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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

47º CONGRESSO DA IPA - MÉXICO PAINÉIS PRINCIPAIS

 

Sexualidade

 

 

Nancy KulishI; Tradução de Tania Mara Zalcberg

IAnalista didata da Associação Americana de Psicanálise APsaA

Correspondência

 

 

Existem elementos (excluindo agressividade ou destrutividade) que sejam exclusivamente não sexuais ou a sexualidade é uma ideia unificadora em sua concepção de transferência? Em que medida você considera a transferência como sexual ou em que medida há fatores não sexuais (excluindo agressividade)? O desejo é um equivalente da sexualidade em suas conceituações clínicas?

Sempre que um novo paciente adentra meu consultório, sinto um sobressalto de expectativa e curiosidade acerca de embarcar numa nova jornada psicanalítica. Sem saber o que esperar, tento, explicitamente, manter quaisquer teorias e ideias preconcebidas que tenho a respeito das pessoas, fora da minha mente, enquanto abordo meu trabalho. Mesmo assim, devo admitir que conservo expectativas implícitas a respeito do que possa ocorrer na situação analítica; uma dessas expectativas é que a sexualidade em algum momento venha a fazer parte da investigação. Assim é porque acredito que a sexualidade seja uma área fundamental da experiência humana. Isso não que dizer que a sexualidade surja proeminentemente em todas as histórias dos pacientes ou que seja o cerne de todos os problemas. Mas está entremeada na tessitura de tudo que diz respeito a nossas mentes, em cores fortes, ou em filamentos indistintos.

Fiz minha formação na segurança da teoria do conflito e da psicologia do ego (Smith, 2008). Assim, aprendi que a sexualidade, mais explicitamente o conflito entre as pulsões sexuais (e agressivas) e as defesas, era o centro do trabalho clínico. De fato, na época era comum tomar uma história sexual completa e indagar a respeito das fantasias masturbatórias do paciente na avaliação inicial. (Nunca me senti à vontade com isso, já que qualquer "conhecimento" obtido a respeito do paciente era perdido devido ao dano resultante ao senso de segurança do paciente). Atualmente, ainda que eu venha trabalhando mais dentro do quadro de referência das relações objetais em que estão enraizadas as necessidades e as pulsões do indivíduo, e dando mais valor à importância de seguir meus sentimentos na situação clínica, devo reconhecer que minha formação inicial acerca da centralidade da sexualidade deixou sua marca. Mais cedo ou mais tarde, em qualquer análise, começo a discernir ou tentar entender o lugar da sexualidade no mundo interno ou na vida dos meus pacientes.

Um homem deprimido, cujo trabalho não trazia satisfação, com um casamento problemático e uma vida sexual insatisfatória, procurou análise. Sua história incluía abandono materno. Depois de quatro anos, uma nova e absorvente carreira, que exigia viagens, estava começando a interferir nas sessões analíticas. Durante uma sessão, ele começou a descrever como a esposa vinha se queixando, já que ela sentia que ele privilegiava o trabalho em detrimento dela. Eu também estava começando a me sentir pouco importante e colocada de lado. Automaticamente, pergunto sobre a vida sexual dele, à qual ele se referira durante meses. O paciente admitiu com desconforto que, há semanas, "não vinha tendo tempo" para sexo. Subsequentemente, ciente da minha contratransferência, fui capaz de investigar com o paciente a maneira como ele situava seu desejo na esposa e em mim.

Para muitos, a sexualidade parece problemática. Por que é assim? Por que a sexualidade parece tão carregada de conflito, até em nossa permissiva sociedade contemporânea? Em primeiro lugar e acima de tudo, a resposta é a existência da sexualidade infantil. Há um fato perturbador que a sociedade não quer aceitar, e ao qual até alguns psicanalistas atuais mostram resistência. A sexualidade está enraizada nas sensualidades corporais iniciais, nos intercâmbios ternos entre mãe e bebê, no erotismo anal, nas comparações e curiosidades a respeito do corpo e nas fantasias primárias estimuladas pela cena primária. Inevitavelmente essas experiências sexuais primárias permanecem não assimiladas (Fonagy, 2008) ou são repudiadas, sujeitas a confusão, repressão, negação, horror, punição, vergonha, culpa ou proibição. Laplanche (1968/1997) argumenta que a sexualidade e os medos associados a ela tomam forma na mente humana por meio dos vestígios dos encontros e identificações da criança com a sexualidade adulta. Esses encontros inevitáveis causam excessos de estimulação, de confusão e são traumáticos, "uma confusão de línguas", nos termos de Ferenczi (1949). Mas a criança não é um ser vazio, assexuado, sua sexualidade inata e prontidão sexual desenvolvem-se juntamente com as funções cognitivas, além de outras funções, e nas interações com o mundo externo.

Segundo, nesse arco de desenvolvimento, eu sublinho o período "edipiano" como transição importante de desenvolvimento, como diz Loewald (1985), "a iniciação e a entrada da criança no mundo adulto" (p. 435) e como fonte duradoura de fantasias sexuais, conflitos e paixões. Concordo com Ruth Stein (2006) que escreve que a "paixão no decorrer da vida tem ressonâncias de laivos edipianos... carregando conotações de desejo conflituoso ou proibido" (p. 771).

Terceiro, acredito que haja algo perturbador e misterioso acerca da vivência da sexualidade em si. Freud (1914) sugeriu isso. Os desejos sexuais da pessoa são vividos como urgentes, fluidos e potencialmente fora do próprio controle, exigindo assim atenção consciente e inconsciente. A sexualidade tem uma qualidade inquietante e até estranha, porque muitas vezes está entrelaçada com a interação íntima com o Outro, uma força do outro proveniente de dentro, ou outra pessoa sem, às vezes, um objeto intercambiável de apetite sexual, mas com mais frequência, o objeto de desejo especial, total e absoluto.

Retornamos repetidamente a essa questão da centralidade da sexualidade, não apenas devido às mudanças em nossas teorias e que colocam menos ênfase no papel da sexualidade na etiologia dos sintomas, mas por razões intrínsecas à natureza da sexualidade e a suas raízes na mais tenra infância.

Ressalto a experiência interior da sexualidade. O foco clínico na compreensão das experiências interiores de pacientes do sexo feminino ajudou a psicanálise a ir além das concepções equivocadas de nossas teorias iniciais a respeito da sexualidade feminina. Estamos começando a revisar também as teorizações iniciais reducionistas e dialéticas a respeito da sexualidade masculina. Penso que estudos mais aprofundados sobre a sexualidade humana se beneficiariam da maior concentração nas experiências internas da sexualidade, e menos concentração em classificações e teorizações distantes da clínica.

Se a sexualidade constitui ou não o núcleo central dos transtornos ou conflitos dos nossos pacientes, é um fato que está sempre em jogo em nossas mentes, devido à sua plasticidade psíquica e à plasticidade da imaginação humana. Ela pode ser solicitada para expressar ou disfarçar muitas necessidades ou estados afetivos. Ornstein (1993), por exemplo, teoriza que comportamentos e anseios sexuais observáveis são frequentemente convocados para reforçar um self fragmentado. Eu argumentaria que a sexualidade nessas condições não é menos importante do que se fosse mais "básica". Ela está sempre pronta a ser convocada para esse tipo de uso porque é parte integrante do nosso ser, desde a primeira infância, tomando diferentes formas, funções e significados, sempre uma força a se considerar e compreender.

 

Referências

Ferenczi, S. (1949). Confusion of the tongues between the adult and the child. Int. J. Psychoanal., 30,225-230.         [ Links ]

Fonagy, P. (2008). A genuinely developmental theory of sexual enjoyment and its implications for psychoanalytic technique. J. Am. Psychoanal. Assoc., 56,11-36.         [ Links ]

Freud, S. (1914). On the history of the psychoanalytic movement. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 3-66). London: Hogarth Press.         [ Links ]

Laplanche, J. (1968). Fantasy and the origins of sexuality. Int. J. Psychoanal., 49,1-18        [ Links ]

Laplanche, J. (1997). The theory of seduction and the problem of the other. Int. J. Psychoanal., 78,653-666.         [ Links ]

Loewald, H.W. (1985). Oedipus complex and development of self. Psychoanal. Q., 54,435-443        [ Links ]

Ornstein, P.H. (1993). Sexuality and aggression in pathogenesis and in the clinical situation. Progress in Self Psychology, 9,109-125.         [ Links ]

Smith, H.F. (2008). The age of certainty. Psychoanal. Q., 77,1-19        [ Links ]

Stein, R.A. (2006). Unforgetting and excess, the re-creation and re-finding of suppressed sexuality. Psychoanal Dialogues 16,763-778.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Nancy Kulish
[Associação Americana de Psicanálise APsaA]
625 Purdy Street, Birmingham
Michigan, 48009 USA
Tel. 1 248 258 0904
nkulish@aol.com