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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

47º CONGRESSO DA IPA - MÉXICO PAINÉIS PRINCIPAIS

 

Sexualidade

 

 

René RoussillonI; Tradução de Claudia Berliner

IAnalista didata da Sociedade Psicanalítica de Paris SPP, presidente do Grupo de Analistas de Lyon, docente da Universidade de Lyon 2

Correspondência

 

 

Quais são suas ideias implícitas ou explícitas sobre sexualidade e como essas ideias adentram a situação psicanalítica? Em outros termos, qual é a importância da sexualidade em suas ideias a respeito da situação clínica?

A escuta da dimensão do sexual no tratamento psicanalítico e a interpretação da dimensão sexual da transferência ou dos conteúdos associativos depende estreitamente da concepção psicanalítica do sexual e da sexualidade. Gostaria, pois, de me centrar na evolução dessa concepção.

A característica fundamental da concepção psicanalítica da sexualidade é que ela propõe uma considerável ampliação desta última. Embora a vida psíquica não possa ser reduzida à dimensão do sexual, esta está sempre presente e ativa nos processos que a atravessam e nos conflitos e formações que a constituem. A hegemonia do sexual em psicanálise está intimamente ligada ao primado do princípio do prazer-desprazer, ele é a principal forma de expressão desse princípio fundamental que governa o funcionamento da psique.

Além de ampliar a concepção do sexual, a psicanálise altera consideravelmente o seu sentido. Dissocia sexual e sexualidade, reconhece o sexual fora das manifestações da sexualidade, mas também pode destacar a presença de questões não sexuais na própria sexualidade. Ao introduzir a noção de uma sexualidade pré-genital, dissocia também a sexualidade do próprio sexo, atribui um caráter sexual "normal" a zonas corporais que não são as zonas propriamente "genitais". Ela nos ensina a ler o sexual em fantasias e em processos nos quais ele não aparece de modo manifesto.

A concepção psicanalítica do sexual e da sexualidade não pode, portanto, ser apreendida sem que se faça referência ao reconhecimento de aspectos inconscientes da vida psíquica. A sexualidade é um comportamento particular, um comportamento "observável", já o sexual concerne à dimensão intrapsíquica, "o curso dos acontecimentos psíquicos", ele é sexualidade interna, interiorizada. A medida do sexual não é dada por um comportamento, ela surge do sentido oculto, inconsciente, das manifestações expressivas do sujeito. O sexual se descobre, se reconstrói, se infere para além do manifesto, ele é fantasia inconsciente.

Foi por isso que a psicanálise começou a descobri-lo e a pensá-lo nas formações do inconsciente - no sonho, no lapso, no ato falho e no sintoma -, como aquilo que permitia devolver sentido ao que se apresentava como insensato ou, ao menos, enigmático nas produções psíquicas, como aquilo que permitia devolver continuidade e inteligibilidade à vida psíquica e a suas produções.

Mas nem Freud nem seus principais sucessores se ativeram a isso, e não o fizeram dada a pressão dos fatos clínicos. Sob a ação da clínica das perversões em particular e de certas problemáticas narcísicas, os psicanalistas começaram a entender que uma sexualidade podia ocultar outra, que por trás de uma sexualidade manifesta podia se esconder uma sexualidade diferente. Pensemos na importância da distinção entre a sexualidade adulta e a sexualidade infantil, e no modo como a segunda impregna a primeira com suas questões próprias, com seu polimorfismo. Mas mesmo no interior da sexualidade infantil começou a se impor o reconhecimento de uma complexidade, começou a mostrar presença ativa nos fatos psíquicos uma série de encaixamentos ou de equações simbólicas ou de "transposições". As pulsões e suas manifestações têm uma história, carregam a marca desta, de seus sucessivos tempos e momentos. História pré-genital das manifestações da genitalidade, mas também história, no interior da pré-genitalidade, das diferentes moções pulsionais, história de suas transposições, mas também de suas sucessivas reorganizações ou de suas substituições.

Sempre sob a ação da clínica da sexualidade e de suas particularidades, começou-se a ficar atento para o fato de que, quando o sexual era manifesto, ele mesmo podia constituir um disfarce para outras problemáticas. Problemáticas narcísicas em primeiro lugar, ou seja, atinentes a uma sexualização da relação do eu consigo mesmo, quando, por exemplo, de alguma maneira, "a sombra do objeto cai sobre o eu" e o eu se vê levado a se tomar como objeto, a se confundir com o objeto. Mas também problemáticas de outra natureza à medida que a exploração do narcisismo e de suas patologias ia se aprofundando.

A psicanálise entreviu então uma segunda revolução na abordagem da sexualidade e do sexual, ela começou a introduzir a ideia de que o sexual pode, por sua vez, ocultar o não sexual.

O que significa o sexual quando ele não está velado, quando aparece nos conteúdos manifestos? Nesses casos, ficaria a existência de processos inconscientes reduzida à questão dos objetos visados, ou poderiam o sexo e o sexual serem eles mesmos conteúdos manifestos que ocultam conteúdos latentes?

Freud, ao introduzir a noção de coexcitação libidinal (1914)1 e depois a de coexcitação sexual (1925)2, propôs a ideia da possível sexualização de uma experiência não sexual em sua essência, de uma experiência traumática por exemplo. Seja para encontrar o vetor de uma descarga (1914) como foi o caso do "homem dos lobos" criança, que evacua ao se ver confrontado com um transbordamento de excitações traumáticas decorrente da confrontação com o coito parental, seja para encontrar uma modalidade de ligação (1925) de experiências traumáticas que não comportam possibilidades de satisfação suficientes. Freud introduziu, assim, a ideia de uma função do sexual e da sexualização, de uma função destes na economia narcísica do sujeito, ou até, melhor dizendo, na sua economia de autoconservação.

Passa-se progressivamente de um reconhecimento do sexual a partir de sua definição como forma de interiorização da sexualidade infantil para um entendimento dele como processo de sexualização ou de dessexualização dos conteúdos e experiências psíquicos. O sexual já não aparece apenas como uma propriedade contida "em si" por certos processos do curso dos acontecimentos psíquicos, ele mesmo aparece como um processo a serviço ou em detrimento da vida psíquica.

O sexual contém questões diferentes daquelas que ele parece manifestar, ele tem um sentido inconsciente, também ele "metaforiza" outras questões psíquicas que o trabalho psicanalítico terá de revelar. Vale, então, por seu valor metaforizante, por sua capacidade de produzir um trabalho de metaforização, de tornar experiências psíquicas potencialmente desorganizadoras metaforizáveis como experiências de encontro com um outro-sujeito.

 

Referências

Freud, S. (1976a). História de uma neurose infantil. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad.,Vol. 17, pp. 19-150). Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1918 [1914]         [ Links ])

Freud, S. (1976b). O problema econômico do masoquismo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad.,Vol. 19, pp. 199-212). Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1924)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
René Roussillon
[Sociedade Psicanalítica de Paris SPP]
12, quai de Lérbie
69006 Lyon, France
rroussillon7@gmail.com

 

 

1 No texto dedicado ao "Homem dos lobos".
2 O problema econômico do masoquismo.