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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

47º CONGRESSO DA IPA - MÉXICO PAINÉIS PRINCIPAIS

 

Inconsciente

 

 

Werner BohleberI; Tradução de Elsa Susemihl

IAnalista didata da Associação Psicanalítica Alemã

Correspondência

 

 

Qual é a sua teoria a respeito dos processos inconscientes? Com que outras teorias você compararia sua conceituação?

1. Tendo em vista o pluralismo existente nos sistemas de pensamento e nas teorias psicanalíticas, não é de surpreender que encontremos atualmente concepções muito diferentes a respeito de um conceito tão central como o do inconsciente. Essas diferentes concepções vão desde o conceito clássico de inconsciente como lugar de representantes pulsionais recalcados até a ideia de estados de self não-formulados e cindidos. Importantes aportes no sentido de contribuir para uma modificação da visão a respeito do inconsciente também se originaram a partir das neurociências e das ciências cognitivas, bem como das pesquisas na área do desenvolvimento.

2. Voltando-nos ao nosso próprio pensamento teórico, defrontamo-nos inevitavelmente com teorias implícitas que são desenvolvidas por cada psicanalista ao longo de sua atividade clínica e empregadas no seu trabalho cotidiano. Com frequência elas diferem consideravelmente daquelas teorias abertamente defendidas e publicadas por este mesmo psicanalista (Sandler, 1983; Canestri et al., 2006; Tuckett, 2008). Na sua cabeça as teorias estão disponíveis de uma forma bem menos elaborada e menos coerente do que quando são apresentadas nas suas versões publicadas. Dessa forma o psicanalista é capaz de integrar em um sistema teórico de sua referência diferentes conceitos de diversos autores e escolas, sendo que este sistema teórico apresenta características pessoais, que combinam tanto com suas convicções científicas como também com suas convicções pessoais pré-científicas. Ele adquire assim no decorrer do tempo um conhecimento clínico implícito, que tem um alto grau de complexidade e que não é passível de ser representado diretamente por meio de palavras.

3. Gostaria de apresentar o pensamento teórico implícito a respeito do inconsciente por meio de representações espaciais. Ao nos interrogarmos e refletirmos a respeito das nossas próprias concepções teóricas, deparamo-nos inevitavelmente com complexos representacionais metafóricos. Isto é válido principalmente no caso de um conceito teórico tão abstrato como o do inconsciente, que pode ser sempre apenas apreendido e nunca empiricamente registrado. A construção representacional tradicional e clássica é espacial (Reed, 2003). Embora saibamos que essa geografia da mente é apenas uma metáfora, ainda assim ela se mostra atuante no nosso pensamento implícito. Nele o aparato psíquico se apresenta em três camadas superpostas no espaço. Nas profundezas encontra-se o sistema do inconsciente, que funciona com suas próprias leis e que é entendido como um reservatório dinâmico de desejos pulsionais e de fantasias inconscientes arcaicas, que ali proliferam na escuridão (Freud, 1915, p. 149), pressionam "para cima" e precisam ser descobertas, precisam se revelar. No modelo kleiniano encontramos, junto a esse complexo representacional, um espaço metafórico mais horizontal no qual se desenrolam os processos da identificação projetiva. Partes do self introduzem-se no outro como objeto, como se adentrassem em um continente; assim, também partes do outro são assimiladas pelo self. Por outro lado, a dialética entre o self e o outro se dá de uma maneira diferente, ainda que metaforicamente parecida, por exemplo, em Laplanche onde o inconsciente passa a ser o lugar de mensagens codificadas provenientes do outro. Um terceiro modelo, que se origina nas recentes teorias intersubjetivistas, não mais localiza o inconsciente intrapsiquicamente, mas na própria relação interpessoal que passa a ser o lugar do inconsciente e onde ele vai ser vivenciado/atuado (enacted). Junto à importância simbólico-semântica do inconsciente recalcado, surge aqui o conhecimento relacional implícito que, por sua vez, também pode estar marcado por conflitos e resistências. Dessa forma, ele também faz parte do inconsciente dinâmico. Fala-se também de um inconsciente-de-duas-pessoas (Lyons-Ruth, 1999).

4. Para Freud o conteúdo do inconsciente ainda era definido claramente pelos representantes pulsionais e pelos impulsos de desejo. Como muitos psicanalistas da atualidade, também parto da ideia de que não são principalmente os representantes pulsionais e os impulsos de desejo que são inconscientes, mas que se trata antes de relações objetais internalizadas, cuja organização psicológica pode estender-se desde níveis de estruturação arcaicos até níveis mais elevados. O mesmo também é válido para as fantasias inconscientes que organizam a realidade psíquica como forças norteadoras. Elas vão desde fantasias primitivas iniciais, frouxamente organizadas, até fantasias estáveis com alto grau de organização formatadas pelos processos secundários do pensamento e que têm uma qualidade narrativa ou cênica, mas que ainda assim refletem as características dos processos primários (Sandler/Sandler, 1998). Novas experiências podem modificá-las ou somente sobrepor-se a elas, ou ainda podem ser transformadas por mecanismos de defesa. Junto a estas ainda encontramos suposições e convicções inconscientes como, por exemplo, a convicção de que os próprios impulsos agressivos tenham como consequência a perda do amor do objeto e o abandono por parte do mesmo. Nem todo conteúdo psíquico inconsciente pode ser considerado uma fantasia inconsciente.

5. Ainda como uma forma de processo inconsciente, gostaria de mencionar a comunicação inconsciente em geral muito sutil que ocorre entre o analista e o paciente. Ela influencia essencialmente a construção de uma imagem interna a respeito do paciente que nos será útil como um modelo para o trabalho. Trata-se frequentemente de uma imagem estruturada cenicamente, não passível de ser totalmente transmitida por palavras. Ela alterna com frequência imagens do paciente como criança e como adulto e contém partes inconscientes do próprio self apreendidas intuitivamente.

6. Ao pensarmos em termos de sistemas ou áreas psíquicas, corremos o perigo de concebê-las como se tivessem limites nítidos, em vez de supor passagens e continuidades. Freud (1915, p. 195), por exemplo, referia-se ao fato de que uma divisão nítida e decisiva entre os conteúdos dos dois sistemas (consciente e inconsciente) via de regra é estabelecida somente na puberdade. Seria tarefa do tratamento psicanalítico criar limites mais permeáveis, de forma que os derivados do inconsciente possam transitar pelos dois sistemas. Penso que fazemos bem em não pensar a princípio em áreas ou sistema psíquicos, mas em conceber "consciente" e, respectivamente, "inconsciente" como graus diferentes de organização ou formas de representação do material psíquico que são caracterizadas funcionalmente, por exemplo, pelos processos primários ou secundários de pensamento ou por investimento energético com atenção. Não devemos imaginar essas formas de organização nitidamente separadas entre si, mas antes como se pudessem ser localizadas ao longo de um continuum. Uma concepção como essa a respeito do inconsciente como uma forma específica de organização do material psíquico também pode ser integrada com os resultados das mais recentes pesquisas. Hoje conhecemos outros processos que ocorrem inconscientemente e que não estão recalcados, mas que têm importância psicanalítica. Gostaria de mencionar as experiências traumáticas que estão registradas, ainda que de forma cindida, e muitas vezes não têm representação simbólica. Também pode ser lembrado aqui o domínio do conhecimento relacional implícito. Não é representado simbolicamente, ainda assim é intencional, e por isso importante do ponto de vista psicodinâmico, pois pode estar determinado por conflitos e defesas, como aparece, por exemplo, em certos modelos de comportamento de apego (bcpsg, 2010). Considero dispensável fazer uma delimitação clara entre o inconsciente relacional e o inconsciente dinâmico. Já com relação aos modelos de comportamento e ação não conscientes implícitos procedurais armazenados ocorre algo diferente. Eles não são organizados a partir de uma psicodinâmica e não são passíveis de tornarem-se conscientes. Mesmo assim, ao longo de um tratamento, eles podem ser percebidos e nomeados muitas vezes através de enactments.

7. Nos últimos 15 anos o enactment veio a se tornar um conceito central na abordagem da atualização dos processos inconscientes. A compreensão desse fenômeno clínico contribuiu sobremaneira para que as teorias de tratamento, com orientação baseada na psicologia do eu com foco no intrapsíquico, pudessem se abrir para o pensamento intersubjetivista e para o reconhecimento da subjetividade do analista. Nos enactments contratransferenciais acontece algo inesperado e que se desvia das respectivas regras técnicas de como o tratamento deveria se conduzir. Ambos, analista e analisando, são enredados em um modelo de comunicação de interação inconsciente. É através do enactment que esse modelo necessita ser colocado em cena, pois esta é a única maneira pelo qual o analisando é capaz de expressá-lo. Ao se deixar envolver afetivamente no enactment, a fragilidade e a personalidade do analista entram diretamente no tratamento, o que é necessário, caso se vise um progresso no trabalho analítico. Pode-se dizer que a problemática do paciente se quebra diante da subjetividade do analista. Se puder haver um esclarecimento a respeito da interação e do enredamento afetivo da dupla durante o enactment, uma convicção ou uma fantasia inconsciente do paciente se tornará acessível verbalmente.

8. A fenomenologia e a dinâmica do enactment foram estudadas em detalhe na literatura psicanalítica, sempre de acordo com as premissas básicas das diferentes tradições e escolas psicanalíticas. Gostaria de ressaltar que certa medida de espontaneidade por parte do analista precisa estar em jogo no enactment. Isto é, ao lado de um pensamento psiquicamente determinista, um momento de probabilidade é inerente ao enactment, que tem uma característica de um acontecimento, pois não é possível prever o seu aparecimento. Nesse sentido o enactment é um momento de encontro que possibilita um encontro direto entre o analisando e o analista e que, dessa forma, se distancia de um determinismo. Gostaria de delimitar essa conceituação, por um lado, em relação a uma conceituação pós-kleiniana na qual os limites entre pensar e agir têm uma função metapsicológica central. Nesse caso, se ocorrer um enactment contratransferencial, a função continente do analista falhou e a pressão para agir não pôde se transformar em processo de pensamento. Por outro lado, também delimito minha conceituação em relação a algumas concepções nas quais o enactment surge como algo que ocorre contínua e ubiquamente na relação analítica que assim se torna, basicamente, uma estrutura de enactment.

9. Atribui-se ao inconsciente ainda um tipo de função corretiva. Laplanche o denomina de um "descentramento do sujeito". Assim, por exemplo, sonhos podem levar a uma correção de concepções e posicionamentos diante do conflito e dar ao sonhador um sentimento de crescente autenticidade pessoal. Alguns psicanalistas estenderam a noção de inconsciente freudiano em direção a uma assim chamada compreensão romântica, na qual o inconsciente também passa a ser a fonte do ser da pessoa. Nos últimos anos encontramos muitas revisões desse tipo a respeito do modelo freudiano do inconsciente e considero essas correções necessárias e promissoras. Grotstein (2009), de maneira similar a Bion, conceitua o inconsciente como um processo simbólico que gera significados e que provê o mundo externo com metáforas e imagens poéticas. Nerwith (2003) fala de um inconsciente generativo e o diferencia do "inconsciente recalcado" e do "inconsciente relacional". A subjetividade e o "tornar-se um sujeito" estão por ele ancorados no 'inconsciente generativo". O "verdadeiro self " de Winnicott também pode ser ancorado aqui como conceito, assim como o "conhecido não pensado" de Bollas ou o seu conceito de "idioma" que, mesmo inconsciente, precisa se objetivar na vida de cada um.

 

Referências

Boston Change Process Study Group (BCPSG) (2010). Change in Psychotherapy. A unifyingparadigm. New York: Norton.         [ Links ]

Canestri, J.; Bohleber, W.; Denis, P.; Fonagy, P. (2006). The map of private (implicit, preconscious) theories in clinical practice. In J. Canestri (Ed.), Psychoanalysis: from Practice to Theory (pp. 29-43). Chichester: Whurr Publishers.         [ Links ]

Freud, S. (1915). Repression. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 141-158). London: Hogarth Press.         [ Links ]

Freud, S. (1915). The unconscious. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 159-215). London: Hogarth Press.         [ Links ]

Grotstein, J. (2009). But at the same time and on another level. In J. Grotstein, Psychoanalytic theory and technique in the Klein/Bionian mode. London: Karnac.         [ Links ]

Lyons-Ruth, K. (1999). The two-person unconscious: Intersubjective dialogue, enactive relational representation, and the emergence of new forms of relational organization. Psychoanal Inquiry, 19,576-617.         [ Links ]

Newirth, J. (2003). Between emotion and cognition. The generative unconscious. New York: Other Press.         [ Links ]

Reed, G. (2003). Spatial metaphors of the mind. Psychoanal Quarterly, 72,97-129.         [ Links ]

Sandler, J. (1983). Psychoanalytic concepts and psychoanalytic practice. Int. J. Psychoanal., 64,35-46.         [ Links ]

Sandler, J. & Sandler, A-M. (1998). Internal objects revisited. London: Karnac.         [ Links ]

Tuckett, D. et al. (2008). Psychoanalysis comparable and incomparable. The evolution of a method to describe and compare psychoanalytic approaches. London: Routledge.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Werner Bohleber
[Associação Psicanalítica Alemã]
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