resiste à interpretação - ou seja, segundo o próprio Freud, a da Música - onde encontraríamos processos de significação com maior parcela de componentes inconscientes?

Se dermos crédito ao imaginário popular, que retrata artistas e cientistas como pessoas propensas a viver em um mundo de sonhos apartado da realidade cotidiana, haveria uma identidade singular entre o pensamento criativo de artistas e cientistas e o trabalho onírico. Aliás, essa mesma ideia foi explorada pelo movimento surrealista, influenciando não só artistas, mas também psicanalistas, como Jacques Lacan (ver Roudinesco, 2008 p. 50). Em suporte a esta tese lembremos os relatos de Einstein sobre a maneira como ele desenvolvia suas teorias. Isaacson (2007, p. 45) nos informa que o traço cognitivo peculiar do método científico de Einstein era o recurso a formas e imagens mentais que assemelhavam seu modo de pensar a uma elaboração onírica. Podemos mencionar também o caso de Claude Debussy que costumava descrever a sensação de que "uma outra pessoa e não ele" compunha suas músicas, ou de que ele era "um mero canal de passagem entre os sons e a partitura". Uma origem comum na natureza imagética dos signos oníricos gerados pelo inconsciente e no pensamento criativo do cientista e do artista seria então a condição de linguagem necessária para a sublimação.

Para avançar neste ponto é preciso retroceder ao livro inaugural de Freud, "A interpretação dos sonhos". Sob a perspectiva dos estudos de linguagem, aquele texto transcende os problemas da clínica médica ao propor uma teoria revolucionária da formação dos signos. Em outras palavras, é plausível ler Freud como o fundador de uma Teoria da Semiótica. Visando a criação de uma hermenêutica da significação dos sonhos, Freud desenvolveu ferramentas analíticas que formam o corpo conceitual de uma nova teoria sobre os modos de formação dos signos. E não só dos signos oníricos, mas de qualquer outro produto da mente humana que utilize a linguagem, no sentido mais amplo possível. Nesse sentido a linguagem verbal é, para Freud, apenas uma das possíveis formas de manifestação da linguagem humana, ainda que certamente a mais relevante, devido a seu papel essencial na formação da cultura. Entretanto, a despeito de que, em última instância, Freud sempre reduz o problema da significação a uma formulação verbal, seu método a extrapola, pelo menos por tentar dar conta da opacidade de signos complexos não exclusivamente verbais, como os sonhos e os atos falhos. É a partir desse pressuposto que procuraremos construir uma ponte entre conceitos da psicanálise e da linguagem musical.

 

Metáfora e metonímia, condensação e deslocamento

Para vincular a sublimação aos problemas da linguagem, é necessário inicialmente abordar o problema da divergência entre Roman Jakobson e Jacques Lacan sobre a correspondência entre as funções poéticas da metáfora e da metonímia com as operações freudianas de condensação e deslocamento.

Em 1956, Jakobson publicou um famoso ensaio sobre a afasia em que enuncia a hipótese de existir uma relação entre os tipos de distúrbio da fala e a concepção saussuriana de uma estrutura dualística da linguagem, organizada em dois eixos: o da seleção paradigmática que opera pela função de similaridade e tem o potencial de criar as metáforas; e o eixo da combinação sintagmática que opera pela função de contiguidade e tem o potencial de criar as metonímias. Quase no final do artigo, numa passagem lacônica sem maior elaboração, Jakobson afirma:

Uma competição entre os artifícios metonímico e metafórico manifesta-se em qualquer processo simbólico, seja ele intrapessoal ou social. Assim, numa investigação sobre a estrutura dos sonhos, a questão decisiva seria saber se os símbolos e as sequências temporais utilizadas são baseadas na contiguidade (o "deslocamento" metonímico e a "condensação" sinedóquica de Freud) ou na similaridade (a "identificação e o simbolismo" de Freud). (Jakobson 1956/1987, p. 113)

Na atual teoria da linguística considera-se a sinédoque como um caso particular de metonímia, em que a definição pela relação geral de "causa e efeito" é determinada por uma relação da "parte pelo todo," ambas condicionadas por uma contiguidade de fato. Parece então incongruente que Jakobson associe a contiguidade tanto aos processos de deslocamento quanto aos de condensação, uma vez que eles ocupam polos opostos na teoria freudiana.

Instigado por aquele artigo, Lacan apresenta, logo após, em A instância da letra no inconsciente, uma significativa revisão da proposição de Jakobson:

A Verdichtung, condensação, é a estrutura de superposição dos significantes em que ganha campo a metáfora, e cujo nome, por condensar em si mesmo a Dichtung, indica a conaturalidade desse mecanismo com a poesia, a ponto de envolver a função propriamente tradicional desta. A Vershiebung ou deslocamento é, mais próxima do termo alemão, o transporte da significação que a metonímia demonstra e que, desde seu aparecimento em Freud, é apresentado como o meio mais adequado ao inconsciente para despistar a censura. (Lacan, 1957-1966/1998, p. 515)

Quando pareceria que a reformulação de Lacan, metáfora = condensação, metonímia = deslocamento, resolve a incongruência encontrada em Jakobson, outras questões surgem.

Jakobson oscilava, na sua concepção do signo, entre o modelo binário de Saussure e o ternário de Peirce. Lembremos que o ícone peirceano é definido pela função de similaridade. Tem, portanto, a mesma causa eficiente que a metáfora. O índice peirceano é definido pela função de contiguidade, que é a mesma causa eficiente da metonímia. Já o símbolo peirceano é definido por um contrato social, por uma convenção cultural. Por ser esta a categoria que incorpora a linguagem verbal, objeto central das preocupações de Jakobson, é natural que ele tenha isolado o simbolismo numa categoria separada, tomando a noção de símbolo em Freud com a mesma acepção que a de Peirce. Sua opção pelo modelo dualista de Saussure obriga-o então a juntar as duas outras categorias freudianas no mesmo polo.

Entendemos, porém, que as equações postuladas por Jakobson e Lacan ficam ambas prejudicadas pela utilização do modelo do signo de Saussure, desenhado para dar conta exclusivamente da parte verbal dos signos, enquanto os processos oníricos são descritos por Freud (1917/2006c, p. 84) "como uma transformação dos pensamentos em imagens -predominantemente visuais -, ou seja, representações-de-palavra são remetidas de volta às representações-de-coisa que lhes correspondem." Se Jakobson tivesse utilizado a concepção triádica do signo de Peirce, que aliás ele menciona em duas passagens do artigo sobre a afasia, talvez tivesse equacionado o problema de outro modo. De Lacan, cujo pensamento decorre do estruturalismo francês baseado em Saussure, não se esperaria outra concepção do que aquela centrada exclusivamente no verbal. Acontece que as figuras de linguagem da metáfora e da metonímia operam num nível bastante complexo da linguagem verbal, embora sejam definidas a partir de processos elementares de similaridade e contiguidade. Como vimos acima, na teoria do signo de Peirce define-se o ícone e o índice com essas mesmas categorias elementares. Note-se, porém, que para Peirce os três aspectos do signo interagem entre si, de modo que, via de regra, os signos apresentam, simultaneamente, aspectos icônicos, indiciais e simbólicos.

Consideremos, por exemplo, uma foto da Presidenta Dilma Rousseff afixada sobre uma mesa de repartição pública. Trata-se de um signo triádico complexo, à medida que é icônico porque é uma imagem bidimensional que guarda uma similaridade formal com a pessoa real e tridimensional da Sra. Rousseff; é indiciai porque aquela foto nasce de uma contiguidade, isto é, a presença da Sra. Rousseff em frente à câmera que permitiu à luz refletida em seu corpo causar a imagem na memória da máquina; e é simbólica por muitas razões: porque nos permite associar aquela imagem ao nome-próprio Dilma Rousseff (uma convenção definida por seu pai), ou porque representa não só a pessoa em si, mas o cargo do presidente. Nesse nível aquela foto torna-se metafórica, pois em última instância representa todo o aparato da República; e ao mesmo tempo é metonímica, porque essa representação recorta uma pequena parcela desse aparato - a foto oficial do presidente -para tornar presente o conjunto da instituição republicana, transferindo sua significação ao funcionário público que a representa naquela repartição.

O problema dos equacionamentos de Lacan e de Jakobson decorre da utilização de conceitos linguísticos muito complexos como os de metáfora e metonímia para dar conta de processos sígnicos elementares, que remetem ao nível da coisa, como teorizou Freud. Nesse nível predominam o ícone e o índice. Para reformular adequadamente as proposições de Lacan e de Jakobson devemos substituir o modelo binário de Saussure pelo triádico de Peirce que ademais considera a metáfora e a metonímia como casos especiais de iconismo e de indicialidade operando conjuntamente com o simbolismo da linguagem verbal.

No quadro abaixo propomos uma correlação entre as classes fundamentais de signos da semiótica de Peirce e os processos freudianos. Note-se, todavia, que os conceitos de Peirce, visando uma classificação taxonômica, refletem aspectos estáticos do signo, enquanto os de Freud, descrevendo processos mentais complexos, dão maior ênfase ao comportamento dinâmico do signo, e exatamente por isso, permitem sua associação funcional a aspectos energéticos e pulsionais.

 

 

A partir desse esquema conclui-se que a equação de Lacan sobre o "inconsciente estruturado como linguagem," se não é incorreta, é pelo menos enganosa, pois implicaria numa concepção de linguagem totalmente vinculada ao nível verbal do signo, enquanto o inconsciente seria na verdade o campo fértil do pensamento icônico-indicial e não do simbolismo verbal. Além disso, também o conceito de "estrutura" aponta para uma direção enganosa do problema, à medida que a palavra "estrutura" conota uma rigidez e uma organização fixa que não são características do inconsciente. Fundamentais para os processos do inconsciente seriam a flexibilidade plástica que caracteriza o ícone e a intensa mobilidade paratática1 que caracteriza o índice.

Como na linguagem musical encontramos os mesmos fundamentos de plasticidade icônica e mobilidade na justaposição indicial, fica traçado o caminho pelo qual a música seria capaz de produzir, como os sonhos, representações do inconsciente.

 

Decodificando portas de banheiro

Tomemos agora um exemplo semelhante ao que Lacan utilizou em seu ensaio "A instância da letra do inconsciente" (Lacan 1957-1966/1998) para elaborar a relação significante/significado [S/s] no contexto psicanalítico. Naquele texto Lacan usou duas ilustrações: a primeira trazia um desenho esquemático de uma árvore aposta ao título "árvore"; a segunda representava um par de portas que tinham, acima do umbral, os títulos "homens" e "mulheres".

Alteramos a ilustração de Lacan, substituindo o exemplo de uma "árvore" pelo caso equivalente de uma "porta" que aparece à esquerda na ilustração do Exemplo 1 (ignore-se momentaneamente a porta da direita).

 

 

O título da porta esquerda parece apenas explicitar o nível denotativo do signo verbal "porta." Há, porém, alguns aspectos subentendidos nesse processo de significação que merecem atenção. Note-se que a ilustração não é, de fato, uma porta, mas apenas um desenho esquemático de uma porta2. Nesse sentido o desenho é um signo icônico que representa as portas do mundo material. Esse desenho tem traços que guardam relações de similaridade formal com as portas reais. As possibilidades de variações dessas configurações formais que conservariam a capacidade de representar iconicamente os objetos-porta são infinitas. Comprove-se, por exemplo, como é tênue, do ponto de vista meramente gráfico, a relação de similaridade entre a porta esquemática do Exemplo 1 e a foto de uma porta no Exemplo 2.

 

 

Logo nos damos conta da quantidade inumerável de diferenças entre as duas imagens. Ainda assim somos capazes de afirmar, com convicção, que ambas as imagens significam "porta". Essa propriedade adaptativa do signo icônico de sofrer infinitas variações formais, mas preservar sua capacidade de significação por causa de alguma similaridade com o objeto é de extraordinária importância para todas as artes, inclusive música e literatura, além, obviamente, das artes visuais.

Voltando ao Exemplo 1, comparemos o desenho da porta da esquerda com o da direita. São idênticos, absolutamente similares. Todavia os respectivos letreiros lhes conferem significados diferentes. O título acima da porta esquerda acrescenta pouco sentido ao conjunto [porta (ícone) = porta (palavra)], mas o título da porta direita cria uma significação particular, ainda que do ponto de vista da técnica de articulação ambos funcionem da mesma maneira, pois ambos dependem da relação de contiguidade entre dois significantes distintos, a palavra e a imagem. Sabemos que a porta da direita abre-se para um banheiro devido ao título colocado acima dela. Não sabemos nada do que está por trás da porta da esquerda.

Não exagero ao dizer que as relações semióticas de contiguidade podem se tornar um problema de vida ou morte. Lembremos, por exemplo, do incidente trágico noticiado recentemente pelos jornais em que uma enfermeira matou acidentalmente uma paciente injetando glicerina líquida em sua artéria, convencida de que administrava soro fisiológico. Habituada a usar embalagens de soro guardadas num certo armário, não teve o cuidado de ler o rótulo da embalagem que apanhou naquele dia. No dia anterior alguém colocara no mesmo armário uma embalagem de glicerina de aparência similar às de soro.

Ainda que não tenhamos consciência disso, a compreensão do título "sanitário" depende de uma complexa cadeia de pensamentos que a semiótica de Peirce descreve como um processo de significação simbólica. O letreiro não diz que a porta representada pelo desenho é um sanitário. Uma porta não é um sanitário, a menos que nossa capacidade de simbolização fosse equivalente à de um cachorro, que tomando o título ao pé da letra, urinasse sobre ela.3 Sabemos que o sanitário é algo que está para além daquela porta. Ou seja, o letreiro "sanitário" equivale à frase "atrás desta porta existe um banheiro." Portanto este processo de significação, singelo e rotineiro, depende de uma interpretação metonímica (por contiguidade), porque o título remete não ao que é visível, mas a uma ausência, a algo invisível e supostamente contíguo ao objeto da representação. Exatamente por isso a significação de "sanitário" é simbólica. Entretanto vimos que essa significação se constrói por uma cadeia complexa de significações icônicas (a representação da porta, mas também a nossa própria imagem mental do que seria o sanitário atrás daquela porta - um ícone ausente) e de significações indiciais por contiguidade (a relação entre a posição direita e o título "sanitário" e a contiguidade de um sanitário imaginário que existiria atrás daquela porta).

Um conhecido meu, rapaz bem situado socialmente, que chamarei de Sr. M, coleciona letreiros de porta de banheiros públicos. Não é preciso muita imaginação para associar o interesse exótico do Sr. M à sua evidente dificuldade de definir uma orientação sexual. O Sr. M viajou para o hemisfério norte e trouxe na bagagem, para sua coleção, um letreiro de banheiro que o fascinou particularmente. O letreiro era um mero par de letras. A fascinação devia-se, acima de tudo, a que, em certas posições, as letras eram exatamente iguais. A diferenciação de gêneros resultaria apenas da posição das letras nas portas. Sua família tem um restaurante em sua cidade natal. O Sr. M fez colocar o letreiro nas portas dos sanitários do restaurante. Os clientes do restaurante, ao se dirigirem ao banheiro, deviam interpretar o esquema do Exemplo 3. Nos meses seguintes, algumas clientes do sexo feminino reclamaram da desagradável experiência de entrar no banheiro errado, assumindo que "M" significava "Mulheres" quando a interpretação correta seria "M=Men" e "W=Women."

 

 

O par "M-W" demanda interpretações segundo os três níveis do signo de Peirce. Em primeira instância trata-se de um ícone devido à propriedade que encantou o Sr. M: a materialidade de uma forma abstrata cujas réplicas podiam ser colocadas em diferentes posições espaciais e às quais se pode associar significações fonológicas diferentes. Note-se que, neste nível, o ícone não é uma figura que representa um objeto real, como havia sido o caso do desenho da porta no Exemplo 1. Nessa leitura, as letras M-W são objetos icônicos autônomos oferecidos à percepção: sua significação é tautológica, representam a si mesmo como instâncias ou réplicas de uma forma abstrata. É neste âmbito que trabalha o designer quando cria tipos gráficos como todos eles relacionados ao mesmo significado fonológico. É também nesse nível que operaram os materiais elementares constitutivos da música, como melodias, ritmos e harmonias.

Numa segunda instância a significação é indicial. A diferença entre as posições normal e invertida estabelece um par dicotômico que se associa, por contiguidade, a outro par dicotômico, o das posições das letras nas portas, uma à esquerda, outra à direita. Portanto no nível indicial, a significação das letras do Exemplo 3 é M=esquerda e W=direita.

A caminho da formação de um nível simbólico, o par favorito do Sr. M recorre ainda à redução metonímica M=Men e W=Women, substituindo as palavras do inglês pela sua letra inicial. Note-se, ainda uma vez, que esse processo de significação ocorre no nível icônico do significante, uma vez que a metonímia da parte pelo todo acontece na instância da letra da palavra e não no nível da significação da palavra codificada pelo dicionário.

Finalmente ocorre a interpretação simbólica propriamente dita que, por convenção, qualquer palavra porta (com o perdão do trocadilho): tal seria o significado último que conduz os homens à porta da esquerda e as mulheres à porta da direita. Entretanto, ao introduzir na cadeia significante a linguagem figurada da metonímia acima descrita, abriu-se a porta (com o perdão da metáfora morta) para a ambiguidade característica dos tropos de linguagem, isto é, para a significação múltipla, que eventualmente conduziu algumas pessoas ao engano de tomar M por Mulheres.

 

Marcação, negação e contradição

Recorrerei ainda uma vez ao Sr. M. Reencontrando-o no dia seguinte ao da nossa conversa sobre letreiros de sanitários, contou-me ele que na noite anterior tivera um sonho. O conteúdo manifesto do sonho do Sr. M pode ser representado pela ilustração do Exemplo 4.

 

 

O relato do sonho do Sr. M. era mais ou menos assim: "Estou num restaurante desconhecido e preciso ir ao banheiro masculino. Há três portas sem identificação à minha frente, duas são altas, a terceira é baixa demais, não consigo entrar por ela. Na porta da esquerda surge uma placa negra. Aproximo-me da placa e ela se transforma em algo que sugere o nome Duchamp". Pergunto o que seria esse "algo". "Uma escultura... Fountain!" exclama ele. Esse é o nome do readymade de Marcel Duchamp que desloca um mictório industrial para o contexto de uma exposição de artes plásticas.

Não me cabe interpretar o sentido latente do sonho do Sr. M. Entrevejo, todavia, a possibilidade de que alguns resquícios da nossa conversa do dia anterior tenham suscitado certas representações. Lembro que conversamos sobre a questão do racismo nos Estados Unidos e os indícios de apartheid ainda visíveis naquela cultura. Comentara também a dificuldade das crianças para usar banheiros públicos. Parece-me plausível que esses tópicos da conversa tenham gerado as representações imagéticas da placa negra e da porta baixa.

Desse sonho nos ocuparemos apenas de entender como as representações icônicas expressam seu sentido. A flexibilidade variacional do signo icônico aparece em pelo menos duas instâncias: primeiro quando a porta reduz seu tamanho, implicando que a variação da forma traduz o significado "para crianças"; segundo quando a placa negra se transforma na escultura de Duchamp. Reconhecemos aqui processos relacionados ao conceito linguístico de marcação (markdness). Diz Jakobson (1987, p. 107): "Discutimos o efeito da desordem da contiguidade na combinação de palavras em unidades superiores. ... Uma característica típica do agramatismo é a abolição da flexão: aparecem categorias não-marcadas, tais como o infinitivo no lugar das diversas formas verbais conjugadas." Hatten (1994, p. 34) define o conceito de marcação como uma atribuição de valor dada por uma diferença, exemplificando-o com a frase: "hoje comi carne de vaca", em que a palavra "vaca" não distingue o sexo do animal abatido, enquanto o uso do termo "touro" marcaria uma distinção de gênero.

A propriedade da marcação também se aplica a signos icônicos. No sonho do Sr. M, a foto da escultura de Duchamp funciona como um ícone marcado, uma vez que o mictório é um aparelho sanitário que encontramos exclusivamente em banheiros masculinos. O mictório é uma substituição paradigmática da letra M=Men do relato do dia anterior e também, pela lógica da contiguidade, uma substituição do pênis. Portanto, o sonho termina quando, no conteúdo manifesto, o Sr. M realiza o desejo de identificar o sanitário masculino.

Outra maneira como um ícone do sonho definiu uma marcação foi na variação de tamanho da porta: uma redução formal separou, dentro do universo geral das pessoas, a categoria "crianças" em relação à de "homens e mulheres adultos", o que demonstra que as marcações não são necessariamente de gênero. Uma decorrência da marcação é que o signo não-marcado, que corresponderia, por oposição, a um signo marcado, só pode ser interpretado a partir de uma falta. Se o banheiro da esquerda é o dos homens, o da direita, por default (isto é, por "de-falta") é o das mulheres, a quem justamente falta o pênis.

Outro aspecto a notar é que o signo icônico é não-proposicional: ele apenas se apresenta. Não existe a negação de um ícone, apenas a sua ausência, o que não é a mesma coisa. Por isso o ícone não pode articular proposições negativas. As imagens do sonho do Sr. M não formulam diretamente a proposição racista "negros NÃO podem usar este banheiro." No relato verbal os significados podem ser verbalizados negativamente, mas o sonho do Sr. M usa apenas proposições positivas: a placa negra indicaria que o sanitário esquerdo é para negros, implicando que o da direita é para brancos. A transformação da placa no mictório de Duchamp diz que o sanitário da esquerda é para homens, portanto, homens negros, o que indicaria que o da direita é para homens brancos, e a porta menor para crianças (o que excluiria as mulheres da cena, realizando talvez o verdadeiro desejo do sonho).

Uma vez que os signos icônicos e indiciais não conseguem construir locuções negativas, entende-se porque eles são incapazes de sustentar uma lógica consistente. Somente uma lógica baseada no nível simbólico (a lógica aristotélica) pode exigir o princípio da não-contradição. Quanto às linguagens que se restringem a utilizar signos icônicos e indiciais, elas não podem constituir uma lógica, mas somente uma analógica. Os psicanalistas dirão que estas ideias parecem familiares porque, em última instância, descrevem as propriedades do inconsciente. Um músico-compositor, por sua vez, diria que estas ideias descrevem os fundamentos da linguagem musical, a qual também é incapaz de realizar proposições negativas ou distinguir o verdadeiro do falso. Isso nos leva a concluir que tanto a linguagem do inconsciente como a linguagem da música dependem, na sua essência, da nossa capacidade de manipular os aspectos icônicos e indiciais dos signos.

 

A música e a linguagem do inconsciente

Sugeri acima haver uma correspondência entre os processos da linguagem do inconsciente e os processos do pensamento musical. Nos exemplos seguintes mostraremos como aparecem operações de condensação na linguagem musical. Lembremos que Freud reconhece esse artifício do inconsciente em pelo menos dois tipos de formações: quando um conteúdo manifesto revela-se na análise como um significante portador de diversas significações latentes, reunidas numa única representação; ou quando o conteúdo manifesto é uma imagem heterogênea composta de fragmentos de outras imagens que se fundem numa representação unitária, todavia determinada multiplamente por diversos conteúdos latentes.

O primeiro caso que analisaremos é um excerto da Rapsódia sobre um Tema de Paganini de Rachmaninoff. Ao longo da obra, o tema inicial é reapresentado em sucessivas variações. Analisaremos a relação do tema com a 18ª variação que nos traz uma transformação extraordinariamente marcante da ideia inicial.

Na pauta superior do Exemplo 5 esquematizamos o tema inicial da Rapsódia. Acima da pauta, como num diagrama cartesiano, desenhamos o perfil das alturas desse tema, divisível em dois gestos "1" e "2". Na pauta inferior representamos a melodia da décima oitava variação e seu correspondente diagrama de perfil melódico4.

 

 

O que torna essa variação especial é que, pela mera audição, nos custa acreditar que possa haver alguma coisa em comum entre ela e o tema. O tema original de Paganini é um exercício de virtuosidade: é vivaz, brilhante e até mesmo jocoso. A 18ª variação, por outro lado, tem uma melodia generosa, transbordante de expressividade romântica5. Aparentemente não há nenhuma relação entre elas, mas ainda assim, inexplicavelmente, sentimos a coerência do discurso, isto é, entendemos essa variação como parte da obra e não como um capricho do compositor. Se fosse um sonho diríamos que ocorreu aqui uma censura.

Os diagramas do Exemplo 5 esclarecem a relação oculta: as duas melodias são o espelho uma da outra, isto é, a 18ª variação utiliza uma inversão do perfil melódico do tema principal. A linha horizontal de referência nos ajuda a perceber a geometria dessa simetria. Porém o compositor não só inverteu o tema, mas também mudou drasticamente o seu caráter. O andamento da melodia foi reduzido. O que era um ritmo binário de marcha se transformou num ritmo ternário de canção. Tonalidade e harmonia foram substancialmente alteradas.

Isso nos remete de volta ao Sr. M e seu letreiro de sanitário "M-W". Tal como lá, a posição espacial invertida do mesmo significante cria dois signos diferentes. Todavia, tão somente isso não tornaria especial essa música. Sem que o ouvinte se dê conta, inumeráveis outras músicas também empregam processos isomórficos de inversão do perfil melódico. O que marca essa transformação é que ela cria uma oposição de sentidos. Pode-se dizer, metaforicamente, que o tema original de Paganini é "masculino". A inversão do tema na 18ª variação, com a mudança drástica do seu caráter, sugere um sentido "feminino".

Essa peculiar elaboração musical apresenta, portanto, uma notável semelhança com a elaboração onírica. Dois fragmentos da mesma música, que nos sugerem sentidos expressivos opostos, revelam-se, na análise, terem sido derivados do mesmo significante (um único perfil melódico), o qual, portanto, condensa as múltiplas possibilidades de significação que são reveladas pelas diversas variações. Sob outra perspectiva podemos dizer que o sentido inicial do tema foi deslocado ao longo da peça até que o tema assumisse, na 18a variação, um sentido expressivo oposto ao inicial. Isto justifica o efeito de velamento da relação formal, equivalente ao de uma censura, que é típico dos processos de deslocamento. Como já nos alertara Freud, os processos de deslocamento e de condensação funcionam complementarmente.

Um segundo caso de condensação ocorre quando uma música combina fragmentos de outras músicas. Tomemos, por exemplo, a última variação, a de no 30, do ciclo das Variações Goldberg de J. S. Bach. Bastam os compassos iniciais, transcritos no Exemplo 6, para fundamentarmos nosso ponto:

 

 

Se é fato que a música tem dificuldades intrínsecas à sua própria linguagem para transmitir com clareza intenções de significação, como constatou o próprio Freud na passagem citada na introdução, por outro lado ela tem outras potencialidades invejadas pelas demais linguagens. Uma delas é fazer coexistir, de modo perfeitamente inteligível, diversos discursos simultâneos. Essa técnica, chamada de contraponto, tem em J. S. Bach um mestre insuperável. Ela equivale, para as linguagens que se desenrolam no tempo, tais como a fala e a música, à condensação de imagens parciais num todo unitário. Uma música composta com a técnica do contraponto não é percebida como uma superposição desconexa de músicas diferentes, como aconteceria se ligássemos ao mesmo tempo quatro rádios sintonizados em estações diferentes, mas sim como uma única música. No caso desta peça de Bach trata-se de uma música que resulta da soma de quatro linhas melódicas diferentes, nos registros de soprano, contralto, tenor e baixo. No Exemplo 7 separamos as "vozes" da música em pautas independentes para facilitar a identificação de cada um dos componentes melódicos.

 

 

Até aqui nada haveria também de extraordinário, apenas a rotina do contraponto. Entretanto ao colocar o título "quodlibet" nesta derradeira variação, Bach nos dá a pista para uma significação especial. Inicialmente devemos reconhecer que a linha melódica do baixo, recortada na "caixa 1," é a mesma que já ouvimos 30 vezes, no tema e nas 29 variações anteriores. Realizar todas aquelas variações utilizando sempre o mesmo baixo, entretanto produzindo na superfície as mais diversas configurações de cânones a todos os intervalos possíveis, ritmos de todas as danças barrocas da época e ainda as mais variadas figurações virtuosísticas até então desenvolvidas para o cravo, representa uma exibição monumental de técnica de composição de que qualquer músico sentiria orgulho.

Esperar-se-ia, portanto, que a derradeira variação levasse o ciclo à sua apoteose. Entretanto Bach nos oferece um "quodlibet". O termo (que em Latim quer dizer "o que lhe agradar") era empregado desde a Renascença para nomear um gênero musical alegre e despretencioso em que melodias populares conhecidas eram encadeadas ou sobrepostas, produzindo um efeito cômico. Hoje, passado tanto tempo, nos é impossível reconhecer as canções usadas por Bach, mas duas delas foram registradas por outros autores, o que nos permite reconstituir o sentido humorístico almejado pelo compositor. Certamente seus contemporâneos sabiam associar a melodia da "caixa 2" do tenor à letra da canção que dizia: "Faz tanto tempo que estou longe de você, chega mais prá cá, vem prá mais pertinho..." E logo à frente, outra canção popular da época aparece, cuja letra dizia: "Minha mãe cozinhou nabos com repolhos; se ela tivesse feito carne, ficava em casa prá jantar."

O que acontece aqui é a sobreposição de dois sentidos opostos: a intenção de monumentalidade do ciclo, reforçada pelo uso, ainda uma última vez, da mesma melodia do baixo, empregada em todas as variações, e pela técnica de imitação, característica do "estilo alto" das fugas (vide o soprano que imita na caixa "3" a melodia exposta pelo tenor na caixa "2"), contudo em perfeita condensação com um sentido contrário, o da melodia popular citada pelo tenor que apela para sentimentos vulgares em "estilo baixo". É como se ao fim de tudo Bach dissesse: "não me levem muito a sério, porque eu mesmo não o faço; a exibição das minhas habilidades criativas não me faculta esquecer a minha insignificância de ser humano frente ao verdadeiro Criador." Essa prodigiosa mistura antitética de orgulho e humildade, realizada por um compositor profundamente imerso na ética do protestantismo luterano, exemplifica magistralmente um caso de sublimação realizado por meio do processo de condensação.

Para finalizar lembremos que Freud teve pouco interesse pela intensa vida musical vienense. Em "A interpretação dos sonhos" ele menciona ter analisado a noiva do compositor Hugo Wolf, que sofrera um colapso nervoso após seu prometido ter sido internado num manicômio, do qual nunca sairia. Através dos biógrafos Ernest Jones e Peter Gay, que reproduzem um relato das memórias de Alma Mahler, ficamos sabendo também que Freud tratou, aliás de modo pouco ortodoxo, mas alegadamente eficiente, uma crise de impotência sexual do compositor Gustav Mahler.

Diz essa história que Freud interferiu positivamente na neurose de Mahler recuperando da memória do compositor uma cena infantil, descrita como uma briga de seus pais. Fugindo da cena traumática, o menino teria escapado para a rua, onde teria se deparado com um realejo tocando uma melodia banal. Sem entrarmos nos aspectos clínicos da análise, é interessante assinalar que Freud faz ali sua única interpretação conhecida de um processo de significação musical. Essa interpretação pode ser relacionada com o seguinte fragmento de "O mal-estar na civilização": "quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão-somente um sentimento de contentamento muito tênue. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste" (Freud 1929/2006b, p. 84).

Da breve análise de Mahler, Freud conclui que o efeito traumático da cena (de fato não uma briga, mas um coito dos pais) teria estabelecido no inconsciente do compositor um vínculo permanente entre os sentidos do dramático e do vulgar. Isto é, a música de Mahler realizaria uma catarse do trauma original nas frequentes ocasiões em que um tema musical dramático é interrompido, no seu clímax, pela intromissão de outro tema de caráter irônico ou vulgar. De fato, esse tipo de contraste é uma marca fundamental do estilo de Mahler. Podemos afirmar então que a capacidade do compositor de canalizar para as representações contrastantes de suas músicas os afetos derivados de seu complexo edipiano exemplifica uma habilidade de sublimar energias que de outro modo poderiam ter gerado uma neurose grave que afetasse seriamente sua vida emocional e profissional.

 

Referências

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Correspondência:
Rodolfo Coelho de Souza
[Universidade de São Paulo USP]
Av. Bandeirantes 3900
14040-901 Ribeirão Preto SP
rcoelho@usp.br

Recebido em 3/2/2011
Aceito em 25/2/2011

 

 

1 O conceito de Parataxe opõe-se ao de Sintaxe. Uma construção sintática se faz por subordinação, enquanto uma construção paratática se faz por coordenação. Exemplo de sintaxe: "Tostines é fresquinho porque vende mais"; e de parataxe: "O menino viajou para o litoral e comeu peixe."
2 Essa é a idéia proposta pelo quadro de Magritte intitulado "Isto não é um cachimbo" que, a despeito do título, é uma pintura a óleo representando um cachimbo que traz a própria frase-título escrita na tela.
3 Do que poderíamos concluir que não convém, pelo menos em certas instâncias, seguir a recomendação de Lacan de tomar os sentidos "ao pé da letra."
4 Considere-se como rotineira a transposição de oitava do gesto "2", cujo propósito é esclarecer que a nota final coincide com a nota inicial, uma vez que ambas são notas Lá.
5 Para aqueles que não se recordam dessa música, lembro que ela foi usada na trilha sonora do filme Em algum lugar do passado, um "cult" de 1980. A 18ª variação aparece precisamente na cena em que o personagem do ator Christopher Reeve conquista o coração da personagem da atriz Jane Seymour.

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