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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

47º CONGRESSO DA IPA - MÉXICO PAINÉIS PRINCIPAIS
COMENTÁRIO

 

Comentários sobre as respostas de Harold P. Blum, Luis J. Martin Cabré e Elias Mallet da Rocha Barros às questões do painel "sonhos"

 

Comments on the answers of Harold P. Blum, Luis Martin Cabré and Elias Mallet da Rocha Barros to the questions of the "dreams" panel

 

Comentarios sobre las respuestas de Harold P. Blum, Luis Martin Cabré y Elias Mallet da Rocha Barros a las preguntas del panel "Sueños"

 

 

Deodato Curvo de Azambuja

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

O comentador procura captar como cada respondente encara a tarefa de responder às questões propostas no painel, e ao mesmo tempo desenvolve ideias próprias a partir de sua experiência sobre o tema.

Palavras-chave: sonho; realização de desejo; trauma; mundo interno; interpretação.


ABSTRACT

The commentator tries to capture the way in which each answerer faces the task of answering the questions proposed on the panel, simultaneously developing his own ideas based on his experience on the theme.

Keywords: dream; wish-fulfilment; trauma; internal world; language.


RESUMEN

El comentarista trata de captar cómo cada participante se enfrenta a la tarea de responder a las preguntas planteadas en el panel, mientras que desarrolla ideas propias a partir de su experiencia sobre el tema.

Palabras clave: sueño; realización del deseo; trauma; mundo interno; lenguaje.


 

 

A maneira como cada um dos respondentes enfrentou a tarefa de responder foi bastante diferente em cada caso, o que torna a leitura das respostas bastante enriquecedora. Pois o fato é que cada um tomou caminhos associativos diferenciados, mas em si mesmos muito interessantes. O melhor, por isso mesmo, é segui-los, tendo cada leitor, por assim dizer, sua própria experiência onírica, seja ela prazerosa ou traumática.

O que mais gostei lendo Harold P. Blum foram seus exemplos oníricos, por meio dos quais ele vai respondendo às questões formuladas. O primeiro, em torno de um conteúdo incestuoso e que a seu ver o sonho esclarece de um modo especial, à medida que, como ele mesmo diz: "uma imagem vale mais que mil palavras" - o que nos remete à importância do caráter probatório, científico, dos sonhos.

Focando nessa mesma questão da força da imagem ele exemplifica o caráter traumático vivido durante um sonho de outro paciente, cuja mãe era bipolar. Durante suas crises ela "perdia a cabeça". E o analisando sonha com um gato que tem a cabeça decepada. Isso tem um prolongamento muito interessante na situação analítica transferencial, muito marcada por uma resistência silenciosa que, contratransferencialmente, "corta" a cabeça do analista.

Já Luis J. Martin Cabré busca desde o início responder diretamente às questões formuladas. Lemos em seu texto: "Nesse sentido, Ferenczi propunha que uma definição mais completa da função do sonho deveria incluir, além da indiscutível função de satisfação de desejos, uma segunda função, a função traumatolítica, que seria a de dissolver e desfazer as experiências e vivências traumáticas". Tais vivências apontam para "uma linguagem emudecida", como aliás encontramos no segundo caso descrito por Harold Blum. Mais adiante encontramos: "além da função tradicional do sonho, de realização de desejos, a outra função do sonho seria, corroborando a hipótese de Ferenczi, a de criar imagens que poderiam preencher o vazio da não representação e de representar simbolicamente experiências de origem pré-simbólica e de caráter traumático". Isso tudo, concluindo e resumindo, "tenta chegar à memória sem recordação ou ao inconsciente não reprimido". Ambos os autores fazem, a meu ver, uma distinção entre sonhos de realização de desejos e sonhos traumáticos.

Já a partir ou por meio do desenvolvimento de Elias Mallet da Rocha Barros poderíamos pensar que tanto os sonhos de realização de desejo quanto os sonhos traumáticos têm uma mesma base. Tal base poderia ser, na minha leitura, "um teatro privado onde o significado é gerado e transformado ... desde a infância mais primitiva". Elias entra por desenvolvimentos muito interessantes a partir dessa linha da existência de um "teatro privado", enfim um mundo interno que é revelado de um modo muito importante pelos sonhos.

Importante desde que, como relembra Harold Blum, "uma imagem vale mais que mil palavras". E o que o sonho revela com a produção de imagens é, afinal, que existe mesmo um mundo interno. Isso é uma prova irrefutável, científica. E no caso de que existe mesmo um mundo interno que não é apenas uma crença dos psicanalistas, podemos pensar outras coisas. Primeiramente, que em um certo sentido tanto faz pensarmos no sonho como realização de desejo ou como fruto de experiência traumática, pois tanto uma coisa como outra passam-se nesse mundo interno.

Permanece contudo a necessidade de distinguirmos experiência traumática de realização de desejo. Na minha experiência com pacientes em surto psicótico, percebi que, às vezes, quando o paciente sai do surto, passa ao mesmo tempo a sonhar. Isso está de acordo com a menção de Luis Cabré da existência de memórias sem recordação, e um inconsciente não reprimido. Um inconsciente não reprimido é igual à psicose. E como acontece isso do sujeito sair de um surto psicótico "através" de começar a sonhar? Penso que acontece exatamente através da criação de um mundo interno, ou de um "teatro privado" como prefere Elias. Vale dizer que o mundo interno não é dado. Ele precisa ser criado. Ou o sujeito precisa sair da ordem do real, que é traumático, e entrar na ordem simbólica, ou do desejo e da realização de desejo. E só então consegue sonhar.

Isso acontece de outro modo, no estudo do sonho da "injeção de Irmã", quando Freud escreve: "Quando o trabalho de interpretação fica concluído, percebemos que um sonho é a realização de um desejo" (p. 130). É fundamental, nessa frase, a ideia de que somente após o trabalho de interpretação é que concluímos que o sonho é a realização de um desejo. Em outras palavras, o sonho não existe como realização de desejo se tal desejo não for desvendado, pois se isso não ocorrer o sonho aparecerá como algo absurdo e sem sentido.

Sem interpretação, nada de realização de desejo. Portanto, a interpretação faz parte do sonho como realização de desejo. Daí que se abre o caminho para o método psicanalítico da interpretação, ou para a ordem simbólica. Sem o psicanalista, sem o outro, não existe o sonho. Só existe o trauma, ou o desconhecido, ou o inconsciente não reprimido, e não aquele inconsciente que se estrutura como uma linguagem.

Mas como isso é possível? Volto novamente a Freud:

No processo de interpretar um sonho, abandonamos a reflexão e permitimos às ideias involuntárias emergirem. Pode ser demonstrado que tudo de que podemos libertar-nos são ideias intencionais que nos são conhecidas; assim que tivermos feito isso, ideias intencionais desconhecidas - ou, como dizemos sem precisão, "inconscientes" - tomam conta e, daí por diante, determinam o curso das ideias involuntárias. (p. 563)

Ora, se abandonamos a reflexão, no processo de interpretar, sonhamos como psicanalistas ao lado do analisando, ou em um estado de rêverie, como dizia Bion. Ou mergulhamos no sonho, para podermos interpretá-lo. Ou a interpretação faz parte do sonho como realização de desejo, como dissemos. Porém - ah porém - tal método encontra sempre resistências (transferenciais, contratransferenciais etc.) senão seria muito fácil. Disso, como sabemos, Freud também tratou longamente, bem como toda a psicanálise que se seguiu.

Criou-se de qualquer modo, e por isso mesmo, uma nova linguagem no mundo, um novo "abrigo do ser" como dizia Heidegger sobre a linguagem.

 

Referências

Freud, S. (1969). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vols. 4 e 5). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Deodato Curvo de Azambuja
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua João Moura, 647/51 – Pinheiros
05412-911 São Paulo, SP
Tel: 11 3064-5165
deodato.ca@uol.com.br

Recebido em 5/5/2011
Aceito em 31/5/11