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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2011

 

RESENHAS

 

Constituição da vida psíquica

 

 

Eliane Saslavsky Muszkat

Membro filiado do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 

Orgs.: Maria Thereza de Barros França e Teresa Rocha Leite Haudenschild
Editora: Hirondel em cooperação com a Divisão de Publicações da SBPSP, 2009, 275p
Resenhado por: Eliane Saslavsky Muszkat

Várias áreas do conhecimento pesquisam os inícios. Temos fascinação pelos começos, pelas origens: do sistema solar, da vida na terra, do homem...

A psicanálise também se ocupa, dentro da sua especificidade, dos primórdios: a formação do psiquismo, os primórdios da vida mental. Essa empreitada exige coragem. Coragem para navegar por uma área obscura e cheia de indagações. As indagações são uma constante, muito mais presentes do que as respostas. No entanto, penso as indagações como avanço, pois para poder se perguntar, algo já precisou ser pensado. Além disso, as indagações "abrem" e possibilitam outras e de outros investigadores.

Esta navegação também pressupõe desprendimento por parte do psicanalista. Águas turvas e revoltas, tempestades e furacões.

Quais nossos instrumentos para essa navegação? Com certeza todo conhecimento que acumulamos e teorias que nos orientam. No entanto, nessas condições de navegação por vezes tão adversas, quando a escuridão é preponderante, penso que nossas grandes bússolas são nossa mente e nossa carne.

O trabalho do analista é absolutamente "encarnado". Acredito que trabalhamos com a nossa personalidade, com a nossa mente e com a nossa carne.

Muitos analistas foram suficientemente corajosos e desprendidos na investigação do que se passa no início da vida mental e nos iluminam com seus pensamentos: Klein, Bick, Meltzer, Tustin, Bion, Winnicott, só para citar alguns.

Dentre nós, brasileiros, também temos corajosos navegadores das águas turbulentas da chamada mente primitiva. O livro Constituição da vida psíquica reúne textos de vários colegas, todos membros da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo: Celia Fix Korbivcher, Marisa Pelella Mélega, Marli Claudete Braga, Marina Trench de Oliveira, Alfredo Menotti Colucci e Lauro Frederico Barbosa da Silveira, Maria Theresa de Barros França, Teresa Rocha Leite Haudenschild, Mariângela Mendes de Almeida, Roosevelt Moisés Smeke Cassorla, Maria Silvia Regadas de Moraes Valladares, Regina Elisabeth Lordello Coimbra, Ester Hadassa Sandler e Alicia Beatriz Dorado de Lisondo. Cada um a seu modo, com suas teorias de referência, sua mente e sua carne, nos oferece seu pensamento e contribuição. Alguns textos são mais teóricos e outros trazem mais relatos clínicos. O que é inegável, no entanto, é o esforço e comprometimento de todos com este tema tão fascinante que é a constituição dos estados iniciais da mente e as patologias relacionadas a falhas nesses estágios.

Esse livro representa um esforço conjunto para apresentar o que nossos colegas vêm pesquisando e pensando, e isso, por si só, já o torna interessante a todos nós.

A partir da leitura dos diversos textos podemos apreender os caminhos trilhados por investigadores que nos antecederam e que contribuíram grandemente para o avanço do pensamento psicanalítico, notadamente nas questões ligadas ao nascimento da vida psíquica. Os colegas nos oferecem sua leitura de como esse pensamento foi se desenvolvendo e como os analistas-navegantes foram valendo-se de navegações anteriores.

Por meio de relatos clínicos a partir do lugar de supervisor, pesquisador, de vinhetas e em descrições mais detalhadas de atendimentos realizados diretamente pelos autores, a clínica aparece com vigor ao longo do livro. Nesse sentido os autores nos brindam com as mais variadas situações: observação da relação mãe-bebê, intervenção na relação inicial mãe-bebê, atendimento de crianças bem pequenas com perturbações da ordem do autismo, psicose, atendimento de crianças maiores, adultos que não conquistaram a capacidade simbólica, outros que não foram banhados pelo olhar materno ou esse olhar não se dirigiu à singularidade deste ser, adultos que apresentam transtornos de pânico, o trabalho anterior/ paralelo junto aos pais do paciente, absolutamente imprescindível nos casos relatados.

Os autores compartilham conosco percursos preciosos com pacientes muito difíceis; crianças com variados graus de autismo ou com perturbações menos graves, mas também desafiadoras. Suas descobertas e compreensões são generosamente compartilhadas. Corajosa e humildemente, também compartilham suas indagações. O verdadeiro espírito do investigador/navegador/desbravador.

Anos e anos de trabalho (quanto trabalho!), enorme tolerância à frustração e à ignorância e, acima de tudo, ter fé no poder transformador do encontro humano.

Rudimentos de gestos. Um balbuciar... duas sílabas que significam várias coisas, ou então a mudez. Observações das expressões do corpo e dos seus fluídos e produtos: baba, xixi, pum, lágrima... ouro puro para nossos desbravadores. Trabalhos encarnados, por vezes viscerais.

Penso que as diversas psicanálises tenham no mínimo um ponto em comum: a compreensão que nos tornamos humanos por meio da experiência com outros humanos e que essas relações são intensas desde o nascimento (e mesmo antes). Sem negar diferenças, acredito que os analistas se encontram na clínica. Minha experiência pessoal na leitura dos vários artigos me possibilita esse pensamento. Quero com isso dizer que, apesar dos referenciais teóricos distintos apresentados pelos colegas nos seus escritos, quando se dá a clínica, os analistas podem se encontrar, se reconhecer.

O trabalho com os pais, nos casos de crianças muito pequenas e/ou com perturbações graves, faz parte do atendimento psicanalítico e deve ser feito, a meu ver, pelo mesmo analista que atende a criança. Considero que os pais fazem sempre o melhor que podem. Se o que fizeram foi insuficiente, excessivo, ou, em qualquer medida, inadequado, intrusivo ou omisso, isso se deve às suas próprias impossibilidades psíquicas. É preciso ouvi-los com atenção e disponibilidade, uma escuta analítica.

As intervenções do analista nessa escuta podem se dar desde o nível mais concreto, prático, para que uma mínima rotina, organização ou ordem possa começar a existir na vida da criança, até a escuta para os sintomas da ordem do transgeracional que, não conscientes, não pensados e não elaborados, manifestam-se na criança. No livro encontramos esse trabalho sendo realizado. Pais que funcionam muito concretamente e que não têm nem notícia de que existe algo como vida mental, outros que não foram capazes de dar a "atenção especial" que o bebê necessita no início da vida seja por depressão materna (e paterna), seja por outras conjunturas emocionais.

Um último, porém importante, ponto a se destacar nessas perturbações tão precoces do desenvolvimento mental, é a questão da existência ou não de um componente orgânico. Alguns colegas relatam ter tido a colaboração de outros profissionais sensíveis à existência do mental, suportando assim o trabalho analítico junto aos pais (o pediatra, por exemplo). De qualquer forma, a especificidade da psicanálise é o trabalho no encontro entre dois seres, mesmo que um deles pareça não pertencer ao mundo dos humanos. Assim sendo, o diagnóstico psicanalítico se diferencia de outros como, por exemplo, o neurológico. A avaliação psicanalítica deve descristalizar rótulos, abrir e ampliar significados.

Finalizando volto ao início do livro, a capa. Uma ilustração não saturada que permite que cada leitor tenha a possibilidade de imaginar...

Na minha imaginação vejo dois seres, um grande (pai/mãe) e um pequeno (criança). Os dois me parecem como que envolvidos ou sustentados por um outro que está num plano diferente. Esse braço, para mim, é a presença e a escuta analíticas.

 

 

Correspondência:
Eliane Saslavsky Muszkat
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Evangelista Rodrigues, 38
05463-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3822-3198
eliane@mcd.com.br

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