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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

47º CONGRESSO DA IPA - MÉXICO PAINÉIS PRINCIPAIS

 

Sonhos

 

 

Harold P. BlumI; Tradução de Tania Mara Zalcberg

IAnalista didata da Associação Americana de Psicanálise APsaA

Correspondência

 

 

Em que medida você privilegia a interpretação de sonhos em relação a outras formas de representações mentais?

 

Sonhos revisitados

Embora não haja mais uma "estrada Real" para a interpretação psicanalítica, os sonhos têm uma posição valorizada se não, necessariamente, privilegiada no pensamento e em diversas práticas psicanalíticas do século XXI. Estou muito satisfeito por reconsiderar os sonhos desde o Congresso da IPA em Londres, 1975 (Blum, 1976).

As teorias sobre as funções dos sonhos têm sido controversas; de maneira que seria vantajoso diferenciar funções gerais das aplicações na clínica. Em termos de sua função geral, os sonhos geralmente representam a satisfação alucinatória de um desejo infantil inconsciente (Freud, 1900). Em minha opinião, os sonhos não têm uma função protetora validada como válvula de segurança ou como guardião do sono. Os sonhos só poderiam proteger o sono com sonhos, aproximadamente 25% do sono de adultos.

Os sonhos têm função comunicativa (Ferenczi, 1913; Kanzer, 1955; Bergmann, 1966) tanto em contextos gerais quanto clínicos. O sonho pode ser considerado como comunicação pessoal, talvez esquecido de maneira ambivalente. Em análise há a motivação específica de contar o sonho ao analista, já que o analisando sabe que os sonhos são valorizados pelo analista como fonte de compreensão analítica. A função comunicativa do sonho na psicanálise é influenciada pela atitude e interesse específicos do analista em relação aos sonhos, uma dimensão interpessoal do processo analítico. Como revivência regressiva, contar o sonho equivale à criança contar o sonho a um dos pais. A verbalização do sonho pode ser considerada como extensão da elaboração secundária do sonho. Os conteúdos sensoriais, em sua maior parte visuais, e os conteúdos afetivos dos sonhos inevitavelmente se modificam durante a verbalização, de maneira tal que a vivência do sonho não pode ser exatamente reproduzida. Apesar da regressão narcísica o sonho contém representações de relações infantis de objeto, revividas na transferência. A regressão profunda nos sonhos pode dar acesso à vida mental pré-edípica e possivelmente pré-verbal (por exemplo, apego, separação-individuação, memória implícita). O sonhador tenta evocar uma resposta contratransferencial ao sonho relatado, seja ele relatado ao analista ou a outro objeto transferencial. Respostas contratransferenciais recentes podem surgir como elementos disfarçados dos restos diurnos do sonho do analisando, como no sonho modelo de Freud (1900) sobre sua paciente, Irma.

Hoje temos mais ciência da atitude do sonhador em relação ao sonho, por exemplo, como presente para o analista, como mensagem mágica, ou corpo estranho renegado etc. O sonho em si pode representar qualquer objeto, objeto parcial, o corpo, o self, ou o estado do self. O fato de um sonho específico, entre vários, ser relembrado e relatado atesta a importância das fantasias e dos fragmentos de memória que surgem. O conteúdo manifesto do sonho não é mais visto simplesmente como o envelope para o conteúdo latente oculto. O significado geralmente pode ser colhido a partir da superfície para o interior; as fantasias inconscientes podem escapar da censura e surgir na superfície no conteúdo manifesto dos sonhos. Primeiros sonhos sobre incesto explícito, assassinato, suicídio, canibalismo, o próprio analista sem disfarce etc., têm sido estudados com o intuito de obter implicações específicas a respeito de prognóstico, diagnóstico e percurso clínico. Todos os aspectos do sonho são significativos para a compreensão do sonhador e do sonho, inclusive a sequência de associações tanto antes quanto depois do relato do sonho, uma sequência do sonho, sonhos em abundância, os afetos ou a disposição de ânimo do sonho, a história do paciente, e a fase da análise. Os pacientes diferem em sua capacidade de recordar, associar e analisar os sonhos. Os sonhos de pacientes com déficits de ego ou atrasos de desenvolvimento, ou confusão entre sonho e realidade, podem informar o analista sem serem realmente úteis para o paciente.

Os sonhos têm sido frequentemente muito esclarecedores no meu trabalho analítico, inclusive ao analisar a resistência aos sonhos e sonhos como resistência. "Até mesmo um sonho ininteligível pode ser um ato psíquico válido, que se pode usar na análise" (Freud, 1933). Seguem-se duas vinhetas, para ilustrar a utilidade clínica dos sonhos:

O interjogo de fantasia e realidade em análise pode ser observado em sonhos em que a fantasia inconsciente foi evocada por vivência dentro ou fora da situação analítica. Uma paciente adulta sonhou que seu pai estava acariciando os seios dela; ela acordou surpresa e assustada. Assegurando-se de que era seu marido deitado ao seu lado, ela pensou com insistência que precisava contar o sonho a seu analista. O analista era a figura paterna transferencial ao mesmo tempo objeto de proteção contra a fantasia incestuosa. A paciente pensou que seu busto poderia ter tocado de leve o peito do seu pai enquanto dançavam em um casamento recente. Ela lembrou-se de ter imaginado, quando menina, que iria se casar com o pai sendo uma melhor esposa para ele do que sua mãe. O sonho foi evocado por contato com o objeto original bem como por fantasia erótica transferencial-contratransferencial. A interpretação do sonho explicitamente incestuoso promoveu uma convicção muito maior a respeito dos conflitos incestuosos da paciente do que o trabalho analítico com outros dados (uma imagem vale mais do que mil palavras).

O sonho traumático, o pesadelo, incorpora uma repetição mais ou menos disfarçada ou parcial de traumas do passado. Os pesadelos podem ser uma tentativa de dominar e reparar o trauma tanto para pacientes quanto para não pacientes. Pesadelos terroríficos e severos podem fracassar em sua função reparadora, promovendo quase uma retraumatização. Paradoxalmente, o pesadelo pode estimular o domínio do ego e a sublimação quando desaparece a ansiedade opressiva, especialmente por meio da interpretação na terapia.

Após a falta de relatos de sonhos, em dois anos de tratamento e resistência silenciosa prolongada, um jovem paciente adulto recordou um terrível pesadelo sanguinário em que seu gato foi decapitado. O pesadelo recapitulava de maneira decisiva traumas cumulativos da infância. Sua mãe bipolar tivera crises recorrentes de depressão psicótica em que se retraía em silêncio ou com gemidos. A mãe "perdera a cabeça", e na transferência ele oscilava entre ele e eu como representantes da mãe silenciosa, louca e castrada. Ao mesmo tempo em que se culpava pelo colapso depressivo dela, e por sua impossibilidade de curá-la, ele estava atemorizado por sua raiva e ódio na transferência materna. Esse primeiro sonho não poderia ter sido analisado sem trabalho analítico prévio, e o conhecimento do seu caráter borderline e história. A elaboração do sistema de fantasia inconsciente do pesadelo incluiu a recuperação de lembranças dolorosas e a reconstrução de uma infância atormentada.

Múltiplas funções e significados dos sonhos têm sido propostos desde as formulações de Freud. A neurociência é uma promessa, mas a psicologia do sonho está em um campo diferente de discurso. Propostas intrigantes tais como os sonhos como combinação facilitadora de memórias recentes e passadas, para novos aprendizados, ou para resolução de problemas com soluções criativas, ou o sono com sonhos sendo correlacionado com plasticidade do desenvolvimento etc., todos são temas para a investigação de sonhos em curso. As funções dos sonhos e do sonhar ainda aguardam mais esclarecimentos e confirmação.

 

Referências

Bergmann. M. (1966). The intrapsychic and communicative function of the dream. Int. J. of Psychoanal., 47:356-363.         [ Links ]

Blum, H. (1976). The changing use of dreams in psychoanalytic practice. Int. J. of Psychoanal., 57,315-324.         [ Links ]

Ferenczi, S. (1913). To Whom Does One Relate Ones Dreams? Further Contributions to the Theory and Technique of Psycho-analysis (p. 349). New York: Brunner/Mazel.         [ Links ]

Fiss, H. (2000). A 21st century look at Freud's dream theory. Journal of the American Academy of Psychoanalysis, 28,321-340.         [ Links ]

Freud, S. (1900). The interpretation of dreams. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Vol. 4/5). London: Hogarth Press.         [ Links ]

Freud, S. (1933). New introductory lectures on psychoanalysis. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Vol. 22). London: Hogarth Press.         [ Links ]

Kanzer, M. (1955). The communicative function of the dream. Int. J. of Psychoanal., 36,260-266.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Harold P. Blum
[Associação Americana de Psicanálise APsaA]
23 The Hemlocks
Roslyn Estates NY 11576, USA
Tel: 1 516 621-6850
haroldpblum@cs.com