SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 número2InconscienteInconsciente índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

47º CONGRESSO DA IPA - MÉXICO PAINÉIS PRINCIPAIS

 

Inconsciente

 

 

Giuseppe CivitareseI; Tradução de Tania Mara Zalcberg

IMembro da Sociedade Psicanalítica Italiana SPI

Correspondência

 

 

Qual é a sua teoria a respeito dos processos inconscientes? Com que outras teorias você compararia sua conceituação?

 

O in/consciente como função psicanalítica da personalidade

Os dois pilares da minha concepção de inconsciente são as ideias de Bion de pensamento onírico de vigília e sua visão radicalmente social do nascimento do sujeito. Sonhamos não apenas à noite, mas também durante o dia. Um conjunto de operações mentais que nos são desconhecidas, e que Bion denominou função alfa, alfabetizam constantemente os dados sensoriais brutos e os estímulos emocionais (ou elementos beta) recebidos do ambiente em que estamos imersos, e os transforma em imagens visuais (elementos alfa) principalmente. Esses pictogramas absolutamente idiossincráticos estão numa forma que pode ser prontamente memorizada e usada para sonhar e pensar. Para que o sujeito esteja acordado e consciente, bem como para aprender com a experiência, toda uma série de estímulos devem ter sido previamente conscientes e, depois de processados pela função alfa, terem sido "inconscientizados" (Bion, 1992, p. 349). Se a função alfa for deficiente, acúmulos não digeridos de elementos beta podem fazer surgir diversos tipos de patologias.

A criança nasce com uma consciência rudimentar (função alfa). Ela sente os estímulos, mas não tem consciência de si. Percebe sem compreender. Essa "consciência rudimentar" (Bion, 1967, p. 117), Bion observa, "não está associada a um inconsciente. Todas as impressões do self têm valor igual: todas são conscientes. A capacidade de rêverie da mãe é o órgão receptor para a colheita da sensação de self do bebê obtida por sua consciência" (p. 116). Essa é uma imagem surpreendente: na aurora da vida a mãe é o inconsciente do seu bebê, e por isso um complemento para sua consciência primitiva! Por meio da sua rêverie, sua capacidade de receber e de transformar as identificações projetivas da criança, a mãe exprime seu amor pela criança, contém suas ansiedades e lhe fornece os meios de formar uma função alfa própria, baseada em sua experiência de ter sido cuidada pela mãe.

Em minha concepção, aos fundamentos teóricos estabelecidos por Bion são acrescidas as contribuições posteriores de Grotstein e Ogden (a análise considerada como sonhar os sonhos interrompidos e não sonhados do paciente, a dialética das "posições" na geração da experiência e o conceito de terceiro intersubjetivo), pelo desenvolvimento de Ferro, baseado na teoria dos Baranger e de Bion, de campo analítico (a adoção intransigente de um vértice anti-realista na sessão, resumido nos conceitos de espectro onírico e de transformação em sonho, do elenco de personagens no diálogo analítico e assim por diante) e por alusões da teoria do significado tiradas da filosofia da desconstrução de Derrida.

Nesse modelo consciente e inconsciente estão situados em um contínuo, tal como as duas superfícies da fita de Möbius fundem-se constantemente uma na outra. Consciente e inconsciente são reconhecidamente separados por uma membrana construída por grande quantidade de elementos alfa, ou seja, a barreira de contato, mas essa barreira é semipermeável e dinâmica e sujeita a processos contínuos de síntese e de dissolução. Não falta um aspecto inconsciente a qualquer evento mental. Consciente e inconsciente tornam-se, em última análise, dois vértices de observação de um único e mesmo fenômeno mental. Os processos que governam o funcionamento de ambos são os mesmos. Eles variam em gradação, mas não em sua natureza. Na formação tanto de ideogramas/elementos alfa quanto de complicados cálculos algébricos e conceitos, está em jogo o mesmo processo de abstração e de classificação. Sonhar/pensar é o modo de a mente esquecer diferenças e reter modelos das relações entre coisas, atribuindo-lhes assim um significado pessoal. Basicamente, essa definição de sonhos permite a reavaliação das virtualidades construtivas/po(i)éticas/estéticas do inconsciente.

O sonhar não é apenas guardião do sono. O sonho não é tão somente o guia Baedeker mais confiável para o inconsciente, não é nascido da diferença entre consciente e inconsciente, mas na realidade cria essa diferença. Enquanto que para Freud o inconsciente cria os sonhos, para Bion os sonhos criam o inconsciente. O sonhar é o componente principal da "função psicanalítica da personalidade" que opera em registro duplo, ou seja, no registro in/consciente - ou seja, em um registro que é tanto consciente quanto inconsciente. Um indivíduo que alcance essa capacidade de visão binocular pode apreender a realidade a partir de uma multiplicidade de pontos de vista, e talvez isso seja o que chamamos de maturidade e saúde. A necessidade de conhecer a verdade emocional da própria existência assume o papel desempenhado pelas pulsões para Freud. Proto-emoções, transformadas e tornadas pensáveis pela função alfa, são alimento para a mente porque comunicam (impart) sua contribuição cognitiva e motivacional para o sujeito. Elas aumentam a capacidade do sujeito de desempenhar um trabalho psicológico in/consciente e assim sonhar a experiência emocional vigente.

Um intercâmbio fluido, osmótico, ou "acomodação visual" recíproca constante, ocorre entre a experiência consciente e inconsciente, que estão ligadas por solidariedade antagônica, o segredo da compreensão cooperativa, a intuição de um destino comum quando confrontado com a realidade interna e externa. Visto nestes termos, o inconsciente não está localizado "atrás" ou "embaixo" do consciente, mas dentro dele. Não está apenas próximo a ele (e/ou oculto), mas faz parte dele (Ogden, 2009). Assim como outras dicotomias que organizam o significado na teoria psicanalítica clássica (Civitarese, 2008a, 2008b), Bion coloca de forma dialética a oposição entre os processos primário e secundário e entre os princípios do prazer e da realidade (Grotstein, 2007). Isso parece ter sido corroborado pelos achados da investigação neurocientífica. Como Westen (1999, p. 1071), por exemplo, afirma, "a diferença entre o processo primário e secundário de pensamento precisa ser reformulada".

O inconsciente é, portanto, um conjunto de processos de criação de significados que se estende, ao longo de um gradiente, desde o sensório/semiótico (que é o "modo" exclusivo do inconsciente "inacessível", não reprimido ou implícito) até o simbólico no mais completo senso da palavra, e não é dado ao nascimento, mas se desenvolve na relação primária com o objeto. Na vida diária esse pensamento/sonho está em constante trabalho na extração de significados, padrões e imagens que serão compostos em narrativas a partir do fluxo caótico de estímulos da realidade. Na análise, a rêverie permite igualmente o contato com as sequências de elementos alfa sintetizados pela função alfa, e tudo que for contado é (em termos virtuais) sempre e ao mesmo tempo um derivado narrativo do pensamento onírico de vigília. Além disso, não há evento no campo analítico que não possa ser considerado como algo gerado em conjunto pelo par analítico.

Esse modelo dos processos inconscientes surgiu de Bion com o objetivo de não acrescentar mais uma teoria ao corpus existente, mas de compor uma metateoria - ou seja, de descrever os conceitos em comum em funcionamento nessas teorias. As equivalências entre os conceitos de trabalho onírico e função alfa e entre fantasia inconsciente e pensamento onírico de vigília, identificação projetiva e a teoria intersubjetiva do nascimento da psique são óbvias, as posteriores derivando das anteriores em cada caso. O conceito de censura de Freud pode ser reformulado como consequência da relação falha de continente/contido, como um caso particular de um mecanismo mais amplo de funcionamento psíquico. A sexualidade pode ser vista a partir de um novo vértice, a partir do pareamento criativo, em maior ou menor medida, das mentes na sessão - como crônica viva do maior ou menor nível de sintonia emocional (Ferro, 1992). A vida das pulsões é incorporada em noções tais como os vínculos H, L e K, o sistema proto-mental, o impulso à verdade ou elementos beta.

Poderia se afirmar de modo válido, porém, que essa abordagem constitui uma mudança de paradigma tal qual descrito por Kuhn (1962). Considerando-se que Bion não negue os conceitos freudianos, na verdade, ele pouco ou quase nunca os menciona. Ambiguamente os considera como dados, mas de uma forma que, em última instância, tira-os tacitamente do palco, e nos vemos falando uma linguagem totalmente diferente. Embora, em teoria, conservados, os conceitos freudianos são, na realidade, estilhaçados em um caleidoscópio de novos conceitos que exigem a adoção constante de novos pontos de vista. Além disso, em virtude de um interjogo sutil de referências cruzadas, identificações e diferenciações nas quais estão suspensos, e do seu caráter deliberadamente insaturado, eles exigem do analista o exercício constante da dúvida e uma atitude crítica em relação a qualquer forma de dogmatismo relativo a escolas.

 

Referências

Bion, W.R. (1967). Second Thoughts: Selected Papers on Psycho-Analysis. London: Karnac.         [ Links ]

Bion, W.R. (1992). Cogitations. London: Karnac.         [ Links ]

Civitarese, G. (2008a). 'Caesura' as Bion's Discourse on Method. Int. J. Psychoanal., 89,1123-1143.         [ Links ]

Civitarese, G. (2008b). The Intimate Room: Theory and Technique of the Analytic Field. London: Routledge.         [ Links ]

Ferro, A. (1992). The Bi-Personal Field: Experiences in Child Analysis. London: Routledge.         [ Links ]

Grotstein, J.S. (2007). A Beam of Intense Darkness: Wilfred Bions Legacy to Psychoanalysis. London: Karnac.         [ Links ]

Kuhn, T.S. (1962). The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: Chicago University Press.         [ Links ]

Ogden, T.H. (2009). Rediscovering Psychoanalysis: Thinking and Dreaming, Learning and Forgetting. London: Routledge.         [ Links ]

Westen, D. (1999). The Scientific Status of Unconscious Processes. J. Amer. Psychoanal. Assn., 47,1061-1106.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Giuseppe Civitarese
[Sociedade Psicanalítica Italiana SPI]
Piazza A. Botta 1
27100 Pavia, Itália
Tel: 39 335 829-8638
gcivitarese@venus.it