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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2011

 

INTERCÂMBIO

 

Ampliar os limites da interpretação em uma clínica aberta para o real1

 

Amplifying the limits of interpretation in a clinic open to reality

 

Ampliar los límites de la interpretación en una clínica abierta a lo real

 

 

Silvia Bleichmar; Tradução: Claudia Berliner

Psicanalista argentina (1944-2007). Realizou seu doutorado na Universidade de Paris VII sob orientação de Jean Laplanche. Autora de uma importante obra relativa à clínica psicanalítica com crianças e seus fundamentos. Professora em diversas Universidades argentinas e de outros países. Coordenou projetos de assistência psicológica às vitimas do terremoto no México (1985) e do atentado à Associación Mutual Israelita Argentina em Buenos Aires (1994). Autora de uma vasta bibliografia psicanalítica (publicada em vários idiomas), assim como de ensaios em torno da realidade social e seu impacto na subjetividade. De sua autoria foram publicados no Brasil: Nas origens do sujeito psíquico. (1993, Porto Alegre: Artmed), A fundação do Inconsciente. (1999, Porto Alegre: Artmed) e Clinica psicanalítica e Neogênese. (2005, São Paulo: Annablume)

 

 


RESUMO

A interpretação analítica é a ferramenta privilegiada para o desvendamento do inconsciente, desde que o recalcamento esteja instalado, as defesas estejam operando na diferenciação dos sistemas psíquicos e as representações-palavra possibilitem a associação livre. No entanto, quando essas condições falham, como se estabelece a intervenção do analista? A autora procura expor um movimento tendente à produção de novas ferramentas para a prática a partir do questionamento metapsicológico dos enunciados que a regem. É nos resíduos processados e agitados pelos sistemas psíquicos, nas marcas do vivido, na busca de cercar seus vestígios que a psicanálise pode encontrar a materialidade que lhe compete. Interpretação, intervenções analíticas, o indiciário, simbolizações de transição, metábole são minuciosamente trabalhados. O movimento, mediante o qual restos simbolizáveis ainda não tramitados curto-circuitam constantemente a possibilidade de enriquecimento psíquico e obrigam à reiteração, convoca a autora a propor que é necessário realizar um novo modo de abordagem para lhes dar uma nova dimensão que, na prática, torna-se processo de criação e recomposição. Trata-se de dar lugar a novos modos de funcionamento e de articulação encarnados, do ponto de vista por ela esboçado, como processo de neogênese.

Palavras-chave: método psicanalítico clássico; intervenções analíticas; signos de percepção; índice; simbolização de transição.


ABSTRACT

Analytical interpretation is a privileged tool for the unveiling of the unconscious, as long as repression is installed, defenses are operating in the differentiation of psychic systems and the word representations allow free association. However, when these conditions fail, how can the analyst's intervention be established? The author explicits a movement which tends to the production of new tools for practice through the metapsychological questioning of the terms which conduct it. It is within the residues which result of the psychic systems, in the marks of that which has been experienced, and through the proximity of its traces, that psychoanalysis can find the materiality which pertains to it. Interpretation, analytical interventions, the evidentiary, transition symbolizations, metaboles, are minutely developed. Movement, through which (not yet followed) symbolizable residues not yet in circulation constantly short circuit the possibility of psychic enrichening and, by rule, lead to reiteration, brings the author to propose the need for a new method of approach to give those terms a new dimension which, in practice, becomes a process of creation and recomposition. The idea is to open space for new modes (to new methods) of functioning and articulation, developed through the author's point of view, as a process of neogenesis.

Keywords: classic psyhcoanalytical method; analytical interventions; perception signs; evidence; transition symbolization.


RESUMEN

La interpretación analítica es la herramienta privilegiada para el develamiento del inconsciente, siempre y cuando la represión esté instalada, las defensas operando en la diferenciación de los sistemas psíquicos, y las representaciones palabra posibilitando la libre asociación. Pero cuando estas condiciones fallan, ¿cómo se establece la intervención del analista? La autora intenta dar cuenta de un movimiento tendiente a la producción de nuevas herramientas para la práctica a partir de la puesta a prueba metapsicológica de los enunciados que la rigen. Es en los residuos procesados y agitados por los sistemas psíquicos, en las marcas de lo vivido, en el cercamiento de sus huellas, donde el psicoanálisis puede encontrar la materialidad que le compete. Interpretación, intervenciones analíticas, lo indiciário, simbolizaciones de transición, metábola, son trabajados en detalle. El movimiento mediante el cual restos simbolizables aún no tramitados cortocircuitan constantemente la posibilidad de enriquecimiento psíquico y obligan a la reiteración, convoca a la autora a proponer que es necesario realizar un nuevo modo de abordage en pro de darles una nueva dimensión que en la práctica deviene proceso de creación y recomposición. Se trata de dar lugar a nuevos modos de funcionamiento y de articulación encarnados, desde la perspectiva que ha esbozado, como proceso de neogénesis.

Palabras clave: método psicoanalítico; interpretación; intervenciones analíticas; signos de percepción; índice; simbolización de transición.


 

 

Em todos meus anos de trabalho venho insistindo na necessidade de subordinar o método ao objeto, redefinindo as condições nas quais a estrutura psíquica em crise exige intervenções transformadoras e até propiciadoras de novos modos de organização. Nesse sentido, a interpretação como ferramenta privilegiada do método de desvendamento do inconsciente só pode ser concebida em correlação com a instalação do recalcamento que ativa o sofrimento intrassubjetivo, com a existência de um discurso articulado da maneira que sabemos a partir da linguística estrutural, ou seja, constituído no interior do duplo eixo da língua, e com o funcionamento do pré-consciente no que diz respeito a temporalidade, lógica do terceiro excluído e negação. Tudo isso determina, em primeiro lugar, a possibilidade de pôr em marcha o dispositivo clássico da análise e, em segundo lugar, mediante sua permanência mais ou menos estável, o uso da interpretação.

No entanto, essa implementação do método encontra seus limites tanto na análise com crianças - cujas possibilidades devem ser repensadas caso a caso de acordo com o momento de constituição psíquica -, quanto na análise de patologias não neuróticas, que incluem não só as psicoses como também os momentos em que ocorre uma queda da instalação do eu no interior da tópica em decorrência de traumas graves ou por déficit estrutural de caráter não permanente (patologias chamadas borderline, transtornos narcisistas em colapso etc.).

Nos momentos em que aparece uma desconstrução da defesa, nos quais não encontramos as formas habituais do funcionamento neurótico, quando se alteram os modos clássicos de funcionamento tópico, coisa que pode ocorrer mesmo em seres humanos que não apresentam patologias graves, quando traumas se impõem de maneira fortuita e desarmam os modos habituais de defesa, ou quando são tocados estratos da vida psíquica tão arcaicos que não têm correlatos transcritivos em representações-palavra, faz-se necessário criar as pré-condições para o emprego do método analítico em seu sentido clássico. A interpretação não é pensável senão como modo de desconstrução dos elementos manifestos, de seus acoplamentos e articulações entre falsos enlaces, que estabilizam os sintomas ou possibilitam teorizações cuja função equilibrante caducou espontaneamente e cuja determinação inconsciente pode ser encontrada.

Considerei, então, a necessidade de diferenciar a aplicação clássica do método, que inclui a associação livre e a interpretação como enunciado cuja função é o desvendamento do sentido inconsciente, das formas de implementação da prática que chamei, genericamente, "intervenções analíticas". São modos de operar que conservam alguns aspectos centrais da situação analítica - reconhecimento do campo fundador da transferência, abstinência de intervenção valorativa, diferenciação (no caso da análise de crianças) entre regras de comportamento culturais e intromissões educativas -, destinados, em particular, a gerar formas de reposicionamento tópico das representações e [promover] regulações da economia libidinal, que o leitor pode encontrar desenvolvidos em diversos trabalhos que antecedem estas páginas.

No entanto, e em virtude de um aspecto que se tornou nuclear em minha pesquisa e que consiste na abordagem cuidadosa do estatuto representacional a partir do reconhecimento da não homogeneidade da simbolização psíquica, vi-me, faz alguns anos, levada a me dedicar ao estudo detalhado desses sistemas de representação, de seu estatuto e sua função, pela constatação de que em toda prática irá se colocar, em determinados momentos, a impossibilidade do desvendamento do inconsciente devido à ausência de representações secundariamente recalcadas passíveis de retornar em linguagem por parte do sujeito.

No psiquismo coexistem representações de várias ordens, sobre as quais nos vemos obrigados em muitos casos a exercer movimentos não só de desrecalcamento e desvendamento, mas de ressimbolização. Também incide nisso o fato de a organização psíquica operar "por dominância", coexistindo no processo do tratamento a ativação de correntes representacionais secundariamente recalcadas (aquelas que são objeto da associação livre, como assinalou Freud em "Inibição, sintoma e angústia"), de outras primariamente recalcadas (que nunca foram transcritas como representação-palavra) e inclusive daquelas que se conservam à maneira de indícios não ligados que circulam pelo psiquismo sem estatuto tópico definido.

Ante os fenômenos que emergem como não secundariamente recalcados, não passíveis de interpretação, e cujo estatuto pode ser da ordem do manifesto sem por isso ser consciente, consideramos necessária a introdução de um modo de intervenção que chamaremos de "simbolizações de transição", cuja característica fundamental é servir de ponte simbólica naquelas zonas do psiquismo em que o vazio de ligações psíquicas deixa o sujeito à mercê da angústia intensa ou da compulsão. Por motivos de espaço não podemos desenvolver totalmente essas ideias diretamente relacionadas com o que chamamos de processos de neogênese, sobre os quais já nos estendemos o suficiente em outros escritos.

Inconsciente de origem exógena, materialidade representacional heterogênea, realidade para-subjetiva alheia a toda intencionalidade, são esses os elementos que permitem cercar tanto sua constituição quanto sua forma de operar e assim determinar o modo de instalação do dispositivo do tratamento. Mas suas consequências vão muito além disso.

Se o que se busca é recuperar o fundamental da psicanálise para pô-la em marcha rumo aos tempos futuros, esse trabalho não pode se realizar sem uma máxima depuração dos enunciados básicos e sem um exercício de tolerância à dor de se desprender de noções que nos acompanharam, talvez, mais que o necessário. O futuro da psicanálise depende não só de nossa capacidade de descoberta e da possibilidade de enfrentarmos as novas questões que a etapa atual da humanidade nos coloca, mas, e isso é o fundamental, de embarcamos num processo de revisão do próprio modo como ficamos apegados não só às velhas respostas, mas às antigas perguntas que hoje se transformam num lastro que paralisa nosso caminhar. E é claro que nessa lentificação a tartaruga pode ganhar a corrida.

Sabemos das oscilações entre um endogenismo para o qual o psiquismo humano faz parte de uma espécie de pré-formação provida de sistemas representacionais existentes desde o nascimento - ou até anteriores a ele, seja ele biológico ou estrutural , e o sociologismo historicista favorecido por algumas correntes atuais da psicanálise, para as quais os novos modos da realidade destituem grande parte dos enunciados vigentes desde os primórdios das formulações freudianas. Essas oscilações e seu caráter pendular nos obrigam a repensar os impasses e as dificuldades que carregamos em nossa teoria e suas consequências para uma prática clínica que não ceda à pressão da época, mas que ao mesmo tempo não se aferre obstinadamente a suas próprias dificuldades internas.

Minha própria perspectiva de trabalho vem se empenhando, há anos, na busca de uma maior racionalidade para a prática clínica, em princípio a partir da psicanálise com crianças, mas, em seguida, no corpus mais geral da teoria e da prática psicanalíticas devido ao fato de que, historicamente, as descobertas propiciadas pelos campos "de fronteira" e as novas perguntas que elas suscitam fizeram entrar em crise as afirmações vigentes no cerne da teoria.

Em função disso, a ideia de um aparelho psíquico aberto para o real, constituído a partir de inscrições provenientes do exterior e submetidas constantemente a seu embate, foi uma preocupação central em minha tarefa e na produção de novas ferramentas para sua abordagem. Isso é assim desde o começo de meu trabalho, a partir da descoberta das limitações do conceito de "interpretação" decorrentes do fato de que nem todas as representações que produzem sofrimento psíquico - em certos casos nem a maioria delas - são da ordem do secundariamente recalcado, isto é, constituídas a partir da desqualificação do código da língua em que estavam inseridas e, portanto, recuperáveis mediante a associação livre.

Essa diferenciação foi expressa na conceitualização oferecida em A fundação do inconsciente (Bleichmar, 1994), em particular nos cap. 2 e 3, onde o "arcaico" e o "originário" correspondem a dois modos de processamento psíquico e definem duas formas de intervenção em função de o arcaico ser o que nunca tramitou em linguagem em sentido estrito, no interior do código, acoplado ao duplo eixo da língua, expulso do pré-consciente, fixado ao inconsciente, mas que opera como fragmento de realidade psíquica no sentido mais estrito, aderido ao vivencial, inscrito, mas não articulado em algum dos dois sistemas regidos por legalidades e conteúdos diferenciados.

Recorri naquele momento, então, à carta 52 de Freud (1896/1989) - 112 na nova edição francesa - para dar conta da possibilidade de rastrear um modo de inscrição não passível de transcrição, chamado, nos primórdios da obra, "signos de percepção", e dar conta do fato de que esses signos de percepção não sejam necessariamente os mais antigos que o aparelho psíquico conserva, mas que possam se produzir ao longo da vida como materialidade irredutível a todo acoplamento, por serem produto de experiências traumáticas impossíveis de ser metabolizadas.

Procurei definir, a partir da semiótica, e seguindo a obra de Pierce, o caráter de "indício" desses signos de percepção, partindo da ideia de que a linguística é insuficiente para abarcar o conjunto heterogêneo de representações que constituem o psiquismo, sabendo que este não se reduz ao visual, e muito menos ao vivido, e que é um conceito que só se aplica no interior da prática do desvendamento do sentido, ou da construção do sentido - no nosso caso, a prática clínica -, e não um conceito metapsicológico.

Em outras palavras: o conceito de "signo de percepção" é um conceito psicanalítico, metapsicológico, que dá conta dos elementos psíquicos que não se ordenam sob a legalidade do inconsciente e do pré-consciente, que podem ser manifestos sem por isso ser conscientes, que aparecem nas modalidades compulsivas da vida psíquica, nos referentes traumáticos não sepultáveis pela memória e o esquecimento, desprendidos da própria vivência, não articuláveis. São dessa ordem grande parte dos objetos da pulsão - em sua contingência -, dos modos fixos das compulsões, dos elementos discretos - no sentido matemático, desprovidos de contiguidade -, que aparecem como representações sobre as quais não são possíveis associações. É uma ilusão do psicanalista crer que tudo aquilo sobre o qual a associação se torna impossível é efeito da resistência: trata-se, na maioria dos casos, de elementos sobre os quais a associação é impossível porque estão desligados, caso este em que o modo de operar tem de ser diferente, e a isso vou me referir mais adiante.

Mas o indício, no sentido como Pierce o entende, não é equivalente ao signo de percepção. Alude a um método de leitura da realidade, não à sua inscrição.2 Seguindo o modelo popularizado com que o texto de Carlo Guinzburg (1983) trabalhou a relação existente entre o método de Freud e o de Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, e suas origens em Giovanni Morelli, investigador da autenticidade das obras de arte, trata-se da elaboração de hipóteses através de elementos que procuram dar conta de uma conexão que os torne prováveis como explicação da gênese de um fato. Se Sherlock Holmes consegue saber que a marca dos pés na terra corresponde aos passos de um manco pela diferença de impressão entre um pé e outro, e articular uma hipótese a partir daí, e Giovanni Morelli conseguia detectar a falsidade de uma obra de arte não por seu aspecto geral, mas porque era nas orelhas ou nas mãos dos personagens representados que buscava o detalhe que permitia certificar que tinha sido realmente pintada por quem assinava, é porque, em ambos os casos, cada um deles sabia o que estava buscando. É do mesmo modo que Freud consegue encontrar o sentido do sonho em meio às associações e reconstruir o desejo inconsciente, ou articular, no caso Hans, que o cavalo temido corresponde ao da carruagem que o levou a Gmunden quando a mãe estava grávida, e que o freio que o angustia é um deslocamento do bigode do pai simultaneamente amado e odiado.

Diferentemente do símbolo, conforme a classificação de Pierce, o que caracteriza o indício é que não há, a seu respeito, regra de interpretação, não há "interpretante", não é triádico. No caso do símbolo, existe o elemento presente, aquele ao qual remete e um terceiro que permite sua interpretação. Nele há convenção possibilitadora do sentido, por isso o signo linguístico é o protótipo do símbolo - sabemos que isso não é assim nem em Saussure nem em Piaget, para quem a diferença entre signo e símbolo passa pela arbitrariedade da relação estabelecida. O índice - ou indício - está em contiguidade com o objeto, é, poderíamos dizer hoje, metonímico, mas, diferentemente do ícone, não representa o objeto, apenas revela sua presença (no caso dos ícones, pensemos no sistema de sinalização de estradas, com seus desenhinhos que revelam as curvas, a presença de animais ou o risco de desabamento, que está a meio caminho entre algo que conserva sempre um atributo do objeto em sua grafia, mas que pode ser lido dentro de um universo compartilhado e adquirir caráter simbólico). O indício, por sua vez, tem necessariamente de ser entendido termo a termo, dentro de uma cadeia singular de elementos. Se as pegadas do cavalo na neve indicam, como diz Umberto Eco (2006) em O nome da rosa, que por ali passou recentemente um cavaleiro, isso alude a esse cavaleiro em particular, a essa circunstância e serve de hipótese sobre o que ocorreu nessa circunstância. É desse mesmo modo que operam os objetos autoeróticos: desprendidos do objeto de prazer, restos da presença do agente sexualizante, não o representam, e por isso não são símbolos que possam ser interpretados como busca daquele agente. Portanto, dizer que uma criança que chupa o dedo quer o seio da mãe é simplificar a questão, pois aquilo que chamamos de "seio" são os restos do corpo primordial inscrito, reencontrado no prazer autoerótico de sucção do dedo acompanhado da representação ativada concomitante.

Por isso, para esses casos, o método de "interpretação" - entre aspas e logo veremos por quê - não pode ser nem a indução nem a dedução, mas a abdução, que consiste no estabelecimento da relação termo a termo com caráter hipotético: se essas pegadas existem, é provável que um cavalo tenha passado por aqui. A construção freudiana tem, em última instância, algum tipo de relação com esse método abdutivo: "Quando sua irmã nasceu, você provavelmente sentiu que..."; "quando você passou aquele verão em Gmunden, você provavelmente - Freud poderia interpretar para um hipotético Hans adulto - viu seus pais terem relações sexuais, as pernas deles se agitando como as do cavalo da carruagem que o levou no ano seguinte com sua mãe grávida..."

Para Aristóteles, a abdução consistia num silogismo cuja premissa maior era verdadeira, ao passo que a segunda era provável, definida como verossímil, mas não verdadeira. Para Pierce, a abdução é a hipótese que implica a maior racionalidade possível: descartado o impossível, o verossímil pode ser verdadeiro. Exemplificando: "Se o dinheiro não tem asas e por aqui só passou meu primo Pancho, por mais horrível que seja, tenho de pensar que foi ele quem o pegou" - o que não é necessariamente verdadeiro até que seja demonstrado. Contudo, eu disse antes que é necessário separar o modelo indiciário em seu conjunto, que se aplica bem a organizações de símbolos, a fim de encontrar a função que ele pode ocupar em psicanálise quando se trata de conceber o signo de percepção como índice ou indício. Como mostrou Guinzburg, tanto Morelli quanto Conan Doyle e Freud têm formação médica. Nos três casos o modelo médico, o modelo da sintomatologia médica supõe, como método, a utilização daquilo que permite diagnosticar algo inacessível à observação direta, com base em sintomas superficiais, signos e sinais por vezes irrelevantes aos olhos do leigo. O caçador pré-histórico baseava-se em indícios para detectar a presença de sua presa. A partir de indícios, sinais, pegadas, rastros, cheiros, penas, pelos, podia conjeturar o que passou por ali e, juntando os dados que ia obtendo, determinar quem passou por ali e os perigos e riscos implicados no acesso àquela presa. Trata-se de um registro, uma interpretação e uma classificação de dados, mas de dados escolhidos de algum lugar, desde uma ótica particular que permite atingir o objetivo, que é a montagem de hipóteses.

O modelo indiciário não é, necessariamente, aquele que permite a interpretação do indício quando estamos diante de elementos que não foram lidos previamente nem tipificados em um código. Suponhamos um caçador que encontra pegadas de um animal que não conhece: ele pode dispor do método, mas não pode de modo algum ter acesso ao conhecimento do animal. Mais ainda, pode supor que pelo tamanho da pegada está diante de um exemplar pequeno ou, pelo contrário, diante de um grande, o que não seria necessariamente verdadeiro, caso se tratasse de uma espécie absolutamente desconhecida, até mesmo não definida pelas legalidades conhecidas até o momento. As pegadas, por outro lado, não lhe permitem conhecer a cor nem o tipo de membrana envolvente e tampouco a velocidade ou ritmo de sua marcha. Enfim, a única coisa que o caçador poderá saber é que por ali passou um animal, sem ainda saber, inclusive, se é sua presa ou seu caçador.

O exemplo serve para demarcar a questão relativa aos signos de percepção, cuja proveniência é metonímica e não metafórica do real. Vejo-me obrigada, nesse ponto, a introduzir algumas considerações sobre a questão da realidade em psicanálise, para que se entenda o tipo de materialidade que pretendo abordar. Para evitar que o interlocutor se disperse peço, contudo, que apenas siga o raciocínio e pense na validade de um modo de abordagem necessário, sobre o qual me estenderei nas próximas linhas.

Disse anteriormente que nem sempre as representações que emergem, particularmente aquelas que se produzem com caráter compulsivo ou levam a fixações, no sentido de operar como atratores libidinais, são da ordem do recalcado, mas que podem ter um estatuto que denominei de caráter "arcaico". São modos de representação que não estão fixados a nenhum sistema psíquico, que transitam pelo aparelho sem ser conscientes e ao mesmo tempo não têm estatuto de recalcados, tal como as "reminiscências", que, dizia Freud, eram lembranças provenientes de situações traumáticas que perderam seu enlaçamento. É necessário ter em mente essas duas características para entender o caráter que esse tipo de formações representacionais adquire: não estão fixadas pela memória, é o sujeito que se vê "fixado" a elas, e não é possível situar seus nexos de origem. Por isso é que não são, em sentido estrito, lembranças, mas "traços mnêmicos", já que não há sujeito que recorda, mas presença do acontecido processado pelo psiquismo. Nesse caso, o recalcamento não pode sepultar no inconsciente os restos do traumático, que continuam investidos e operando, levando Freud a reconceitualizá-los em 1920, sob um dos modos de conceber a operativi

dade da pulsão de morte, como desligamento - numa perspectiva muito mais fecunda e racional que a do retorno ao inorgânico em contiguidade com a metabiologia ferencziana. Faz-se também mais que evidente, no trabalho clínico, a necessidade de retomar a premissa formulada em "A interpretação dos sonhos" em relação a algo dessa ordem, quando se afirma que em alguns casos o sentido da terapia analítica é conseguir o esquecimento - ao que acrescentaríamos: não sob o exercício do recalcamento e sim da ligação, do acoplamento, que possibilita seu desinvestimento.

Nossa prática nos ensina que as associações se veem impossibilitadas de dar conta desses fragmentos representacionais ou desses modos de compulsão repetitiva que se manifestam de diversos modos.

E foi só a ilusão de que tudo o que aparece no psiquismo tem um sentido inconsciente, isto é, pode ser ligado a outro elemento que o signifique, que propiciou o método simbólico da interpretação, que cai quando já não se sustenta o universalismo biologista que se manifesta como paralelismo psicofísico representacional - teoria da delegação - ou anistoricismo estruturalista. É indubitável, porém, que desde os primórdios da psicanálise a teoria simbólica da interpretação, que se manteve mesmo diante da carência de associações, chegando inclusive a substituí-las, veio preencher uma necessidade de sentido quando este não pode ser construído no processo associativo devido à interrupção de toda conexão do material linguagem.

A razão disso é que esses elementos, embora possam ser expressos em linguagem, estão desconectados de sua própria produção, dado que, diferentemente do sintoma ou da fantasia, das chamadas formações do inconsciente que se caracterizam por ser transacionais e estar habitadas pela linguagem, são de linguagem apenas como forma de captura, não como forma de produção. Em outras palavras, o fato de alguém saber que não deixa de ter uma atração irresistível por um determinado traço, que pode ser da ordem da condição fetichista, não quer dizer que a fantasia que o produz esteja inscrita na linguagem e recalcada a posteriori. Até mesmo em certos transtornos de gênero que aparecem antes do estabelecimento da diferença sexual anatômica, que não podem ser considerados da ordem do travestismo clássico e, sim, como tentativa de restituição na superfície do corpo da membrana faltante que possibilita a identificação primária, não podendo ser interpretados, em sentido clássico, como renegatórios da castração.

 

Simbolizações de transição, uma recomposição do tecido psíquico

Mesmo em situações cotidianas, habituais em nossa prática, os modos de interpretação simbólica obturam a possibilidade de estabelecer um nexo mais profundo, mais articulado com o vivenciado quando se parte de generalizações em vez de buscar, de modo abdutivo, a forma de estabelecer um tecido simbólico capaz de dar armação ao esgarçado. Gostaria neste ponto de introduzir o conceito de simbolizações de transição, cujo propósito é possibilitar um nexo para a captura dos restos do real e que têm o sentido de permitir a apropriação de um fragmento representacional que não pode ser apreendido por meio da associação livre, cuja significação escapa e insiste em muitos casos de modo compulsivo e que, diferentemente da construção - muito embora, no limite, a teoria opere -, caracterizam-se pelo emprego de autotransplantes psíquicos, ou seja, a implantação de contextos que foram relatados ou conhecidos no interior do processo do tratamento, mas que ainda não foram relacionados com o elemento emergente.

Um exemplo da clínica para entender esses elementos teórico-práticos, para ver a função do indiciário no interior de um processo clínico: trata-se do caso, supervisionado no exterior há alguns anos, de uma menina com alguns transtornos gerais em seu funcionamento psíquico. É uma menina com uma carinha de adulta, que apresenta certas dificuldades escolares e uma história de vida muito difícil, com separações e perdas, não porque a vida as tenha imposto, mas por certa dificuldade digamos empática dos pais. Com um ano e meio foi deixada com uma avó deprimida durante certo período de tempo, não por necessidade, mas porque os pais viajaram sem que houvesse para isso razões de força maior - o que fala de um olhar ausente dos pais em relação a essa avó deprimida com quem deixaram a menina, que fica entregue ao abandono dessa avó durante certo tempo. A mãe diz que uma das coisas sobre a qual gostaria de consultar - diz isso no meio da entrevista, sem que tenha a ver especificamente com os sintomas -, sobre a qual gostaria de saber a opinião da analista é: se é bom que a menina, quando o pai está tomando banho, entre no banheiro e sente na privada, onde faz cocô enquanto conversam. "É, mas a gente se diverte muito enquanto conversa, é um momento muito agradável", diz o pai. Ao que a mãe responde: "Pode ser, mas eu acho que não é bom."

Quando isso me é relatado pela analista, digo-lhe que, para além do conflito entre os pais ou do caráter que isso tenha para os pais, a pergunta que cabe fazer é como isso se inscreve na menina, pensando que essa cena pode dar lugar a uma impregnação anal do genital, ou uma impregnação genital do anal, pouco importando o que veio antes e o que veio depois, o que importa é que a cena fixa algo da ordem do prazer anal na relação com a visão do pai nu, e algo se consolida.

Ao mesmo tempo, porém, aponto para a analista que me surpreende a ausência de asco no pai (a menina tem cinco anos, não um ano e meio). Uma pessoa defecando no banheiro que não produz um rechaço indica no pai uma ausência de asco, não só de pudor, porque a questão do pudor pode ser discutível em termos de ideologia, ao passo que em relação à analidade não há discussão possível. Não há ideologia que justifique defecar em público, porque é da ordem do asco primário, constitutivo do psiquismo - a ponto de fazer parte das regras de comportamento do Deuteronômio.

Ademais, a cena que a analista me conta aponta para algo não constituído do recalcamento originário no pai, que aparece desse modo. E, do lado da menina, uma fixação muito importante a uma cena na qual o prazer anal é significado falicamente ou na visão excitante; mas, ao mesmo tempo, talvez haja algo excitante na relação com o pai que faz que essa menina defeque no momento em que esse ato constitui o único modo de aliviar a excitação sobrante. Aponto, de passagem, essa ideia de excitação sobrante e seu modo de se organizar por uma forma de exercício libidinal concomitante.

Minha formulação produz forte impacto na analista que me conta que, poucas sessões atrás, a menina tinha aparecido no consultório levando papel higiênico para a sessão. Trata-se de algo que me interessa destacar pelo duplo encadeamento que marca a fixação ao traumático como presença do não ligável, não metabolizável, exercido como compulsão, e o caráter desse "fragmento" que emerge na sessão e que deve ser repensado com relação à sua função na cena de origem. Quando a menina chega com o papel higiênico, seria possível propor uma interpretação simbólica a partir de distintos esquemas referenciais, da intenção agressiva de transformar a sessão num banheiro e a analista numa privada, até a função continente, limpadora da analista, como quem exerce as funções de proteção e limpeza. Pouco importa, todas igualmente válidas, todas igualmente insuficientes e inclusive falhas, na minha opinião, por seu caráter obturador do real vivido - mesmo que em algum momento o próprio ato pudesse ganhar esse caráter.

O que me importa da cena, o que quero destacar quando a menina não consegue dar outro motivo de ter levado aquilo que não seja "para mostrá-lo" é que a restituição do elemento papel higiênico na cena originária é da ordem do indício. Mas o interessante está nisso: é da ordem do indício para o leitor, mas não para o sujeito, porque não há indício no sujeito, o que há é algo manifesto que põe o signo de percepção ao alcance do indício, à medida que se trata de algo do real que "funciona como signo" para alguém. Trata-se de transformar o ato em indício, retomando a ideia de Pierce do indício como um representamen que funciona como signo, ou seja, algo da ordem do real que se impõe ao sujeito e obriga a uma interpretação. E o problema de transformá-lo precocemente em símbolo está em lhe recusar o caráter de fragmento de um real vivido, devolvendo-o ao modo do detalhe de uma cena que pode ser articulada na ordem do gozo compulsivo que se impõe ao sujeito.

É precisamente o caráter metonímico do papel higiênico que, retranscrito na análise, ganha um caráter metafórico, mas ainda insuficiente, mesmo que, ao ser transladado de um espaço para outro, propicie um modo diferente de intercâmbio simbólico. Contudo, é preciso levar em conta que o principal do elemento traumático é precisamente o elemento metonímico, não o metafórico; justamente, é preciso levar em conta que o trauma se caracteriza por arrastar restos do vivenciado e a metáfora é a forma de simbolização daquilo que ficou ali, sem ancoragem, mas exige o reconhecimento de sua especificidade, porque foi ali que encontrou os elementos investidos, excitantes, que o encarnam.

Portanto, antes de lhe fornecer uma interpretação, ele tem de ser reconhecido como resto do real vivido, significado nessa ordem e acoplado ao objeto originário no âmbito da relação transferencial. Se não for feita desse modo, a interpretação não tem o menor valor para o sujeito. Nisso consiste a operação que chamo de "simbolizações de transição", pontes, autotransplantes, nos quais inevitavelmente o analista inclui a perspectiva teórica, mas entretecida com os restos vivenciais excitantes das representações de quem as padece.

Fiz referência alguns instantes atrás aos conceitos de "fragmento" e "detalhe", aos quais gostaria de voltar para retomar a questão do indiciário a partir de um autor que é Omar Calabrese (1989), semiólogo e filósofo de Bolonha, e, que, num livro chamado La era neobarroca, com prólogo de Umberto Eco, trabalha algumas questões que podem ampliar a perspectiva que estou prestes a expor. Trata-se de conceber a relação entre a parte e o todo, já que o detalhe remete ao todo, ao passo que o fragmento carece de acoplamento, não se conhece o todo de início. Com relação ao detalhe, pode-se afirmar: "O detalhe vem de cortar de" e é "perceptível a partir do inteiro e da operação de corte". Dessa maneira, nunca existe o detalhe sem o todo, mas o todo em presença, articulável, ao passo que no caso do fragmento, este deriva, etimologicamente, de "quebrar", de maneira que "o fragmento, mesmo pertencendo a um inteiro precedente, não contempla sua presença para ser definido. Na verdade, o inteiro está em ausência". Isso é fundamental para o tema de que estamos tratando, já que o fragmento não só se desprendeu, como pode não remeter necessariamente ao todo, não há a que remetê-lo.

Temos aí o fundamental para o tema que nos interessa, que, espero, se ressignifique mais adiante quando eu expuser as teses sobre a função do real; o fragmento está no real, antecede o indício: "A geometria do fragmento é uma ruptura na qual as linhas de fronteira devem considerar-se como motivadas por forças que tenham produzido o acidente, que tenha isolado o fragmento do seu todo de pertencimento." Já que para esses modos de inscrição, para essa materialidade representacional, o todo de pertencimento pode nunca ter existido como tal, sendo o fragmento o único que resta inscrito enquanto materialidade psíquica.

"A análise da linha irregular de fronteira possibilitará, então, não um obra de reconstituição, como se dizia a propósito do detalhe, mas de reconstrução por meio de hipóteses sobre o sistema de pertencimento." E isso é o mais interessante. Não se pode voltar a montar o objeto, pode-se reconstruí-lo discursivamente por linhas nas quais se articulam hipóteses, o que nos leva diretamente ao signo de percepção freudiano. Ou seja, o signo de percepção é um fragmento do objeto real, metonímico do objeto real, inscrito por desprendimento, provido de força de investimento a partir de seu caráter excitatório, mas que perdeu qualquer referência ao real externo, que só existe como realidade psíquica por ter sido incluído numa realidade diferente da realidade exterior de proveniência. É esse elemento investido, circulante, que pode se tornar indício quando ganha para o sujeito o caráter de um signo, quando "se transforma em signo" porque ele mesmo se vê fixado a ele ou porque alguém o sublinha - nesse caso, o analista - e, mediante sua ligação, cede em seu caráter de precipitador da compulsão à repetição.

 

Algumas reflexões sobre o ingresso da realidade no aparelho psíquico

Considero necessário, a essa altura da exposição, situar o tema que desenvolvemos no contexto das ideias que, a meu ver, definem o fundamental de meu pensamento, ou até algo que poderia ser considerado um momento de organização de alguns enclaves relativos à questão do inconsciente e da heterogeneidade das representações psíquicas, para posicionar, com respeito a isso, os diversos estatutos desse exterior que costumamos chamar realidade.

Trata-se de expor os elementos que poderiam ser considerados as teses atuais que definem o realismo do inconsciente e sua materialidade, partindo da direção assumida ao longo de meu trabalho segundo a qual, seguindo Laplanche, a tópica psíquica tem origem exógena, traumática, e está en décalage [defasada] no tocante a seus modos de organização. Expostas ao modo de teses, apoiam-se em três paradoxos que permitem repensar os conceitos antes expostos e sua fecundidade clínica.

A primeira delas diz que a realidade psíquica é da ordem de um pensamento sem sujeito, um pensamento não pensado por ninguém e que antecede a instalação do sujeito nos termos propostos pela filosofia: como sujeito reflexivo por oposição a seu objeto. É essa realidade psíquica pré-subjetiva que em seguida se torna parassubjetiva, quando diferenciamos psiquismo de subjetividade, de modo tal que o inconsciente nunca será atravessado pelos modos de funcionamento da lógica e da intencionalidade do pré-consciente, o que o situa em termos de res extensa, de realidade psíquica em sentido estrito, de materialidade não redutível à consciência.

As consequências dessa tese para a prática clínica são importantes, à medida que livram da ressubjetivação do inconsciente, que se manifesta, sobretudo, tomando os resultados da ação por sua motivação. No inconsciente parassubjetivo, não há "outro eu" que quer o que eu não quero, ou o que não reconheço que quero, mas desejos que atentam constantemente contra a autopreservação e autoconservação de que o eu se encarrega.

A segunda tese é que essa realidade psíquica é efeito de um objeto exterior, que provém de um tipo de realidade que é da ordem da sexualidade humana, mas que em sua implantação perde toda referência a esse exterior. Isso é fundamental para discutir o tipo de representação que é efeito de traumas severos (seu caráter simbólico ou não, tal como indicamos em parágrafos anteriores). O conglomerado de signos de percepção remanescentes da vivência de satisfação é reinvestido na alucinação primária e constitui o embrião de toda simbolização possível. Mas essas inscrições não são em si mesmas simbólicas, porque, embora fundem a realidade psíquica, são a origem do que Castoriadis chamaria de "imaginação radical" - criam objetos não existentes no mundo externo, produzem uma realidade que não as antecede -, são o embrião de toda simbolização possível, mas nem por isso são simbólicas, porque remetem apenas a si mesmas. Recordando a definição de símbolo antes exposta, para que haja símbolo deve haver inevitavelmente, ao menos, dois elementos, na verdade, três, porque deve haver dois elementos e uma regra de interpretação, o que não existe desde o começo da vida. Por outro lado, o que se inscreve não é o seio como tal, mas a vivência na qual são amalgamados aspectos do objeto e do incipiente aparelho psíquico que denominamos sujeito, apesar do reconhecimento da imprecisão disso. É nesse sentido que afirmamos que a alucinação primária é um embrião de simbolização embora ainda não seja simbólica de nada. Constitui o embrião de toda simbolização possível, mas não é simbólica porque remete apenas a si mesma, sendo, nesse sentido, realidade psíquica, porque é a fundação de uma realidade outra, de uma realidade de caráter material que não corresponde nem à subjetividade, nem tem existência no mundo externo.

A terceira dessas teses é que essas representações, embora sejam efeito de inscrições que se produzem no tempo, não são históricas porque não estão atravessadas pela categoria do tempo. Nesse sentido, poderão ser historicizadas a posteriori por parte do sujeito, quando puderem ser situadas como lembranças, ligando-se ao pré-consciente, ou, no caso do sujeito em sentido estrito, por parte do eu. Seguindo o modelo do capítulo VII de "A interpretação dos sonhos", pode-se dizer que no inconsciente o tempo se torna espaço, sistema de trajetos. É do lado do sujeito que espaço e tempo adquirem o caráter de a priori da experiência. Mas também poderíamos pensar que à medida que o eu é fundado pelo narcisismo do outro, o a priori está no outro; tempo e espaço são categorias que delimitam os cuidados que o adulto ministra à criança se tiver pré-consciente que possa estabelecer a regulação dessas ações. Essa ideia de que não basta haver um adulto, de que deve haver um adulto com uma tópica funcionando, é uma ideia central de meu pensamento; e que o problema não é o adulto ter a linguagem no sentido de fala (ou de falar), mas ter o pré-consciente funcionando e capacidade de emitir enunciados a respeito da criança. E esses enunciados organizam esses cuidados, não há uma transmissão direta do enunciado. O problema da criança não está em ser falada, mas em ser constituída no contexto de organizações espaço-temporais que a precedem e de desejos que se inscrevem na linguagem que a captura.

A quarta tese que quero propor é que o psiquismo humano, produzido pelo esforço de processar elementos para os quais não está geneticamente preparado, elementos que excedem a informação biologicamente transmitida, obrigado a se articular, processar, metabolizar elementos provenientes dessa realidade-excesso que o outro humano oferece com a sexualidade que infiltra em seus cuidados precoces, não se ativa pela ausência de um objeto de autoconservação - o seio nutridor ou o leite que brinda - mas pelos excessos, pelo "a-mais" circulante que desse objeto emana. É nesse sentido que consideramos que é o excesso que gera esse "a-mais" que não se reduz à autoconservação, e que dá origem à libido não por efeito da contingência do objeto, mas porque esse próprio objeto dá conta da contingência da própria pulsão, que dá origem à representação. O fato de essa representação se ativar com a falta do objeto não quer dizer que ela cessa ante sua presença. São duas ordens diversas que encontram um acoplamento e que tornam inevitável o recobrimento do real por parte da ordem humana. A descoberta kleiniana sobre a função da projeção como constitutiva deve ser resgatada de seu destino de defesa a ser destituída, decorrente do fato de a psicanálise ter conservado a ilusão de um sujeito defrontado com um objeto cognoscível enquanto tal, efeito da marca positivista do começo das ciências do século XX. O caráter terciário que Lacan outorga à construção da realidade vai nessa direção, ao propô-la articulada entre a linguagem e o real, atravessada pelo imaginário e impossibilitada de ser apreendida em si mesma. É precisamente no signo de percepção, no indiciário recuperado como modo de acoplamento, que propomos uma clínica que aproxime mais do real da vivência e que questione tanto a suficiência do significante quanto a hermenêutica transindividual.

Sendo, pois, a realidade psíquica da ordem do que não surge da autonomia do sujeito, mas tampouco da transcendência subjetivante do grande outro, do inconsciente concebido como um outro, ainda que seja efeito de um processo que provém do outro. Mas de um outro que não sabe o que está implantando, o que possibilita a metábole por parte da criança e constitui a singularidade dessa realidade nova. Por isso é que entre a realidade exterior, que ingressa, e o psiquismo que metaboliza, pode-se produzir um processo de desqualificação e autoengendramento, para empregar a expressão que Piera Aulagnier nos proporcionou com sua obra e que arrancou do solipsismo para reintegrar ao próprio eixo que a constitui: o fato de que o psiquismo humano processa o que lhe chega, articula-o de modo diferente da materialidade de partida e gera com isso uma ordem nova, uma neocriação, que põe a serviço da produção de cultura e de seu atravessamento desejante.

As ideias expostas tentam dar conta de um movimento voltado para a produção de novas ferramentas para nossa prática a partir do questionamento metapsicológico dos enunciados que a regem. Nesse sentido é que gostaria de ter passado a ideia de que é nos resíduos processados e agitados pelos sistemas psíquicos, nas marcas do vivido, na busca apaixonante de cercar seus vestígios que a psicanálise pode encontrar a materialidade que lhe compete, sem ceder à tentação conformista de se limitar a encontrar o já dado, nem obviar a possibilidade de sua descoberta. É também nesse movimento, no qual restos simbolizáveis ainda não tramitados curto-circuitam constantemente a possibilidade de enriquecimento psíquico e obrigam à reiteração, que, no esforço de lhes dar uma nova dimensão, nossa prática se torna, a cada dia, um processo de criação e recomposição que dá lugar a novos modos de funcionamento e de articulação encarnados, do ponto de vista que esboçamos, como um processo de neogênese.

 

Referências

Bleichmar, S. (1994). A fundação do inconsciente. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Calabrese, O. (1989). La era neobarroca. Madri: Cátedra.         [ Links ]

Eco, U. (2006). O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Eco, U. & Sebeok, T.A. (1989). El signo de los três: Dupin, Holmes, Pierce. Barcelona: Lumen.         [ Links ]

Freud, S. (1986). Carta de 06/12/1896. In J.M. Mason (Ed.), A correspondência completa de S. Freud para W. Fliess. Rio de Janeiro: lmago.         [ Links ]

Guinzburg, C. (1983). Senales. Raíces de un paradigma indiciário. In A. Gargani (Org.), Crisis de la razón. Nuevos modelos en la relación entre saber y actividades humanas. México: Siglo XXI.         [ Links ]

 

 

1 Publicado originalmente em Docta - Revista de psicoanálisis, 2, 2004.
2 Pode-se consultar Guinzburg (1983) e Eco & Sebeok (1989).

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