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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

47º CONGRESSO DA IPA - MÉXICO PAINÉIS PRINCIPAIS

 

Inconsciente

 

 

Miguel Kolteniuk KrauzeI; Tradução de Claudia Berliner

IMembro da Associação Psicanalítica Mexicana

Correspondência

 

 

Qual é a sua teoria a respeito dos processos inconscientes? Com que outras teorias você compararia sua conceituação?

 

Existe um inconsciente ou muitos inconscientes?

Essa pergunta, verdadeiro leitmotiv do congresso, exige alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, poderia se referir à existência de um ou vários inconscientes situáveis como "objetos" de estudo dentro do aparelho psíquico ou, então, poderia ser entendida como a existência de um ou vários conceitos de "inconsciente" formulados nas diversas teorias psicanalíticas.

Meu trabalho irá se situar nessa segunda aproximação. Apesar de ser quase universalmente aceito que "o inconsciente" é a descoberta fundadora da psicanálise e que todos os autores o dão "por certo" nas diversas teorizações pós-freudianas, um olhar cuidadoso revela a existência de vários conceitos de "inconsciente" pressupostos nelas, que não só não coincidem entre si, mas que em certas ocasiões resultam incompatíveis e excludentes. Será o mesmo conceito de "inconsciente" que maneja a teoria freudiana, kleiniana, a psicologia do ego, a psicologia do self, os intersubjetivistas, os seguidores de Winnicott, Bion, Lacan, Meltzer, Laplanche ou Green, por exemplo?

Parece-me desde já que não, que cada autor e, sobretudo, cada escola introduz variantes semânticas no conceito de inconsciente para adaptá-lo a suas necessidades de coerência, de tal modo que pouco a pouco começa a se desenhar um leque de significados de dispersão crescente.

Penso que o principal responsável por essa "multivocidade" do inconsciente é o próprio Freud. Até 1915, defendeu a concepção do inconsciente "sistemático", isto é, como sistema situado "abaixo" do sistema pré-consciente separado pela barreira do recalque, sede do processo primário no qual não opera nem a negação, nem a lógica, nem a causalidade e nem a temporalidade linear. Trata-se do conceito de "inconsciente" de sua primeira tópica. Contudo, a partir de 1923, em "O ego e o id" introduz uma modificação essencial: a transformação conceitual do "inconsciente" de "sistema" para "qualidade psíquica" (segunda tópica). Essa mudança de estatuto epistemológico foi um passo prenhe de consequências.

Penso que "o inconsciente" como qualidade psíquica das instâncias (ego, id, superego) implica uma relativa perda da densidade semântica em comparação com o "inconsciente" como sistema psíquico. Refiro-me a seus componentes (as representações-coisa e os investimentos e contrainvestimentos) e às leis de seu funcionamento (o processo primário).

É pertinente perguntar: funcionam exatamente da mesma forma "as qualidades inconscientes" do ego, do id e do superego? Nelas também reinam as leis do processo primário descritas no "sistema inconsciente"? Tudo indica que não. É difícil afirmar que os mecanismos de defesa do ego (a parte inconsciente do ego) funcionam da mesma forma que os conteúdos recalcados. Embora ambos sejam "inconscientes", a ideia de "mecanismos", com sua carga semântica de causalidade e logicidade, é incompatível com o processo primário.

O mesmo ocorre com os desenvolvimentos teóricos pós-freudianos. Apenas com o conceito de "inconsciente" como qualidade psíquica é possível conservar a dimensão inconsciente de processos psíquicos tão divergentes. Mas aqui surgem as dificuldades.

Por exemplo: serão tão "inconscientes" as relações objetais? Como entender o caráter "inconsciente" da divisão do ego? O que significa dizer que as identificações projetivas são "inconscientes"? Os conceitos de "posições" esquizoparanoide e depressiva não supõem um nível importante de organização defensiva? A própria noção de objeto interno não supõe uma dimensão organizadora? Como tornar compatíveis "a organização defensiva e objetal" com o conceito de "inconsciente" e seu funcionamento em processo primário? Acaso será necessário aceitar a presença do processo secundário dentro do inconsciente? Essa aceitação não contradiz a própria noção de inconsciente? Em suma, "o inconsciente" da segunda tópica concebido como qualidade psíquica das instâncias admite a presença de componentes secundários organizadores.

É o que parecem demonstrar quase todos os desenvolvimentos teóricos pós-freudia-nos. O conceito do inconsciente como qualidade psíquica foi estendendo-se a partir de "O ego e o id" para abarcar as funções defensivas e estruturantes descritas pela psicologia do ego, os mecanismos projetivos e introjetivos da teoria das relações de objeto, os processos de constituição do self maduro a partir das relações com os objetos do self, os mecanismos de cisão entre um self verdadeiro e um falso self, os processos de trocas intersubjetivas na interação analítica. Tudo isso parece ter "a qualidade" de ser inconsciente em grande medida.

Creio que a essa diluição do conceito de inconsciente respondeu a psicanálise francesa contemporânea. O movimento de "Retorno a Freud" procurou resgatar, entre outras coisas, a riqueza, a densidade e a originalidade do conceito do "inconsciente" freudiano da primeira tópica.

Daí a proposta de Lacan de que "o inconsciente está estruturado como uma linguagem". A proposta de Laplanche de distinguir duas dimensões no inconsciente sistemático: o recalcado originário caracterizado por sua fixidez e sua desarticulação simbólica, e o recalcado secundário, caracterizado pelo processo primário e suas vicissitudes, e a proposta de André Green baseada no resgate da dimensão pulsional.

É essa discussão sobre esses dois sentidos do conceito de "inconsciente" introduzidos por Freud que subjaz às diversas teorias que polemizam sobre o tema.

Penso que se deve "revisitar" o conceito "sistemático" do inconsciente da primeira tópica e cotejá-lo com os desenvolvimentos do conceito do inconsciente como "qualidade psíquica" da segunda tópica para poder continuar trabalhando em sua difícil elucidação, disseminada nas atuais ramificações da psicanálise contemporânea.

 

 

Correspondência:
Miguel Kolteniuk Krauze
[Associação Psicanalítica Mexicana]
Calle de Miraflores No. 219, Col. Insurgentes San Borja
03100 Mexico City, DF Mexico
Tel. 50-97-04-80 / 55-23-14-00
grupopi@hotmail.com